sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Fahrenheit 451(1966,François Truffaut)





Indicação e apresentação do filme: Joaquim Ferreira

‘FAHRENHEIT 451’ (1966): A ANGUSTIANTE ATUALIDADE DO FILME DE TRUFFAUT

Postado por Renildo Rodrigues | maio 31, 2018 | Classic Movies

Antes de começar a falar sobre Fahrenheit 451, o filme de 1966, é preciso alertar sobre Fahrenheit 451, o filme de 2018 que acaba de entrar em cartaz: o original de Truffaut é uma criação bem mais inquietante e inteligente, e uma adaptação cinematográfica muito mais rica do romance de Ray Bradbury (As Crônicas Marcianas).E, no entanto, a impressão de muitos críticos sobre o filme, à época e agora, é de fracasso – um dos trabalhos menos admirados do grande diretor francês, ponta-de-lança da Nouvelle Vague nas décadas de 1950 e 60 e autor de obras-primas como Os Incompreendidos (1959), Jules e Jim: Uma Mulher para Dois (1962) e A Noite Americana (1973).
Por esse padrão, até entendo que Fahrenheit 451 seja considerado um filme menor do cineasta – uma sombra modesta, digamos, perto da arquitetura imponente de um Os Incompreendidos. Mas Truffaut, um dos criadores mais vitais e apaixonados da Sétima Arte, era constitucionalmente incapaz de fazer um filme meia-boca, sem propósito. E, aqui, em sua única investida pela ficção científica, ele também deixaria a sua marca, criando um exemplar visualmente fascinante e rico em subtextos, num dos períodos mais elegantes e artisticamente ambiciosos do gênero (a poucos anos de distância, por exemplo, de 2001: Uma Odisseia no Espaço [1968], Planeta dos Macacos [1969], O Enigma de Andrômeda [1971] e Solaris [1972].
A primeira surpresa da obra são os créditos: sobre uma série de imagens de antenas de TV, os nomes do elenco, da equipe de produção e do diretor não aparecem escritos, mas sim ditos em voice-over. O que parece bizarro se revela uma escolha absolutamente lógica, pela história a seguir.
No futuro imaginado por Bradbury, os bombeiros não apagam incêndios: eles os provocam. Operando lança-chamas em vez de mangueiras, eles ateiam fogo a livros, esses instrumentos inconvenientes de livre-pensamento e imaginação, que só servem, como explica o chefe da brigada (Cyril Cusack), para tornar as pessoas infelizes, inspirando sonhos e fantasias impraticáveis no mundo real. Nesse quadro totalitário, que não admite dissidências, Montag (Oskar Werner, de Jules e Jim) é um despreocupado funcionário-padrão, vivendo um casamento opaco com Linda (Julie Christie). Cotado para uma promoção, Montag parece estar indo de vento em popa na corporação, mas o encontro com a misteriosa e tagarela Clarisse (Christie também – numa decisão arriscada, mas plenamente justificada, do diretor, a atriz tem de representar duas personagens femininas moralmente opostas, mas cuja semelhança física empresta ambiguidade, e que seria ainda mais acertada se Christie desse conta do desafio) atiça no bombeiro uma curiosidade irresistível por esses trecos com capas, lombadas e páginas.
É um mundo, portanto, livre da leitura (o que explica aqueles créditos iniciais) – a formação cultural das pessoas se dá diante das “paredes convertidas”, com seus televisores dominados por programas produzidos pelo governo, e que propagam a condição de felicidade geral da população, ao mesmo tempo em que convocam jovens com aptidão física para “treinamentos de campo” contra possíveis tumultos – mascarando uma guerra contra dissidentes fora dos muros da cidade, algo a que o filme de Truffaut só alude, mas está bem presente no romance de Bradbury.
Como toda grande ficção científica – e qualquer outro filme, na verdade –, o enredo de Fahrenheit 451 fala profundamente à sensibilidade de seu realizador. Truffaut cansou de dizer em entrevistas que teve a vida salva por seu amor aos filmes e à literatura. Em Os Incompreendidos, o alter-ego do diretor, o menino Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud), acende uma vela para Honoré de Balzac antes de dormir. E, em Fahrenheit 451, mais do que uma alegoria sobre totalitarismo, censura e alienação, o que está patente é o profundo amor de Truffaut pela literatura. As cenas mais icônicas do longa, não por acaso, são os planos em que a câmera registra dezenas de livros, com suas lindas capas e ilustrações, sendo lentamente consumidos pelo fogo. O final pungente, com o idílio (e martírio) das Pessoas-Livro, coloca de forma ainda mais explícita essa devoção do diretor.
Também como toda grande ficção científica, Fahrenheit 451 tem muito a dizer sobre a sua época, e sobre todas as outras. Num mundo dominado por fake news, alienação voluntária em redes sociais, tumultos econômicos e sociais, governos totalitários mascarando-se de democráticos e demais malaises, a obra é um espelho amplificado de nossos temores e dos piores aspectos de nosso dia-a-dia, e um lembrete, sempre relevante, de que o conhecimento sempre há de ser maior e mais duradouro do que a opressão.
Esteticamente, Fahrenheit foi mais um golpe de ousadia e inovação da Nouvelle Vague. Num tempo em que o processo da fotografia em cores ainda era restrito a filmes de grande orçamento, Truffaut aproveitou a oportunidade para criar um visual único para seu longa, que antecipa várias sacadas de filmes posteriores. As paisagens dominadas por concreto, o vermelho intenso do quartel dos bombeiros e o uso repetido de travellings parecem ter influenciado bastante o Laranja Mecânica de Stanley Kubrick, por exemplo. As cores fortes e contrastantes, pré-psicodélicas, têm um parentesco com os experimentos de Fellini (Julieta dos Espíritos [1965]) e Antonioni (Blow-Up: Depois Daquele Beijo [1966]) na mesma época. E a trilha sonora de Bernard Herrmann, colaborador de Alfred Hitchcock, ídolo de Truffaut, também é uma maravilha, com seus tons ominosos e cheios de instrumentos percussivos. A energia típica da direção, com a montagem rápida e a movimentação incisiva da câmera, prova mais uma vez que Truffaut é o precursor mais direto de Martin Scorsese.
Mas Fahrenheit 451 tem mesmo os seus desapontamentos. Os diálogos duros, não-naturais, em inglês, idioma que Truffaut nunca dominou (foi o seu único filme nele, aliás), atrapalham as cenas de maior voltagem emocional, ao mesmo tempo em que criam um tom de détachement que serve bem à humanidade anestesiada do romance de Bradbury. Christie, provavelmente por falta de experiência, tanto dela como do diretor, está apática, quando seus dois personagens pedem registros mais nuançados. E a produção complicada, cheia de brigas, sobretudo entre Truffaut e o protagonista Werner, impediu que Fahrenheit chegasse às alturas que as ideias do cineasta pareciam anunciar.
O que saiu, porém, é um trabalho belo e contundente, que se sustenta por mérito próprio décadas depois, e que cavou um lugar especial na ficção científica tanto por suas brilhantes ideias visuais quanto pelo humanismo de sua mensagem de amor à cultura.



