segunda-feira, 20 de março de 2017

Memória Para Uso Diário(2007;Beth Formaggini)


Apresentação do filme : Cecilia Coimbra
Indicação do filme : Joaquim Ferreira
Texto: Reinaldo Silva

A apresentação generosa que a Cecília fez deste documentário, os seus esclarecimentos, as indagações que continuam sem respostas sobre o desaparecimento de militantes políticos que pertenciam aos grupos guerrilheiros de esquerda, numa época histórica dominada pelas ditaduras militares em toda região do continente da América Latina, vai além de uma luta política de caráter ideológico para tomada do poder do Estado.
Vai além porque não se trata apenas de pessoas que lutam explicitamente contra um regime autoritário. Isso fica esclarecido nos depoimentos das narrativas. São mulheres em busca de “corpos infames”, classificação genérica para “marginais”,”terroristas”, “favelados”, “desocupados”, “traficantes” etc. Eles desapareceram, continuam a desaparecer e são ameaçados de extermínio. São matérias primas cultivadas pelos dominantes ocasionais que regulam a violência jurídica, manipulando o sentido das leis, ampliando a força política de um Estado aparelhado para difusão do medo, esse sentimento que nos torna refém de grupos interessados na manutenção do silêncio e do cinismo socialmente devastador, que conforma nossas ações e pensamento.
É fundamental mencionar que o filme foi realizado por mulheres em busca de respostas para o desaparecimento de seus filhos e filhas, de seus parentes e amigos. Há um elo que une essas mulheres. Todas as mulheres, que isso fique claro. Uma cumplicidade oriunda de um sentimento ancestral de parir a vida humana quando da ameaça e da perda inexplicável de um corpo humano gerado. Mulheres que não foram silenciadas, que não aceitam as explicações dos representantes dos dominantes. Não aceitam o chavão dos torturadores nazistas: “estava apenas cumprindo ordens”. Também não aceitam dogmas freqüentemente utilizados pelas mídias, que serviram e servem como indutores da prática da tortura.
Basta assistirmos os programas de apelos com dramatização de seus apresentadores nos diversos canais abertos da televisão ou as manchetes explícitas dos jornais e revistas semanais, onde se justificam assassinatos de pessoas, onde são entrevistados todos os justiceiros de uma justiça justa, entronizados como defensores da ordem pública para manter privilégios. Aquelas mulheres não aceitam a “banalidade do mal”, porque o “mal” não vem das trevas. Ele é reproduzido cotidianamente para enfraquecer pela força que manipula o medo. O “mal” não é um ser abstrato que paira sobre as nossas cabeças. Não há como esquecer. Não querem esquecer. O silêncio não é aliado da Memória que está exposta neste documentário. A “sublimação” não é uma saída ou um contorno substituto da dor dessas mulheres.

Por uma genealogia da violência na formação social brasileira.

Esse tema é fundamental para entender a nossa formação da violência em nossa sociedade. E de todos nós. E de fazermos as mesmas perguntas para nós mesmos e nos lugares onde estamos envolvidos, nos espaços em que convivemos ou desejamos conviver, nas ocasiões em que o tema “A Violência” for debatida em seus diversos aspectos:
“o que estamos fazendo de nossas vidas?”; “em condições sociais queremos viver?”; “o que nos fortalece ou entristece na sociedade em que vivemos”; “como mudar o nosso pensamento e as formas de ações que estão inseridos em nossa formação social?”.
 No meu entender, qualquer análise cujo objetivo seja a elaboração de uma genealogia da violência na formação social brasileira, terá que levar em consideração esse documentário e os filmes do diretor Sérgio Bianchi, principalmente o seu filme “quanto vale ou é por quilo?”.
Faço uma ponte interpretativa entre esses dois elementos sobre a gênese, a continuidade e sofisticação da violência em nossa formação social desde o período colonial. Os pressupostos da violência como um corpo presente nas interpretações dos principais estudiosos do tema, dos documentos, vídeos etc.
Mas o que é uma genealogia?
Ela parte de uma constatação. Não há nada em nossa cultura que não tenha uma história, um desenvolvimento, laços contínuos e descontínuos. E que permanecem em nossas ações sobre formas de resíduos conscientes ou inconscientes. Não nascemos prontos. Somos afetados e afetamos o mundo com nossas ações. Uma espécie de molécula com suas enzimas em constantes mudanças. O que pensamos e nossos sentimentos não são frutos de meros acasos. Não existe um tal de livre-arbítrio. Agimos em função dos ensinamentos transmitidos na cadeia de relacionamento que fazemos desde a nossa infância, seja no ambiente familiar e nas relações sociais que mantemos ou iremos manter ao longo de nossa vida.
Não é aqui o local propício para o desenvolvimento de uma genealogia da violência na formação social brasileira. Para isso seria necessário dispor de documentos, desde a nossa colonização a origem histórica desta violência, sua transmissão secular, os dispositivos que a tornam possível ainda hoje, como por exemplo, as mídias de todos os gêneros pela importância que exercem na contemporaneidade. A utilização de métodos arqueológicos, que servissem como uma espécie de pá para retirar os traços da violência, que dia a dia nos é apresentada de maneira naturalizada e banalizada sobre as imagens exemplares da justiça dos agentes defensores de nossa segurança.
Talvez nossos preconceitos e nossos medos fossem compreendidos de uma forma diferente do temor que sentimos ao nos aproximar de pessoas que consideramos estranhas.
Por isso acredito que as mulheres que vem a público por intermédio deste documentário exigir que os “corpos infames” sejam localizados, fazem uma arqueologia em busca de uma genealogia da violência na formação social brasileira.
 Abraços
Reinaldo





