terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Cabra Marcado Para Morrer ( Eduardo Coutinho;1984)


CABRA MARCADO PARA MORRER
BRASIL|1984|120 min
Direção: Eduardo Coutinho
Em 1962, o líder da liga camponesa de Sapé (PB), João Pedro Teixeira, é assassinado por ordem de latifundiários. Um filme sobre sua vida começa a ser rodado em 1964, com a reconstituição ficcional da ação política que levou ao assassinato. As filmagens são interrompidas pelo Golpe Militar de 1964. Dezessete anos depois, em 1981, o diretor Eduardo Coutinho retoma o projeto e procura Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro, e outros participantes do filme interrompido.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Yuli ( Icíar Bollaín;2018)




GRANDES DIRETORES - EDUARDO COUTINHO








GRANDES DIRETORES - EDUARDO COUTINHO

EUTERPE LUMIARENSE – 19 HORAS

04/01
CABRA MARCADO PARA MORRER
BRASIL|1984|120 min
Em 1962, o líder da liga camponesa de Sapé (PB), João Pedro Teixeira, é assassinado por ordem de latifundiários. Um filme sobre sua vida começa a ser rodado em 1964, com a reconstituição ficcional da ação política que levou ao assassinato. As filmagens são interrompidas pelo Golpe Militar de 1964. Dezessete anos depois, em 1981, o diretor Eduardo Coutinho retoma o projeto e procura Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro, e outros participantes do filme interrompido
+ Exibição do curta-metragem O TELEFONE (Le téléphone;5 min).
Direção:Eduardo Coutinho
A história de um homem que tenta fazer um pedido de casamento, mas é constantemente interrompido por um telefone e pela namorada que insiste em atendê-lo. O filme foi rodado em 1959, quando o Coutinho estava no segundo ano do curso de cinema no IDHEC em Paris.

09/01
O FIO DA MEMÓRIA  
BRASIL| 1991 |Documentário |120  min
O documentário  foi realizado, sob encomenda, por ocasião do centenário da abolição da escravidão no Brasil, completado em 1988.  O filme condensa, em personagens e situações do presente, a experiência negra no Brasil a partir de dois eixos – as criações do imaginário, sobretudo na religião e na música, e a realidade do racismo, responsável pela perda de identidade étnica e pela marginalização de boa parte dos milhões de brasileiros de origem africana.

16/01
SANTO FORTE 
BRASIL| 1999|Documentário |80  min
Entre uma missa campal celebrada pelo Papa João Puyalo II  no Aterro do Flamengo e, meses depois, a comemoração do Natal, o documentário penetra na intimidade dos católicos, umbandistas e evangélicos de moradores da favela Vila Parque da Cidade,na cidade do Rio de Janeiro  Cada um a seu modo, eles crêem na comunicação direta com o sobrenatural através da intervenção de santos, orixás, guias ou do Espírito Santo.

23/01
EDIFÍCIO MASTER
BRASIL| 2002|Documentário |110  min
Durante uma semana, Eduardo Coutinho e sua equipe conversaram com 27 moradores de um enorme edifício de apartamentos em Copacabana. Entre eles um casal de meia-idade que se conheceu pelos classificados de um jornal, uma garota de programa que sustenta a filha e a irmã, um ator aposentado, um ex-jogador de futebol e um porteiro desconfiado de que o pai adotivo, com quem sonha toda noite, é seu pai verdadeiro.

30/01
JOGO DE CENA
BRASIL| 2007|Documentário |105 min
Atendendo a um anúncio de jornal, oitenta e três mulheres contaram suas histórias de vida num estúdio. Em junho de 2006, vinte e três delas foram selecionadas e filmadas no Teatro Glauce Rocha. Em setembro do mesmo ano, atrizes interpretaram, ao seu modo, as histórias contadas pelas personagens escolhida.
+ Exibição do curta-metragem PORRADA ;2000; min)Direção:Eduardo Coutinho
Internos do Instituto Philippe Pinel encenam o quadro do exame de DNA do Programa do Ratinho. Este curta-metragem foi realizado para uma exposição com curadoria de Marcello Dantas sobre os 50 anos da televisão brasileira, filmado pela equipe da TV Pinel, no Rio de Janeiro.

06/02
ÚLTIMAS CONVERSAS
BRASIL| 2015|Documentário |85 min
Último filme dirigido por Eduardo Coutinho. Nele, o cineasta entrevista diversos estudantes do ensino médio público no RJ, perguntando sobre suas vidas, sentimentos e expectativas para o futuro.



domingo, 19 de novembro de 2023

M.A.S.H. ( Robert Altman;1970)

A obscenidade da guerra triturada pela sátira: sobre “M.A.S.H.” de Robert Altman (1970)


Quanto mais rude fosse a piada, maior a chance de aparecer no filme. Quanto mais obscena a piada, melhor. Pois não havia nada mais obsceno do que esses jovens sendo despedaçados e mandados para esse lugar para serem remendados e mandados de volta à batalha. Pra mim essa era a obscenidade!” (ALTMAN)