Disponivel em http://www.cineset.com.br/fahrenheit-451-1966-a-angustiante-atualidade-do-filme-de-truffaut/

Restos da Vida de Um Homem Feliz(2012,Jonas Mekas)


Indicação e apresentação do filme: Filippi Fernandes

terça-feira, 13 de novembro de 2018

O Anjo Exterminador(1962,Luis Buñuel)



Indicação , apresentação do filme e texto : Reinaldo Silva


                                 O Anjo Exterminador
                          Buñuel nos provoca a pensar
Diretor: Luis Buñuel Portelés (22/02/1900- 29/07/1983)
Título Original: Os Náufragos da Rua da Providência
Lançado no México: 1962
Renomeado como O Anjo Exterminador por Buñuel em homenagem a peça inacabada de seu amigo José Bergamin
Total de filmes que dirigiu: 33 (trinta e três), sendo 2 (dois) com Salvador da Dali
Explicações preliminares
Cabe de início uma explicação sobre o título do filme. O Anjo Exterminador é uma figura da religião judaica, que aparece no Velho Testamento, nos livros Gênese, Êxodo, Segundo livro dos Reis e Segundo livro de Samuel. Quando Deus queria castigar enviava o Anjo Exterminador a terra com uma missão. No filme a imagem do Anjo Exterminador aparece na porta do quarto onde um casal se esconde. Alguns trechos bíblicos mencionam que a presença ou a passagem do Anjo Exterminador, indicava que o local por onde passava deveria ficar isolado. Nenhuma pessoa poderá sair ou entrar no local. Outra referência de cunho religioso são os pés de galinha que uma personagem feminina em uma cena retira da bolsa. Na tradição das religiões  Camdoblé e Umbanda os pés de galinha são utilizados como objeto simbólico para proteção (diz-se “fechar o corpo”). Geralmente, eram pendurados na parede do local em que se pretendia proteger de espíritos malignos.
Comentários
Prefiro duas possíveis interpretações, dentre outras prováveis perspectivas.
A primeira interpretação pode ser baseada nas fortes referências religiosas tanto do título original quanto o renomeado por Buñuel, e de elementos “misteriosos” que aparecem em algumas cenas. Por este ângulo é possível associar a presença de que os sintomas psicológicos ou psiquiátricos causados nos personagens (delírios, passionalidade, histerismo, fobias, paranóias, esquizofrenia) podem ser atribuídos a presença de espíritos em conseqüência do Anjo Exterminador.
A segunda interpretação é de caráter histórico e político. O filme seria a visão de Buñuel sobre o período fascista do governo do general Francisco Franco, iniciado com a guerra civil espanhola entre 1936 a 1939, até o fim da ditadura em 1975, com a morte de Franco. Para sustentar essa tese, menciono a ambigüidade simbólica dos cordeiros, animais associados aos rituais de sacrifício de cunho religioso e como metáfora política de obediência e servidão. A cena que antecede o final do filme é decisiva para esta interpretação: a presença do aparelho repressivo do Estado no uso da força bélica. Ou seja, para quem privilegia esta interpretação os personagens não estão sendo alvos de uma dominação invisível, o anjo simboliza a opressão do Estado. Particularmente, estou mais próximo desta tese. Penso que Buñuel utilizou recursos simbólicos extraídos de crenças religiosas para caracterizar uma conjuntura política de um período histórico da Espanha.
Ao contrário dos filmes de Costas Gravas (outro grande diretor), Buñuel não apresentava em seus filmes uma associação de idéias que iam se encadeando no decorrer das cenas até a conclusão de uma mensagem final. Ele coloca em cena elementos que despertam a curiosidade, e introduz a dúvida para que nós possamos perguntar: o que isso tem haver?o que significa? Como isso se encaixa na cena? É por isso que ao final de seus filmes da fase surrealista, surgem interpretações divergentes. 
Buñuel nos provoca a pensar!!
O Surrealismo coloca em questão a perspectiva de uma consciência que imagina construir um entendimento final após o encadeamento de idéias que se associam. É difícil olhar uma tela de um pintor surrealista e não se indagar sobre os múltiplos sentidos que ela desperta. Parece-me que foi isso que Buñuel fez neste filme: mesclou elementos que podem ser utilizados como simbolismo para que possamos elaborar múltiplas perspectivas de interpretação.
Finalmente, quero concluir este texto suscitando o que no filme considero de suma importância como conclusão da escolha da interpretação que escolhi.  O “livre arbítrio” e o medo são temas presentes do início ao fim do filme, quer de maneira explícita ou implícita. Vou fazer apenas uma breve explanação e “deixar no ar” algumas interrogações.
Aparentemente todos os personagens do filme possuem a capacidade de escolher o que desejam, uma vez que pertence a uma classe social detentora de capital econômico. Esse privilégio os torna possuidores de privilégios de bens culturais compartilhado por hábitos e identificações semelhantes no que diz respeito aos comportamentos, gestos, escolha do vestuário, organização e objetos domésticos ostentados como símbolos de sucesso, demonstração de poder com subalternos. Todos esses “predicados” estão unificados por uma visão de mundo.
Por que, então, os personagens não exercem o “livre arbítrio”? O que os coloca em “condição sub-humana”, a ponto de todos guerrearem contra todos? Onde nascem os desejos? Decidimos sobre o que desejamos?
Reinaldo Silva

terça-feira, 30 de outubro de 2018

Soldados do Araguaia( 2018,Belisário Franca)



Apresentação do filme e roda de conversa com o roteirista Ismael Machado.