domingo, 12 de março de 2017

Frida ( 2002;Julie Taymor)


Indicação e apresentação do filme: Viviane Heringer e Romina Carvalho
Texto: Viviane Heringer

    Este filme retrata a vida desta mulher que foi um ícone do seu tempo. Frida quando jovem sofreu um acidente que lhe trouxe uma vida cheia de barreiras e dificuldades, fato este que não impediu que fosse um ser humano brilhante em diversos aspectos. Apresenta-se nesta obra uma artista incrível, que usa suas emoções cotidianas e sentimentos mais pertinentes como fontes de inspirações para sua arte. Além de sua vida conturbada pela doença vemos uma história de amor vivida por Frida, um amor que se mostra além dos costumes do seu tempo, cheio de encontros e desencontros. Enfim, poderemos ver uma vida de uma mulher, artista, comunista, revolucionária, transgressora do seu tempo. Mostrando um cotidiano cheio de lutas, desafios e amores.

A Cidade das Mulheres (1980, Federico Fellini)


Indicação  e apresentação do filme: Reinaldo Silva e Joaquim Ferreira
Texto:  Filippi Fernandes

A câmera se posiciona em direção ao túnel, de formato oval. Vê-se a grama na lateral e as paredes de tijolos encardidos pela fumaça. O túnel parece um dos mais ordinários. Tanto que se não fosse pelo movimento rítmico do comboio, não entraria. Se trata de um trem, ao que tudo indica. A fumaça, o apito, a tração. Por incrível que pareça há a presença do verde nas laterais, típica das paisagens esquecidas (vide "Stalker", por exemplo).
 O trem entra com tudo.  Por algum tempo, o que se vê é o que se ouve: o ruído dos metais, o ritmo mecanizado, ininterrupto e sem pausa para reticências, como num adormecer das imagens.  Mas o shot que se segue, acorda. E ele é o mais traiçoeiro de todos, pois dali todo um argumento se construirá. O trem sai do túnel - é o que a imagem falsamente revela. No interior de um vagão vê-se um homem adormecido. Diante dele, uma garrafa de vidro com água e uma mulher vestida elegantemente. O homem dorme sentado, encostando o queixo no peito. Mas ele não dorme como aqueles que vemos no metrô. Ele dorme mediante uma situação irrisória num trem que se agita, num trem que bamboleia e o faz saltar de segundo a segundo. A mulher sentada à sua frente o olha, o observa com um quê de sorriso nos lábios, tal qual uma criança indefesa. Quando a garrafa de vidro está prestes a cair, age como em reflexo, segurando-a a tempo. Parece não estar de todo desconectado, como aparenta. Abre os olhos lentamente como quem se espreguiça e se depara com ninguém menos que...ela. Ela, por onde toda aquela aventura de afetos começará, ela a mulher fetiche, ela, tão somente ela. O sorriso morno se abre. A mulher relança um sedutor olhar e um quê tanto interessado. Talvez ainda mordesse a ponta dos lábios. E antes de qualquer palavra, sai.
 Ele é motivado a ir atrás daquele mistério. No corredor estreito das longas horas, há uma miríade de pessoas de todos os tipos, de todas as classes, pessoas que ocupam o corredor tão somente para afastá-lo do mistério. Ele não desiste fácil. Consegue se desvencilhar deles até chegar no que seria um banheiro feminino. Põe-se a observar pela porta entre-aberta, a mulher em frente ao espelho. E com muito cuidado e discrição, entra. Assim que entra, fecha a porta, como bem entendedor de olhares e de mistérios. A partir daí, há todo um jogo de mãos e enquadramentos angulares que, se não fosse felliniano, certamente passaria por brassiano: mãos masculinas nas nádegas femininas, aquela que tudo tem, aquele que nada tem etc etc. E a prova disso são as luzes vermelhas e azuis ao fundo, bem atrás da privada, tal qual estivessem numa boate que sacoleja e chacoalha os aventurados para emoções desfigurantes. No entanto, o trem repentinamente para e um cai sobre o outro, quebrando a magia do instante proibido, tal qual um pai que bate na porta do filho ou filha. É anunciada a chegada numa tal estação. A mulher precisa descer. O homem fica a segurar o desejo nos braços, como se fosse o grande beneficiário. Tenta convencê-la a ter pena dele. Mas ela já conhece aquele jargão e sai.