Mesmo em Hollywood, há quem tenha os culhões de afrontar o complexo industrial militar e os masters of war empunhando os recursos pontiagudos da arte satírica. O mestre Robert Altman era um semi-desconhecido dentro do showbizz roliudiano lá por 1969 e já adentrava os portões da toda-poderosa Fox pra dirigir um roteiro que tinha sido recusado por uma dúzia de outros diretores. Com orçamento “apertado” (“só” umas 3 milhões de doletas…) e um elenco de atores desconhecidos (uma dúzia deles estreavam no cinema), Altman se lançou ao projeto sob os olhares de desconfiança e ceticismo – pra não dizer hostilidade declarada – dos figurões do estúdio.
Na mesma época, a Fox estava produzindo dois outros longa-metragens de guerra – Tora! Tora! Tora!, de Richard Fleischer, e Patton, de Franklin J. Schaffner – tidos como prioritários: ofereciam à empresa perspectivas de lucro muito mais convidativas. Na maciota, com pouca grana e muitos capitalistas sedentos querendo arrancar-lhe o pescoço fora, Altman, em uma das atitudes mais heróicas e corajosas dum cineasta dentro da engrenagem hollywoodiana, filmou seu genial manifesto anti-guerra M.A.S.H.
O ano era 1969 e os Estados Unidos da América, mascarando seu imperialismo arrogante com a fachada da “defesa dos valores ocidentais”, despejava bombas, com sua arrogância costumeira, sobre um pequeno país asiático que tivera a ousadia de tentar o comunismo. Crime imperdoável. Com a Guerra do Vietnã a todo vapor e as mortes dos soldados em ascensão frente à tenacidade dos vietcongues, assim como crescentes ondas de repúdio diante do ecocídio e da carnificina produzidos pelo despejo de agente laranja nos territórios agredidos, os protestos pacifistas iam gradativamente aumentando.
Os hippies, dançando ao som do rock and roll e se sujando na lama de Woodstock, pronunciavam em altos brados: make love, not war. As manifestações anti-guerra ganhavam voz também entre artistas de muito peso na cultura mundial – John Lennon e Yoko Ono, por exemplo, que espalhavam por aí os outdoors que garantiam: war is over (if you want it) e convidavam as massas a cantar “Give Peace a Chance”.
Nesse contexto, Altman soltou uma obra recheada de humor negro e obscenidades, destilando um desrespeito generalizado contra todo tipo de autoridade, ridicularizando toda a classe militar e pintando um retrato da insanidade doentia que se apossa das mentes em tempos de guerra.
Sem olhar para os méritos artísticos do filme, M.A.S.H. já é um notável por causa do estrago que causou e pelas mudanças que trouxe: além de ter sido o primeiro filme a ousar utilizar a famosa four-letter-word (“I’ll blow your fucking head off”), teve um faturamento de bilheteria considerável, recebeu 5 indicações ao Oscar (vencendo o de roteiro), levou pra casa a Palme D’Or em Cannes, serviu de inspiração pr’uma série de TV homônima que durou 11 temporadas (e ganhou quase 100 Emmys), colocou Altman direto na história do cinema como um dos mais instigantes e irreverentes cineastas americanos e… (por que não?) ajudou a parar a guerra.

SENTA QUE LÁ VEM HISTÓRIA…

O enredo do filme, no entanto, não se desenrola no Vietnã. O roteiro de Ring Lardner Jr. foi inspirado num romance de Richard Hooker, um médico que serviu na Guerra da Coréia no início dos anos 50. Uma pequena contextualização histórica pode ser útil aqui, já que o filme não a faz de maneira alguma, praticamente eliminando (propositalmente) qualquer referência à Coréia.
Em 1945, com o fim da Segunda Guerra, o derrotado Japão deixou de controlar a Coréia e os exércitos de ocupação invadiram o país quase simultaneamente, os americanos pelo Sul, os soviéticos pelo Norte, rasgando a nação em dois. Em 1948 os soviéticos abandonaram o país e no ano seguinte foi a vez dos americanos também puxarem o carro. Em junho de 1950, exércitos norte-coreanos invadiram os territórios do Sul, tomando posse de Seul e de grande parte da Coréia do Sul.
Respondendo rapidamente a pedidos da ONU por assistência médica e militar na Coréia, o presidente Truman mobilizou o exército norte-americano pra território coreano, onde foram instalados uma série de hospitais improvisados pra atender os feridos em campo de batalha.
Os M.A.S.H.s – Mobile Army Surgical Hospital – atendiam principalmente aos casos mais graves: gente que não teria chance de sobreviver a uma dificultosa viagem a um hospital fixo através das precárias estradas do país. Os helicópteros, utilizados para driblar as dificuldades rodoviárias, eram carregados com os corpos sangrentos e mutilados dos moribundos no front e os despejavam aos borbotões nas unidades M.A.S.H.
Com a escalada da violência e o consequente aumento de demanda por médicos, o exército americano passou a convocar jovens estudantes de medicina, muitos deles com somente 1 ou 2 anos de treinamento cirúrgico, e os enviava para trabalhar em condições precárias e com péssimo equipamento nas terríveis mesas de operação dos M.A.S.H.s coreanos. Mesmo com o armistício de julho de 53, que conquistou uma tênue paz na Coréia, estima-se que mais de 35.000 soldados americanos permaneceram aquartelados na Coréia do Sul por mais de 45 anos após o cessar-fogo. O último M.A.S.H. foi desativado em 1997.
O filme de Altman, transpirando um realismo bem verossímil, nos colocará ficticiamente dentro de um dos acampamentos do M.A.S.H. Porém, o diretor procurou propositalmente eliminar qualquer referência à história da Guerra da Coréia e evitou ao máximo até mesmo colocar personagens coreanos no filme, na tentativa de fazer com que o público tivesse a ilusão de que aquilo se desenrolava no Vietnã. Donald Sutherland disse que a Guerra da Coréia era somente “uma metáfora atrás da qual eles se escondiam”, talvez um artifício para escapar da censura, mas que a intenção manifesta do filme era ser despejado nos EUA de 1970 como uma obra anti-Guerra do Vietnã. Bem útil para este intento que coreanos e vietnamitas tenham, ambos, olhinhos puxados!