SOLDADOS DO ARAGUAIA: EXPERIÊNCIA FÍLMICA E SENSORIAL

Elias Rodrigues chora ao lembrar a cena.No auge da Guerrilha do Araguaia, foi obrigado a prender o próprio pai em Marabá, sudeste do Pará.Corriam os anos 70 e a ação subversiva do pai do então soldado Elias era manter em casa livros considerados subversivos.Durante dois dias, ele foi submetido a torturas na famigerada Casa Azul sem que o filho pudesse fazer qualquer coisa..Depoimentos como esse estão contidos no documentário " Soldados do Araguaia", mais recente longa da produtora carioca Giros Projetos Audiovisuais..O filme foi convidado para a 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em outubro de 2017, com excelente recepção.O documentário também obteve o terceiro lugar no Prêmio Nacional de Direitos Humanos(categoria documentário) em Porto Alegre, dezembro passado.
Com roteiro de Ismael Machado e Belisário Franca, dirigido por Franca- que também assina Menino 23- e fotografia de Mário França, o longa tem,o apoio do Cinebrasil TV e aborda de forma inédita o ainda nebuloso episodio da Guerrilha do Araguaia.Dessa vez o relato é feito pelos  próprios soldados de baixa patente que precisaram combater guerrilheiros nas matas do Araguaia sem que houvesse preparo adequado para isso.E pior,foram submetidos a praticamente os mesmo tipos de tortura e humilhações que deles se queriam no confronto com os combatentes esquerdistas.
Há relatos de soldados que se tornaram mutilados físicos e mentais após o conflito,Praticamente todos foram abandonados à própria sorte logo que a Guerrilha foi exterminada.Sem amparo econômico e psicológico, restaram aos soldados os traumas e seqüelas de uma campanha militar inglória.
O pontapé inicial para o documentário foi uma série de reportagens feitas por Ismael Machado no Pará em 2013 abordando relatos de ex-soldados da guerrilha.A reportagem, publicada no  jornal Diário do Pará, chegou a ser finalista do Prêmio Esso.Já atuando como roteirista, Machado levou  a história até a Giros, iniciando  a partir dai  o trabalho de pesquisa e seleção de personagens junto a produtora executiva do documentário, Michelle Maia.
As filmagens foram realizadas em Belém, Barcarena, Marabá e Rio de Janeiro.Os depoimentos colhidos por Machado e Belisário Franca relatam situações onde a violência imposta pela ditadura militar não poupava sequer seu próprio  braço armado.O episodio é descrita pela psicóloga paraense Jureuda Guerra ,como o "Vietnã brasileiro", pois também se tratou de uma guerra suja , que o Exercito buscou manter sob o mais  profundo silêncio.
"Soldados do Araguaia" tem um grande diferencial em relação a outros filmes do gênero.É um documentário que foge das amarras dos simples depoimentos, buscando complementar os relatos com imagens e sons característicos da região.É  uma experiência fílmica e sensorial impactante.

domingo, 30 de setembro de 2018

Terra em Transe ( 1967, Glauber Rocha)



Indicação e apresentação do filme: Joaquim Ferreira


" Todos somos simpáticos, desde que ninguém nos ameace"( Jornalista Paulo Martins, em Terra em Transe) 