 Ele a segue com mais vontade e, na tentativa de fazê-la ouvir, se delicia ao saber que ela é uma aventura, uma "maluca", como diz, ao constatar que ela desce no mato, no sentido contrário à estação. Ele a segue. Precisa morrer em gozo consagrado, nas experiências televisionadas em altas horas da madrugada. O trem precisa partir, o seu desejo também. Os olhos ficam centrados e o chama a cada momento, a cada segundo, naquele caramanchão palpitante. Quando se dá conta, a razão se foi e com ela, o trem e os compromissos de carreira. É preciso seguir em frente, naquele matagal alto, naquele desejo de amém. Acelera os passos e consegue alcançá-la, junto a uma árvore. Como adolescentes, atuam. Ela o engana ao dizer que há surpresas e pede para fechar os olhos. Mas não há nada, pois o maior interessado é ele, conhecedor de peias, ao segurar seu falo erguido e irrequieto. Ele que precisa de uma ajudinha. Ela o entende, como se o conhecesse e desaparece aos seus olhos. Retoma a busca, sedento, até encontrá-la novamente. Nesse ínterim, acaba encontrando um tal arco ou faixa gigante com alguns letreiros sinuosos. E antes mesmo que pudesse ler, escuta várias vozes femininas alvoroçadas. Ali, bem ali. Sua curiosidade alucina. Ali passa a ser o seu panteão: mulheres de todos os tipos, de todos os gostos e atravessamentos. Mulher-gorila, mulher-futeboleira, mulher-diretora, mulher-intelectual,mulher-sirigaita, mulher-diva, mulher-policial, mulher-cavaleira, mulher-diagramadora, mulher-psicanalista, mulher-frida, mulher-salomé, mulher-amazona, mulher-garçonete e todo uma plêiade de ofícios, nomes, tipos e atitudes conscientizantes e conscientizadoras. Tratava-se de um congresso de feministas, tão e simplesmente. Algo do qual a modernidade precisa, enquanto houver a sevícia e a falta de comunicação, enquanto houver a imobilidade objetificadora em um dos lados.
 Elas não estão conversando ali sobre paixão ou amor,mas sobre auto-gestão, auto-defesa, em como aprender a conviver com a solidão. Mas ele quer e por querer, adentra aquele país em busca do desejo perdido. Os homens que antes administravam o hotel ficam atordoados pelo reino destituído. Naquele hall de entrada, há uma confluência de feminilidades e extravagâncias, sobes e desces, esquerdas e direitas, só faltando a quem possa se dependurar no lustre de cristal, naquele palácio de inverno agora conquistado pelas invaginações.  
 O invasor adentra. Assiste a toda aquela militância com uma certa satisfação e curiosidade. Ninguém o vê ali. Em cada sala uma atividade, cada qual mais lúdica que a anterior. Cinema e teatro à serviço da informação e do humor. Mas ele contempla, sobretudo, atrás das pilastras de mármore, aquela masculinidade esquadrinhada pela sensibilidade feminina. Para ele está claro: são universos distintos. O leitor arguto, contudo, perceberá que o que há aí de paralelo foi construído, que acima de qualquer brincadeira e fundo de verdade há Thânatos e Eros, e que os adultos sofrem de infantilismo mental. O intruso ali, de repente, é capturado pelo olhar da mulher que o atraíra até ali e que, no meio de tantas outras feministas, o entrega com várias verdades sobre seu machismo descarado. Ele recua, recua, até que a indiferença verta em inferno sem sombra, nem água. Ele cresce de tamanho de uma hora para outra e passa a ser o modelo do ódio delas, a configuração das certezas delas.