Terra em Transe (1967), parecia um delírio há 50 anos. Agora pode ser visto como uma profecia do Brasil atual e revelou-se premonitório.
Como no drama do diretor baiano, as instituições se convulsionam: políticos de todos os partidos, juízes, promotores e empresários se acusam entre si. Gritam meias-verdades – rebatizadas de “pós-verdades” – em nome de um “povo” que ignoram. Como se não bastasse, as esquerdas não chegam a um acordo sobre como derrubar um governo que consideram “golpista”. Tanto no velho filme como no Brasil de agora, os cidadãos acordam para um pesadelo cotidiano onde não veem saída nos políticos, envolvidos em retórica lunática. Nos 51  anos de “Terra em Transe”, a ficção prefigura a realidade. Situação que faz jus ao excêntrico Glauber, que sonhava em fazer do Brasil uma potência econômica e cultural, nem que para isso fosse preciso atrair políticos para viabilizar projetos. É dele a frase: “A História é feita pelo povo e escrita pelo poder” — com a ajuda dos intelectuais, pode-se acrescentar
A trama de Terra em Transe é uma alegoria política. Um texto que faz uso de elementos históricos muito próprios do Brasil e da América Latina como um todo, especialmente porque não se nega a mostrar as diferenças sócio-políticas, a larga oferta de posturas ideológicas, o embate quase infantil entre povo e poder, o uso da força militar ou do assassinato político para calar vozes dissonantes, seja nas ruas, seja nas alas do pequeno e grande Congresso.
Através de todos esses fatos observados no Terceiro Mundo, Glauber Rocha nos apresenta a crônica de uma ascensão ao poder e de uma subsequente derrocada.
O herói de “Terra em Transe” é o poeta e jornalista Paulo Martins, vivido por Jardel Filho, especializado em trabalhar para políticos. Na fictícia república de Eldorado, campanhas políticas são polarizadas e confusas como as que deram justificativa ao golpe de 1964 e ao impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016. Dois líderes populistas disputam a Presidência: o religioso Porfírio Diaz (Paulo Autran) e o ex-sindicalista Felipe Vieira (José Lewgoy). Paulo é assessor de Diaz, mas se enoja com falsas promessas e passa a apoiar o opositor. Erra de novo. Como o rival, Vieira jura combater a fome e governar “para todos”. Mas faz um pacto com políticos e empresários desonestos. Entre eles, Júlio Fontes (Paulo Gracindo), o magnata da TV.
Paulo Martins, o jornalista que assume a narração e o tom de quase letargia impresso no roteiro, é o personagem de maior destaque do longa. É através dele que vemos os lados opostos da moeda, o conservadorismo de Diaz, o populismo ineficiente de Vieira. Com o sonho de ser poeta e falar sobre temas políticos, Martins é, na verdade, um observador desgraçado dos fatos que ele julgava ter algum controle sobre. Seu ego e talvez fé extrema nas mudanças sociais o fizeram-no apoiar e trair, difamar e promover campanhas políticas e representantes que um dia desprezara. Favores, dissimulações e ignorância nas vozes que supostamente deveriam lutar contra o erro, contra a corrupção. A velha e constante hipocrisia de políticos messiânicos e partidários cegos.
E aqui, o povo não recebe a visão social e manipulada por promessas divinas, como vimos em Deus e o Diabo na Terra do Sol. O contexto todo é ampliado para situações que beiram ao constrangimento, mostrando a facilidade de qualquer um obter apoio popular, independente do discurso que faça (por mais infame que seja) e das situações que forjam nos Palácios do Governo.
O povo em Terra em Transe não é apenas o faminto romeiro de Deus e o Diabo. Ele deixa-se levar facilmente por qualquer promessa milagrosa e tendenciosamente
Fazendo uso de uma estética experimental muito particular, Glauber Rocha intensifica a sensação de transe no próprio público, que observa ente tiros de metralhadoras, música e Villa Lobos, valsas famosas, óperas e jazz a entrega de simpatizantes governistas à farra e aos comícios, tudo filmado através de uma perspectiva que faz os atos parecerem grandes novidades, quando, na verdade, são a repetição de algo bem antigo ou a revelação de uma situação que ocorria às escondidas há bastante tempo. Algo que todos simplesmente ignoravam, fingiam não ver, diziam não se importar. Toda a esfera pública é posta no jogo. De quem é… a quem fabrica a notícia. Do empresário ao grevista. Dos sindicalistas aos arquétipos femininos vistos nessa dança pseudo-democrática, cabendo tudo, da santa revolucionária à puta alienada.
O longa exige uma atenção enorme do espectador. Como a narrativa é quase toda contada em flashback e esta, em ordem não-linear e não é difícil nos perdermos um pouco no início, confundirmos nomes ou a localização dos personagens, seja em Alecrim, seja em Eldorado. Aos poucos, porém, entendemos a intenção do diretor e o filme é compreendido sem mais nenhum problema.
Contando com um grande elenco (que infelizmente é prejudicado pela dublagem), Terra em Transe consegue passar uma mensagem política forte e uma visão social que pode incomodar bastante gente.
Lançado em meio à ditadura militar, a obra chegou a ser proibida e sofreu cortes e diversas solicitações de mudança pela censura, além de ter sido chamada de “fascista” por Fernando Gabeira e outros intelectuais da época.
Um ciclo que mal chega ao fim e já se funde a outro, ainda mais cruel que o anterior, vestido com as roupas da moda e com palavras ou sistemas de salvação político-econômicos, algumas faces supostamente inovadoras e muita demagogia, fazendo da política a arte de botar uma terra inteira em estonteante transe.

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Esse Obscuro Objeto do Desejo(1977,Luis Buñuel)



Indicação,apresentação do filme e texto : Reinaldo Silva

                                 Buñuel: o Surrealismo visita o Cinema
É de notório conhecimento a influência que alguns diretores de filmes tiveram com o movimento Surrealismo, surgido após a Primeira Guerra Mundial, cuja influência ultrapassou os campos da literatura e das artes plásticas, expandindo-se para o teatro, a escultura e o cinema. Mas, o que foi o Surrealismo, gestado na França na década de 1920? Qual a sua importância para o cinema até os dias de hoje? O que o movimento Surrealismo fez emergir?
O Surrealismo é uma proposta crítica ao pensamento racional constituído por padrões culturais que valorizam a consciência em detrimento à imaginação dos indivíduos, entendendo que sua crítica é baseada na psicanálise freudiana, principalmente na valorização do acaso e das fantasias. É, portanto, uma crítica sobre a nossa limitação em acessar uma forma de pensamento que possa ir além do que observamos e aprendemos a chamar realidade. Vou tentar expor como Buñuel aplica a técnica do Surrealismo no filme. Vamos imaginar que em uma determinada cena em que dois personagens aparecem dialogando, ocorre um barulho e em seguida um rato preso na ratoeira, e logo em seguida o diálogo é retomado. Nossa consciência estava direcionada para cena e sofre um abalo. Na maioria das vezes isso sequer é percebido pela maioria dos espectadores. Somente revendo o filme ou por intermédio de comentários e leitura de textos complementares, somos despertados para o fato. No transcurso do filme várias cenas semelhantes irão surgir com a inserção de elementos distintos irão aparecer para questionar a nossa consciência sobre o real sentido do que iremos ver.
Existe também uma crítica política e social do Surrealismo direcionada a noção que ficou conhecida como “racionalidade instrumental”. Trata-se do uso humano da razão ocidental em tecnologia de extermínio, como ocorreu Primeira Guerra Mundial e para submissão e exploração das nações dependentes. Em síntese, o Surrealismo é um movimento cultural que critica o modo de produção capitalista (uma visão do marxismo da época) tanto no que ele apresenta como padrão de consciência para aquisição e expressão da imaginação dos indivíduos, quanto à incapacidade de promover a igualdade, liberdade e fraternidade (palavras de ordem da Revolução Francesa) entre as nações e indivíduos.
No Brasil as noções surrealistas começaram aparecer entre 1920 e 1930 por intermédio do Movimento Modernista. O escritor Oswald de Andrade, juntamente com Tarsila do Amaral, Maria Martins, Cícero Dias e Ismael Nery são conhecidos como os representantes que obtiveram maior visibilidade social neste período.
Desde a década de 1980 revi diversas vezes os filmes de Buñuel, principalmente este que iremos assistir. Mas é incansável, melhor ainda, fascinante !!!!


PROVOCAÇÕES
                 Esse Obscuro Objeto do Desejo
Como você interpreta a presença durante a narrativa do filme de um rato preso na ratoeira, uma mosca morta num copo de bebida, sacos de panos com conteúdo não identificado e atos terroristas praticados por um grupo que tem em sua legenda o nome de Jesus Cristo?
As provocações acima sugeridas estão inseridas num contexto apresentado sob a forma de um “duelo” entre um homem idoso que deseja sexualmente uma mulher jovem, cabendo a cada um dos personagens fazer uso do oportunismo, da sedução, da manipulação, do ciúme e do sadomasoquismo, como elementos estratégicos para dominação.