 Numa das salas daquele palácio, um silêncio o surpreende. Ali, uma mulher-ideal o seduz, chamando-o para patinar. Babão, segue. Lá descobre a desgraça: que está entregue à elas e que tudo ali conspira contra seus pulmões. Um mundo de mulheres patinadoras o cerca, girando, girando, e ele que cai e não consegue sequer ficar em  pé, como um velho indefeso. É então empurrado maldosamente pelas escadas. Malévolas, todas. Ao levar o tombo, sente-se num porão e pela sombra uma bruxa o convida para levá-lo à estação. Ela troca de roupa no biombo e logo se presta a colocá-lo na moto.  No caminho, percebe que se meteu numa furada mais uma vez, quando ao chegar numa plantação de couves, é conduzido a entrar numa das estufas e ser forçado a ter relações com ela ali, com aquele feminil consumido pelo tempo. Não, aquela ele não quer. E ela o deita num local, ao lado de um ursinho de pelúcia. Ele tenta se desvencilhar até que alguém o surpreende. Uma senhora fica invocada com a situação e se intitula mãe da bruxa. Depois dessa cena televisiva, a bruxa ordena que uma jovem ali próximo, o leve até a estação. A jovem, de pouco papo, o conduz até um carro, repleto de moças jovens. Sente-se melhor assim. No entanto, ele há de convir que as aparências às vezes enganam. Embriagadas, putas, e com um jeito meio punk, elas o infernizam com cigarros, música eletrônica em alto volume e outras extravagâncias dos rebeldes sem causa. Mais à frente encontra um outro carro e repentinamente parece animá-la para algo mais atentador: a corrida. Quando ficaram prestes a se esborrachar, ele desiste o solta do carro. Os carros o perseguem, acendendo as luzes, num terror circense.
 A saída é dada pelo palacete de um tal conquistador de mulheres, que torna a atirar contra os carros. Ele é uma espécie de leão, Zeus a remexer seus bigodes finos de relâmpago - olhos largos, cristalizados. Ele ali parece encontrar um amigo, um ideal de amizade. Ele mostra toda uma coleção de presentes exóticos ofertado por suas pretendentes, ao lado dos seus três cães de caça. Seu nome deveria ser caçador. Ele, de robe, o alimenta com fantásticas históricas de conquistas. 1000 mulheres, segundo ele.
 Ele é obrigado a ficar em sua mansão. Aproveita para explorar a casa e se depara com um cômodo gigante com uma série de painéis instalados e um botão vermelho. Aperta o primeiro. A imagem da vítima aparece e, abaixo do botão, um som capturado por ele, no momento do enlace. Isso o diverte e estimula. Se Zeus aparecesse ali novamente, seria capaz de lhe dar um abraço por ter realizado um sonho de que nunca seria capaz de realizar. Há centenas e centenas de quadros de todos os tamanhos e mulheres para todos os gostos, muitas inclusive glamourizadas, como atriz de cinema. A luz que projeta a imagem só é disparada com o botão vermelho. E há quadros de vidro cobrindo toda a parede, tal qual as galerias inglesas de Conversation Pieces. Mais adiante se depara com uma mulher. É a sua mulher, que de súbito aperta um botão acionando todos os botões simultaneamente. Juntas, dão a impressão de qualquer coisa de perdido, qualquer coisa de incompleto e até inútil. Talvez nunca possa dar-se ao trabalho de colocar as escadas para apertar aqueles botões individualmente.
 Ele se desculpa por ter perdido o trem. Sua mulher tem um rosto pálido, boca vermelha e parece representar assim a mulher-casada, tudo aquilo que as feministas não querem para elas. Nervosa e infeliz, ele tenta encontrar justificativa (pois sempre há uma resposta para suas perguntas). Zeus aparece descendo as escadas, com um ar de vitorioso e o convida para uma suposta festa oferecida para celebrar o 1000º caso. Ele fica encantado por estar ali com aquela pessoa que muito o estima e, ainda por cima, ao lado de sua esposa, que estranhamente o esperava ali (talvez nunca tenha se perguntado).
 Ele se apruma para o tal aniversário. As empregadas fêmeas o conduzem até uma determinada senhora, a única mais velha, que poderia ser, inclusive, a mãe de Zeus. Eles conversam sobre coisa qualquer até que duas mulheres exuberantes, a tal mulher-ideal e uma acompanhante o seqüestram, vestidas como se participassem de um desfile para escola de samba ou de algum musical da Broadway. (nunca Broadway e o carnaval estiveram tão próximos!)  Ele se sente Fred Astaire no meio delas, a segurar a cintura delas, como num grande show. Elas o conduzem à cama gigante. O desejo dele é maior, apesar de conseguir enxergar no exterior da casa a sua mulher lamentando aquela cena.
 A mulher-ideal, de largos seios e sorriso escaldante, antes de conduzi-lo para a cama, o orienta dizendo que nada daquilo parece ser o que é. Mas ele não quer se preocupar com passados ou futuros. Seu desejo de mão-única é por presente e pelo presente, por mais que haja tempestades e redemoinhos. Ele se debate com as pernas, como uma marionete pedinte que quer aquelas duas bundudas. Ele quer as mãos dele naqueles platôs, ele não quer saber de nomes ou vida, por ora. Mas elas não duram muito tempo. A esposa dele chega e parece estar interessada em algo mais e ele, naquela altura, não quer saber de nome ou vida conjugal e tanto que, por mais que ela fique em cima dele, sua opção torna-se um protesto: virar na cama para o outro lado. Ela também vira-se para o lado, em choro. Ele escuta algo debaixo da cama. Rola, cai sobre o tapete fofo e descobre duas ou três maçãs ali; duas delas mordidas. Ele torna a mordê-las com vontade, pois é o que resta daquela frustração.
 Abaixa-se e segue agachado até chegar num determinado local amplo, numa espécie de tobogã, coberto por luzes amarelas, num quê deveras circense. Á distância, consegue enxergar três homens efeminados a conversar sobre aquele reality show de que participam, de Truman. Nós, espectador, não podemos negar. E ele, de pijama, escorrega num sem fim de curvas e caminhos. De repente, fala-se da vida dele, da infância que teve, dos erros cometidos. Ele é a atração do momento, ele é o Marcelo dos filmes do Walter Hugo Khouri, a devassar o ego e o id.
 Mas como toda a festa, uma hora acaba. E por alguma razão, antes mesmo de terminar de descer, as luzes daquele parque de diversão se apagam. Todos vão embora. O céu se torna cinzento, sem aquela iluminação. E o silêncio apavora. O que resta num fim de festa? Um balão inflável sob a forma da mulher-ideal. Ele quer desaparecer nele, como os japoneses com as bonecas infláveis, mas a própria mulher-ideal não o deixa e o estoura. O riso fresco e promissor verte-se numa maquiavélica fisionomia, quando o ar sai.
 Ele cai. Acorda. E lá está ele no mesmo vagão, com a garrafa de vidro na bancada e a mulher misteriosa a sua frente. Ela o olha, firme. Antes que possa pronunciar qualquer palavra, bem ao lado, no mesmo vagão, sentam-se as mulheres ideais, com um riso frouxo estampado.
 Surpresa o filme começar assim, num túnel tão vasto e terminar na mesma maneira como começou: túnel oval, verde grama ao redor, como numa história de não ter mais fim. Quando imaginação e desejo se acasalam qualquer tempo é nenhum.       