Reinaldo  Silva

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Monsieur & Madame Adelman(2017,Nicolas Bedos)



Indicação e apresentação do filme: Bernardo Timm

Texto: Manoel Góis
Monsieur et Madame Adelman é filmaço de Nicolas Bedos. A gente vai ver um filme sobre o funeral de um talentoso escritor e acaba assistindo à estória de uma mulher que traça suas estratégias para conquistar o que quer na vida. Bedos é também roteirista em parceria com a atriz Doria Tillier e os dois vivem ainda os protagonistas do filme. A trilha é outro destaque com Gilbert Becaud e clássicos como You 're a lady ( que eu não ouvia há pelo menos 40 anos ). O roteiro é divertido e brilhantemente contextualizado por acontecimentos políticos importantes para o povo francês  E já estreia clássico com cenas memoráveis como a do jantar na casa da família do escritor Victor e a da visita ao sogro no hospital. Cômicas, impagáveis e consistentes.

terça-feira, 31 de julho de 2018

Hiroshima, Meu Amor( Alain Resnais;1959)



No dia 6 de agosto de 1945, a cidade japonesa de Hiroshima foi alvo de um ataque nuclear que resultou em cerca de 140 mil mortos. Quatorze anos depois, o cineasta francês Alain Resnais lançava o filme franco-japonês Hiroshima mon amour, um poema cinematográfico de amor e de morte que lança a questão: como falar de Hiroshima depois da bomba atômica? Como representar tamanha dor e tamanho absurdo? A princípio, Resnais pretendia fazer um documentário sobre os acontecimentos trágicos de agosto de 1945. No entanto, o cineasta decidiu incluir elementos de ficção ao seu projeto e designou a escrita do roteiro e dos diálogos do filme a ninguém menos que Marguerite Duras.
Alain Resnais é um dos mais célebres cineastas franceses, tendo sido um dos responsáveis por lançar um olhar novo sobre a forma de se fazer cinema nos 50 e 60. Contrariando formas narrativas tradicionais, explorando de uma maneira particular e moderna o potencial da linguagem cinematográfica, Resnais construiu uma filmografia impressionante. Dentre suas obras mais conhecidas, encontram-se Noite e Nevoeiro (1955), O Ano Passado em Marienbad (1961), Amores Parisienses (1997) e o recente Medos Privados em Lugares Públicos (2007). O diretor nonagenário acabou de lançar seu último longa-metragem, Vous n'avez encore rien vu (201
Desde sua primeira projeção oficial, na edição de 1959 do Festival de Cannes, Hiroshima mon amour foi apresentado como o fruto de uma colaboração estreita entre Resnais e Marguerite Duras, um dos maiores ícones da literatura francesa do século 20. Além de romancista consagrada, dramaturga e roteirista, ela dirigiu 15 longas-metragens, dentre eles o cult India Song (1975). Marguerite Duras chegou a ser indicada ao Oscar em 1961 pelo roteiro de Hiroshima mon amour. Pouco tempo após o seu lançamento, o filme teve seu script publicado em livro, o que prova a força poética do texto de Duras. No entanto, mesmo que o roteiro do filme possa ser lido separadamente, o texto de Duras encontra nas belas imagens de Resnais um eco e uma ressonância responsáveis por fazer, dessa obra-prima, um exemplar único na história da sétima arte.
Hiroshima mon amour se passa em 1957 na cidade que dá nome ao título. Em Hiroshima, uma atriz francesa (da qual nunca saberemos o nome) participa de um filme que fala justamente sobre a paz. No dia que antecede sua partida, ela encontra um arquiteto japonês (cujo nome também não é revelado) com quem ela tem uma intensa aventura amorosa. Esse encontro provoca uma série de reflexões sobre os acontecimentos da História que culminaram no bombardeamento em Hiroshima e Nagasaki, assim como os acontecimentos que marcaram a história pessoal da atriz, incluindo seu passado amoroso. O filme opõe e estabelece uma relação poética entre uma tragédia pessoal a uma catástrofe coletiva.
A questão da memória e do esquecimento é um dos elementos centrais do filme. A relação amorosa estabelecida em Hiroshima permite a reconstituição de um trauma do passado da jovem atriz, um episódio esquecido que remonta à época em que ela vivia em Nevers, pequena cidade francesa. O apelo à memória faz com que a personagem reviva e redescubra o que se passou em Nevers, como se os elementos esquecidos e reprimidos de seu passado e os fragmentos de sua história viessem à tona em sua consciência. Resnais e Duras traçam assim um paralelo entre o destino trágico de um indivíduo e o horror coletivo das vítimas da bomba atômica.
Após Auschwitz e Hiroshima, muitos artistas viram como necessária a invenção de novas formas artísticas. Hiroshima mon amour se interroga sobre a possibilidade de filmar aquilo que é irrepresentável e dizer aquilo que é indizível. As figuras de repetição presentes no texto de Duras, as elipses narrativas, a montagem baseada em associações e analogias e a representação de imagens mentais participam dessa tentativa de apreender o impossível. Não por acaso os críticos da célebre revista Cahiers du Cinéma chegaram a afirmar que Hiroshima mon amour é um filme sem precedentes na história do cinema, enfatizando sua modernidade.
Hiroshima mon amour é um filme que apresenta uma dupla dimensão: uma dimensão íntima e uma dimensão histórica. Essas duas dimensões se sobrepõem através da evocação à memória, ao passado, ao esquecimento e ao trauma. Alain Resnais e Marguerite Duras fazem um filme sobre Hiroshima a partir da premissa de que é impossível se fazer um filme sobre Hiroshima. E nessa tentativa de captar algo que testemunho nenhum pode comunicar, que está na essência do sentimento da perda e do trágico, eles realizam uma obra-prima única, de um lirismo incomparável.
Para o privilégio dos amantes do cinema, Emmanuelle Riva, a protagonista de Hiroshima mon amour, nos oferece, mais de 50 anos depois do seu grande papel, outro trabalho maravilhoso. Aos 85 anos, ela estrela o incrível Amor (2012), filme de Michael Haneke, ganhador da Palma de  Ouro em Cannes.