sábado, 4 de março de 2017

Violeta Foi Para o Céu ( 2012,Andrés Wood)


Apresentação do filme : Eliana de Andrade;

Textos: Eliana de Andrade e Reinaldo Silva
O filme Violeta foi pro céu é um drama sobre a vida da mulher Violeta Parra, produzido em 2011, pelo diretor Andrés Wood, e filmado em diversas cidades por onde ela passou e morou, entre elas, Varsóvia e Paris.
Ao longo da narrativa do filme o diretor faz idas e vindas, intercalando as etapas da vida da Violeta, mostrando a sua personalidade vigorosa, sensível e frágil, por vezes, intratável e contundente, boêmia e terna.
Andrés nos presenteou com um trabalho delicado e forte, baseado no livro escrito pelo filho da Violeta, Ángel Parra. Oferece a oportunidade de refletir sobre a vida, a obra, a memória, os amores e as esperanças dessa mulher inteligente e criativa, que fez parte da vida de muitos de nós.
Violeta nasceu em 04 de outubro de 1917, sendo filha de uma família numerosa e pobre do Chile e acompanhava o pai, alcóolatra eprofessor de música, pelos bares por onde tocava.
Aos três anos, foi contaminada com a varíola, que lhe deixou marcas pelo rosto e na vaidade de mulher. Com as dificuldades decorrentes da pobreza e de se interessar pelos estudos formais, autoditada, tornou-se cantora e tocadora de violão, compositora, artista plástica, ceramista, considerada a mais importante folclorista e fundadora da música popular chilena.
Do seu primeiro casamento, com um ferroviário, teve dois filhos. Época em que foi apresentada ao Partido Comunista.
No segundo casamento, teve duas filhas, uma delas faleceu com menos de um ano de idade, quando ela estava morando em Paris.
Em 1960, conhece o jovem Gilbert Fávre, suíço, musicólogo e antropólogo, seu companheiro nos anos seguintes.
E em 1964, quando, aqui no Brasil, estávamos vivendo o Golpe Militar, de 18 de abril a 11 maio acontecia a sua exposição no Museu do Louvre, sendo a primeira artista latina americana a ter uma exposição individual naquela instituição.
Violeta tinha um sonho de criar a Universidade do Folclore e, em 1965, instalou a grande tenda em La Reina, local onde suicidou-se em 05 de fevereiro de 1967.
Seu último, e considerado o melhor disco, foi gravado um ano antes de sua morte. Entre tantas e contundentes letras, dois hinos percorrem nossas veias abertas da América Latina: Gracias a la vida, interpretação belíssima de Elis Regina, e Volver a los 17, num primoroso e inesquecível duo entre Mercedes Sosa e Milton Nascimento.
Eliana de Andrade
NF, 11 de março de 2017.