http://cinemaemcena.cartacapital.com.br/coluna/ler/506/hiroshima-mon-amour

terça-feira, 19 de junho de 2018

Os Fuzis(1964,Ruy Guerra)


Indicação ,apresentação do filme e texto : Bernardo Timm

"Um grupo de soldados é enviado ao nordeste do Brasil para impedir que cidadãos pobres saqueiem armazéns por causa da fome."
Essa é sinopse de "Os Fuzis" (1965), Ruy Guerra, cujo, junto de "Vidas Secas" e "Deus e o Diabo na Terra do Sol" constituem o Cinema Novo.
O filme é como a seca, entre os tons de branco e preto percebemos muito do branco, afirmando a terra do sol em uma vida seca. Digo que é como a seca pelo seu ritmo, começa bem devagar, passa a se agravar, e, de uma hora pr'outra chega em seu auge. Vale destacar a produção, com os cantos à voz pura (uma das melhores coisas no filme), e a famosa "uma câmera, uma ideia".
Diria eu que, o filme é sobre como vemos a esperança quando não precisamos dela. A narrativa do filme a circula, mas não narra por ela, não acompanhamos os males da seca, apenas relatos, vendo toda essa fé sendo inútil... Também sobre causas sem soluções, afinal, segundo esse filme, a esperança está morta, digo, a vaca está morta, na verdade são sinônimos, até quem tenta ajudar é morto. Inclusive os próprios soldados não estão lá para acabar com a seca.
Por que "Os Fuzis"?
-Pela idealização do fuzil por um dos soldados ser desbancada pelo Gaúcho, por cena.
-O fuzil simboliza autoridade e segurança, mas também a morte, por semântica.

Bernardo Timm

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Os Fuzis (1963)

Ruy Guerra chega ao Brasil em 1958. Moçambicano, vem após uma passagem pela Europa, onde estuda cinema no IDHEC. Um bicho político acima de tudo, chega com idéias de dirigir filmes e encontra a gênese do Cinema Novo em ebulição. Após a estréia bem sucedida, parte para a filmagem de um roteiro que havia escrito na Grécia, para ser filmado lá, sobre uma pequena vila, a qual está sendo ameaçada por uma matilha de lobos famintos que vai descendo das florestas que a cercam. Os habitantes não possuem armas de fogo, pois o momento histórico segue-se a uma revolução popular, e o povo está proibido de possuir armas. É chamado um destacamento do Exército para protegê-los. Uma vez lá, porém, os soldados entram em conflito com os moradores, e numa escalada, acabam por matar um deles. Escorraçados, mas também assustados, se retiram da vila, e quando a história chega ao fim, os lobos vão descendo das florestas em direção ao povo sem armas para se defender. Ruy decide adaptar o filme para o Nordeste brasileiro, e para isso conta com a ajuda inestimável do roteirista Miguel Torres, um grande amigo, que acaba falecendo num acidente de carro durante as pesquisas de locação para o filme.
A partir da história descrita acima, Ruy e Torres desenvolvem a idéia dos retirantes famintos que chegam a uma cidade. Paralelamente, chega um destacamento do exército chamado pelo grande produtor de alimentos local para proteger seu estoque e o transporte deste para a capital, receoso de um possível ataque dos migrantes. Os retirantes são liderados por um beato místico que prega a adoração a um boi santo que fará chover. A escolha do sertão como paisagem é emblemática do momento do cinema. A partir do pressuposto de buscar uma especificidade nacional, os cineastas procuram-na, num primeiro momento, no interior, e não nas cidades grandes, cosmopolitas por natureza. A paisagem imensa e árida do sertão fascina os diretores e artistas em geral. A descoberta e colocação do povo pobre e sofrido em primeiro plano surge como principal diferencial inicial, e isto está mais do que em qualquer lugar no sertão nordestino.
Ruy escolhe por mesclar uma linguagem entre o documental e o ficcional, embora como ele mesmo deixe claro, a fronteira entre os dois seja difícil de distinguir. O filme se dá em três diferentes registros: primeiro, os retirantes, mostrados de forma quase distante e não personalizada; depois, uma série de depoimentos com um registro muito próximo do documental, com personagens do local falando de acontecimentos passados e de seu ambiente; e, por último, os soldados, que são tratados como personagens individuais e destacadas. Ruy se alterna entre estes três elementos, que vão, na sua soma, adquirindo significado por um movimento de oposição e aproximação entre eles.
Neste estrutura de narrativa paralela, em blocos, o tratamento formal diferenciado adquire múltiplos significados. As cenas documentais (que como o diretor revela, só o são na aparência e na autenticidade da presença daquelas pessoas da região, mas que de fato são depoimentos passados a elas por ele mesmo) possuem uma duração longa, sempre em plano parado. Com isso, Ruy consegue duas camadas de significação diretas: primeiro, fala do estado de imobilidade natural daquelas pessoas, para quem aquela situação, e suas lendas e mitos já duram séculos. Segundo, consegue passar uma idéia de uma cultura principalmente oral, que passa adiante seus conhecimentos desta forma, na qual, portanto, o importante é ouvir.
Mais interessante ainda é o tratamento dado aos soldados. Como elementos estranhos ao local, tudo neles é diferenciado. Ao contrário de uma cultura oral, eles são retratados de forma muito mais visual, dinâmica, pois representam uma certa modernidade. Por isso, a câmera se aproxima em closes e se move o tempo todo. No entanto, não são cortes rápidos, e sim movimentos em plano-seqüência, que parecem indicar que eles precisam se adequar e sentir a passagem de tempo longo, típica do sertão.
É vital no cinema de Ruy Guerra compreender o plano-seqüência como elemento de distensão temporal e espacial. Temporal pois ele mostra os efeitos da passagem de tempo sobre os personagens, e o espectador. E espacial, pois ao se movimentar sem cortes por um local, ou ficar parado longamente, permitindo a visualização de grande profundidade, acaba por aumentar a percepção deste local. Vale dizer ainda que, segundo Ruy, é impossível não se pensar tempo em função de espaço e vice-versa. Ao usar o plano-seqüência, ele os unifica, como Picasso fazia ao pintar uma figura de frente e perfil ao mesmo tempo. Se houvesse o corte, mesmo que seguindo cuidadosamente o "raccord", haveria uma fragmentação de ponto de vista que, necessariamente, leva a uma fragmentação de tempo e espaço. Por isso, Os Fuzis, mesmo em seus momentos mais dinâmicos é pensado na estrutura dos planos-seqüência, muitas vezes com longos e elaborados movimentos que vão de um personagem ao outro, permitindo que a ação do primeiro seja digerida e leve à reação do segundo. Esta estrutura formal, além desta distensão rítmica-temporal, deixa entrever um grande rigor de composição, resultado do magnífico trabalho do outro estrangeiro radicado no Brasil, o diretor de fotografia argentino Ricardo Aronovich. A sofisticada formação teórica de Ruy Guerra e Aronovich tornam o trabalho visual de Os Fuzis algo bastante distinto da secura de um Vidas Secas, e houve os que criticassem o filme por seu excesso de beleza visual.
Mas esta crítica parece menor perto do trabalho de composição da história, na qual surge a figura de Gaúcho, um forasteiro que fará a intermediação entre os retirantes e os soldados. Enquanto os retirantes são retratados de forma coletiva, com seu sofrimento cercado por um imobilismo relacionado ao misticismo, e os soldados surgem como figuras ligadas ao mundo moderno e dinâmico, mas a serviço das ideologias mais anti-revolucionárias e opressoras do povo pelo povo, Gaúcho encontra-se num meio termo. Ele rejeita a "ordem e progresso" às custas do povo que os soldados representam, mas também não possui uma linha de ação contrária, nem uma ideologia formada. Nós vemos que ele mesmo utiliza o povo e suas necessidades em proveito próprio. Ao longo do filme, sua oposição aos soldados parece muito mais fruto de uma "picuinha" pessoal do que uma capacidade de enfrentamento de classes, até porque ambos pertencem à mesma classe. Quando finalmente sua revolta explode, não é mais que uma explosão pessoal, e por isso mesmo ineficaz contra os sistemas já estabelecidos.
Jean-Claude Bernardet, em seu Brasil em tempo de cinema, o enquadra numa série de personagens de filmes do período como exemplo de que, apesar do cinema brasileiro da época buscar tratar do povo, a solução dos problemas vinha sempre de elementos de fora das camadas populares. Isso, segundo Bernardet, advinha do fato de que os cineastas, membros da classe média, realizavam filmes para esta mesma classe, apenas utilizando o povo como personagem. Assim é que eles não conseguiam localizar neste povo os agentes de mudança. A solução de Ruy no filme, porém, indica uma compreensão deste mecanismo, já que pela morte de Gaúcho e pela inutilidade de suas ações num âmbito social, fica mostrada a inadequação deste caminho individualista na mudança das estruturas sociais. Talvez por vir de fora do Brasil, Ruy parece encontrar um distanciamento crítico nesta questão.
Quando lançado, o filme vence o Urso de Prata em Berlim, mas é cortado por seu produtor antes de estrear no Brasil. Ruy não assina então a versão lançada, e acaba se indispondo com outros realizadores do Cinema Novo por achar que alguns deles apoiaram o produtor nesta decisão. A crítica se divide em ferrenhos opositores e defensores entusiasmados. Sentindo-se mal-vindo, ele acaba por sair do Brasil novamente. Em 1977, acaba realizando A Queda, um raro caso de continuação no cinema brasileiro, um filme que encontra os personagens de Os Fuzis quase 15 anos depois, morando no Rio de Janeiro e envolvidos com as questões urbanas e operárias. Este filme teve 2 votos na contagem desta votação. Independente da recepção na época, com o tempo Os Fuzis tornou-se um marco do cinema nacional, prova disso é que esteja nesta lista, quase 40 anos após sua realização.

http://www.contracampo.com.br/27/fuzismatraga.htm

terça-feira, 12 de junho de 2018

Dersu Uzala( 1976, Akira Kurosawa)




Indicação, apresentação do filme e texto:  Anneliese Kraus

       É o 26º filme do diretor Akira Kurosawa (1910 - 1998). Ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro de 1976 e Prêmio de Ouro do Festival de Moscou. Grande sucesso internacional.
         Filme com diretor japonês, mas integralmente falado em russo e com atores russos.
         Adaptação da obra autobiográfica de 1902 de Vladimir Arsenyev.
         História de uma nativo Nanai, caçador solitário nas florestas siberianas que certa vez atravessa o caminho de uma pequena divisão do exército russo que percorre a Sibéria em missão cartográfica.
      O capitão convida Dersu para ser seu guia, já que este conhece bem a região. Assim se desenrola o filme e vai crescendo a amizade entre os dois.
      Com famosas panorâmicas, onde os personagens são vistos de longe e indistintamente. Esse plano exprime a impotência dos personagens dominados pela natureza. As cores do filme ressaltam a natureza selvagem em uma época que a civilização ainda não havia chegado a todos os cantos do planeta. Montagem lenta em meio à natureza selvagem, criando deste modo uma visão contemplativa.
         A segunda parte do filme  evolui mostrando os problemas trazidos pela velhice para Dersu. O capitão oferece moradia para Dersu, mas ele não se acostuma com a civilização.
         O filme tem como tema não só a amizade improvável entre um capitão do exército e um nativo, mas o embate entre o perfeito entrosamento entre o homem e a natureza e o nosso isolamento desta com a consequente exploração desta por aquele.

terça-feira, 5 de junho de 2018

A Frente Fria Que a Chuva Traz (2016, Neville de Almeida)



Indicação ,apresentação do filme e texto: Fernando Terra


A Frente Fria que a Chuva Traz (2016) do cineasta Neville d´Almeida é um filme intenso em diversos sentidos. Dialoga com as contradições da cidade, é um misto de desejos sensoriais e, ao mesmo tempo, conflitantes.
Com diálogos tendendo a uma espécie de escatologia linguística, sons estridentes e drogas, jovens de classe média alta do Rio de Janeiro alugam uma laje no alto do Morro do Vidigal para realizarem suas festas particulares. 
A intensidade da juventude nos faz esquecer que tudo tem um prazo de validade. A frente fria nos remete ao retraimento, à pausa ou um convite à reflexão do que se passou nos dias de calor. Tal como o carnaval, onde a folia corre solta por dias mas sempre chega a quarta-feira.
É sobre o tempo cronológico, metereológico e transcendente.
É sobre a indiferença dos sujeitos no espaço urbano, onde o tecido, tomado de contradições, se esgarça. 