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                         A personagem Violeta Parra
 Um pequeno detalhe
Em destaque:
O filme foi apresentado pela Eliana. Excelente. Pura emoção. Homenageou o filho de Violeta Parra (personagem adolescente no filme), falecido no dia em que o filme estava sendo apresentado. Coincidência? Talvez uma “conspiração” que estimulou a forma como preparou e apresentou o filme. Foi premiada com o bonequinho em pé batendo palma. Valeu Eliana!!!.
 Não conheço a vida e a obra de Violeta Parra. Portanto, quando for lido o nome Violeta saibam que estou refiro-me ao personagem criado pelo diretor e não a pessoa ou a vida de Violeta Parra.
O que aqui me interessa é comentar a personagem independente da veracidade do que filmado, porque todo filme parte de uma concepção do diretor. Todas as narrativas não são o espelho da realidade. A idealização é um componente da natureza humana. Quando narramos um fato da nossa vida isso também ocorre. A linguagem quer seja verbal, gestual, visual ou composta de signos não dá conta do real, porque o acesso ao real é impossível na sua aparição. Por isso buscamos uma representação. Uma produção cinematográfica é a construção de uma representação imaginária. Nossa perspectiva sobre um filme depende das escolhas pessoais, ou seja, da subjetividade de quem o assisti, sentimentos transferimos para ele (o filme) e das buscas de informações que obtemos sobre a sua elaboração.
É muito comum ouvirmos que um “filme está baseado em fatos reais”, quando deveria ser dito que um filme está baseado em fatos imaginados como reais.
Violeta Parra e a Angústia
São raros os filmes que retratam a Angústia sem apresentar fatos psicológicos de cunho dramático e moralizadores, que fazem uso da fórmula “agora mantenha o lenço a mão, você vai chorar”.
Em nenhum momento observei que o diretor do filme apelou para essa fórmula. E é por isso que nos emocionamos. Não há sentimentos transferidos, somente a emoção de um vazio impenetrável da Angústia que a personagem de Violeta representa. A atriz é magnífica em sua atuação.
Toda angústia é assim. Um enigma que suga. Perde-se o solo, o olhar se torna vago e espesso. Quando deixamos de desejar morremos. A Angústia provoca uma espécie de vida sem desejo. Espaço e tempo estão ali, mas não os sentimos. Habitamos um corpo desconhecido. O sofrimento é um sentimento diferente da Angústia. Sofremos e sabemos o motivo ou os motivos reais ou imaginários.
Angústia é o sentimento do vazio, um hóspede estranho sem um traço que possa identificá-lo, corpo impalpável, ocupando um corpo que fica aguardando o momento de voltar a desejar.
O diretor montou a trama do filme relacionando a vida de Violeta com a sua arte. Uma arte proveniente da Angústia. E ele soube servir-se dos recursos técnicos que a arte cinematográfica possui para nos presentear com um belo filme.
Movimento de câmara, fotografia e iluminação.
O rosto de Violeta aparece inúmeras vezes em primeiro plano, e um olho aberto e inerte em um close-up (o olho aberto ocupa toda tela). Isto é bastante significativo, porque esses planos captam com a maior intensidade os movimentos das sensações transmitidas pelas expressões fisionômicas e pelo brilho ou opacidade dos olhos.
Por exemplo: no momento da sedução entre o jovem estrangeiro e Violeta.
A câmara mostra o rosto de Violeta de cima para baixo, assumindo a posição do olhar do jovem e de baixo para cima assumindo a posição do olhar de Violeta. Toda tensão impregna a cena. Esse encontro é um desafio, que, numa cena seguinte resulta numa relação sexual visceral entre os dois.
Tudo em Violeta é visceral e combativo sem que haja inimigo perceptível. 
A fotografia capta pedaços do corpo. Pés, mãos, ventre. Mas o seu rosto, quando criança ou adulto com olhar fixo e penetrante retorna a tela no plano close-up para mostrar as marcas provenientes da varíola ou para mostrar suas reações. Ela observa pelas frestas das paredes da madeira o que a vida está lhe retirando, silenciosamente.
A iluminação das cenas é tão “natural” que confunde. Será que as imagens foram feitas sem o uso da iluminação artificial? Impossível. Então, observo o talento do profissional que soube utilizar os recursos técnicos para “corrigir” a iluminação local sem cometer nenhum exagero no brilho das cores. Perfeito.
Violeta e a política partidária
Não houve intencionalidade do diretor vincular a arte ou a vida de Violeta a qualquer ideologia política. O propósito político de Violeta é decorrente de sua arte e não de um projeto de transformação social. As suas músicas falam do sofrimento humano sem demarcar terrenos opostos em luta. Suas músicas descrevem sentimentos de indiferença social dos indivíduos na tradição do cristianismo. Ela foi criada neste ambiente. Suas músicas não são somente fruto desta indiferença, que, confundida com uma suposta posição política, pode servir de instrumento ideológico a um partido político. O diretor não criou a imagem de uma Violeta libertária. Na cena em que o entrevistador tenta classificá-la de comunista, tentando associar suas músicas a arte de Pablo Neruda (militante comunista) sua ironia transforma o entrevistador em alvo de humor.
Somente em uma outra cena apreendemos o posicionamento político de Violeta. Quando é convidada a fazer uma apresentação no teatro para um pequeno grupo da burguesia local com suas indumentárias e gestos característicos, considerados modelos de sofisticação e prestígio. Ela aguarda no corredor é acolhida por um garçom despreparado para função, mas portador de características com as quais Violeta logo se identifica, porque demonstra pertencer ao seu meio social. Ela veste roupas simples, cabelos desalinhados, sem maquiagem ou qualquer tipo de preparação especial para esse encontro. É como ela se apresentar em qualquer lugar. Violeta não aceita ser humilhada, sua arte não é lazer passageiro, ela não foi ali servir de empregada para o entretenimento deste grupo. O caráter insubmisso de Violeta vem à tona. Ela não está numa relação de subordinação com aquele grupo, que considera naturalizada as formas mais comuns de humilhação.
Foi desta forma que o diretor construiu a imagem de Violeta Parra. Insubmissa aos que, ocasionalmente, estão no poder, insubmissa aos sentimentos amorosos, com os quais tem dificuldades (como todos nós) de se relacionar com os seus afetos, insubmissa às impossibilidades econômicas que inviabiliza a construção de espaço popular, onde sua arte musical, talvez lhe trouxesse um pouco de alegria.  
Abraços

Reinaldo