Um filme provocador, sobre a cidade e os sujeitos.

Fernando Terra

domingo, 22 de abril de 2018

A Classe Operária Vai ao Paraíso (1971,Elio Petri)


Indicação e Apresentação do filme : Ricardo Costa

Capitães de Abril ( 2000,Maria de Medeiros)


Indicação e Apresentação do filme :Joaquim Ferreira

Vidas Secas ( Nelson Pereira dos Santos;1963)





Nelson Pereira dos Santos

Nascido em São Paulo, em 22 de outubro de 1928, Nelson Pereira dos Santos iniciou suas experiências com o cinema na década de 1940. Advogado de formação, no início da década de 1950 veio para o Rio de Janeiro e, a partir desse momento, inaugura o caminho que o tornaria um dos mais admiráveis diretores do cinema brasileiro.
Cineasta engajado politicamente, marcou a história do cinema nacional como integrante ativo de diversos movimentos sociais e cinematográficos. Conforme o próprio Nelson indicou, “foram os dez anos de minha formação, do ginásio à Faculdade de Direito, uma viagem a Paris, o casamento, serviço militar, cineclubes, Juventude Comunista, primeiro emprego em jornal, primeiro filme (…) Estava impregnado da certeza de que o Brasil encontraria o bom caminho para ter uma sociedade mais rica e mais justa.(…)”.
Nelson oficialmente fez 27 filmes, destacando-se nessa produção: “Boca de Ouro”(1955) , “Rio, 40 Graus” (1955), “Vidas Secas” (1963), “Rio, Zona Norte”(1957), “Amuleto de Ogum (1974)” e “Memórias do Cárcere” (1984), destaques que são referência da originalidade da obra de Nelson por conta da perspectiva das camadas populares na condução das narrativas, criando assim a base da estética do Cinema Novo no país, movimento do qual Nelson foi um dos precursores e autores mais destacados.
Foi membro do Partido Comunista Brasileiro nos anos de 1940 e 1950, tendo atuado em escolas de formação. Conforme depoimento do próprio cineasta em 2007: “É importante assinalar que, para mim, e acredito tenha sido para muita gente, o Partido foi uma outra universidade. Uma universidade pelo avesso, pois questionava a versão tradicional da história do Brasil, por exemplo. Outra coisa que o Partido proporcionou foi um convívio amplo com pessoas de classes sociais, origens e formações diferentes (…) “.
Em 1950, fez o curta “Juventude”, sobre trabalhadores de São Paulo, destinado à apresentação num encontro da Juventude Comunista em Berlim Oriental e cujo negativo foi perdido. Essa experiência, para Nelson, foi a sua descoberta para o cinema. Em 1951, escreveu na antiga revista “Fundamentos”, que era preciso inventar uma cinematografia que refletisse “na tela a vida, as histórias, as lutas e aspirações do povo brasileiro”.
Em 1955, com a conclusão de “Rio, 40 graus”, Nelson já indicava a trajetória política que marcaria sua carreira. Filme proibido com o pretexto de ser filme de “comunista”, segundo a censura da época, o próprio PCB liderou uma campanha exitosa para retirar a censura ao filme, que foi lançado em março de 1956. Outros dois filmes importantes da obra de Nelson Pereira dos Santos retomam, em momentos distintos, duas obras do escritor alagoano Graciliano Ramos(1892-1953) outro destacado militante do PCB: “Vidas Secas”, de 1938, e ” Memórias do Cárcere”, de 1953, transformadas em filmes em 1963 e 1984, respectivamente.
Em 1963, no período de efervescência política e cultural que antecedeu o golpe que mergulharia o pais na ditadura político-militar de 1964, Nelson lançou “Vidas Secas”, um dos mais importantes filmes cinemanovistas. Indicado à Palma de Ouro em Cannes em 1964, “Vidas Secas” abordava pelo cinema os problemas sociais do Brasil. O filme prima pela honestidade intelectual de Nelson na adaptação da obra de Graciliano para o cinema. Quem leu o livro de Graciliano Ramos percebe a perfeita sincronia entre as duas representações: roteiro preciso, filme conciso, seco, econômico nos diálogos, tal qual o estilo de Graciliano, mas perfeito nas lentes que, sem recursos artificiais, integram imagem, som e texto de forma equilibrada. Os únicos excessos são o retratos da desumanização, da imensa miséria, exclusão e violência sociais retratadas no filme, bem ao neorrealismo italiano, referência importante do estilo de Nelson Pereira dos Santos. Assim, o diretor mostrava que era possível contar histórias com atores não profissionais, cenários externos e escassos recursos. O filme “Vidas Secas” transformou-se num elemento a mais para pensar o Brasil dos anos 1960.
Na adaptação de Memórias do Cárcere em 1984, para o cinema, Nelson retorna a Graciliano Ramos e a sua autobiografia sobre o Estado Novo. Premiado nos Festivais de Cannes e Havana do mesmo ano, o diretor, na realidade, apresenta uma imagem atemporal das ditaduras, das perseguições políticas e dos problemas crônicos da República brasileira, construindo um retrato social do Brasil, que vivia, naquele momento, os anos finais da ditadura militar. E de acordo com Nelson, “no Brasil estava acontecendo o movimento pelas ‘Diretas já’. Vidas Secas aconteceu no começo da ditadura e Memórias do cárcere festejou o final”.
Com a morte de Nelson Pereira dos Santos, o Brasil fica mais vazio intelectualmente. Morreu uma parte significativa do pensamento contemporâneo brasileiro expressado por uma relação da arte com a cultura popular que transcende a tela e trata o cinema não como mero entretenimento cultural, mas como arte que possibilita uma análise profunda da realidade e aponta para a necessidade de sua radical transformação.

Joaquim Ferreira
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