NO CAOS E NO IMPROVISO

Robert Altman tinha visões tão subversivas e um modo de trabalho tão fora do comum que teve uma série de problemas durante as filmagens e pós-produção. Com pouquíssimo respeito pelo roteiro, o diretor deixava rédeas soltas para que os atores improvisassem as falas e sugerissem toda uma série de detalhes e acontecimentos que não estavam previstos. Alguns depoimentos de atores afirmam que 80% do filme é improvisado. Esses mesmos depoimentos pintam o retrato dum set de filmagem dominado pelo caos, onde ninguém além de Altman sabia exatamente o que estava acontecendo, com os atores entregues à sua própria criatividade enquanto as câmeras dançavam ao redor.
Os dois atores principais, Donald Sutherland e Eliott Gould, vendo com ceticismo o comportamento extravagante do diretor, entraram em sérias desavenças com Altman, algo que chegou a comprometer a realização do filme. “Nós achávamos que Bob deveria ser internado numa instituição para pessoas mentalmente desequilibradas. Porque era obviamente doidice o que ele estava fazendo”, disse Sutherland. Também o roteirista Ring Lardner Jr. sentiu-se ultrajado quando viu o filme finalizado ao notar que PRATICAMENTE NADA do que havia escrito no roteiro aparecia no filme. Por ironia, Lardner iria vencer o Oscar de Melhor Roteiro no ano seguinte e, subitamente, ao perceber-se alçado à glória pela genialidade de Altman, rapidamente tratou de se referir ao diretor com mais carinho e gentileza…
No acampamento M.A.S.H. colocado em primeiro plano pelo filme, os feridos nos campos de batalha são trazidos às pressas, normalmente mutilados e empapados de sangue, com hematomas horrendos, fraturas expostas e feridas purulentas, para serem submetidos a operações de emergência. A dramaticidade da situação, absolutamente trágica, é contraposta pela atitude dos médicos e cirurgiões, que não levam nada à sério e tratam tudo na base da chacota. A tragédia e a comédia dão as mãos.
Hawkeye (Donald Sutherland) e Trapper John (Elliott Gould) são dois porras-loucas que se afogam em martinis, piadas sujas, humor negro e xavecos passados às colegas de trabalho. Enquanto abrem os corpos dos feridos e costuram suas entranhas, com as mãos banhadas em sangue e tripas, batem um papo como se estivessem no boteco, fazem gracinhas sobre os membros decepados dos feridos, comentam sobre as qualidades anatômicas das enfermeiras… A vida no acampamento é envolvida num ambiente de imoralidade, de vale-tudo, de foda-se todas as regras e todas as autoridades. E viva o pôquer, as bebedeiras, o sexo casual e o futebol americano na lama.
Toda uma série de alvos são sistematicamente ridicularizados e caçoados. Qualquer pessoa que se leve a sério ou que acredite convictamente em suas crenças (Burns rezando ajoelhado e sendo ridicularizado), que pretenda “fazer cenas” (Hot Lips depois da travessura do chuveiro), que tenha a ambição de estar fazendo algo de importante ou dramático (o “suicídio” de Painless), é sempre destroçada pelo sarcasmo cáustico e destrutivo dos médicos. Não há para eles nenhuma pessoa merecedora de respeito. “Costurando e cortando no campo de batalha, operando enquanto bombas e balas explodem à sua volta, revidando com risadas entre amputações e penicilina”, os médicos constroem um mecanismo para suportar a realidade intolerável onde estão afogados.
Altman declarou que o principal tema em M.A.S.H. é a insanidade. Obviamente, o cineasta se mostrou tremendamente preocupado com os rumores de que a Fox iria censurar as cenas tétricas de operação, nas quais a tela era tingida de sangue jorrante e cadáveres abertos sendo cavocados pelos bisturis dos médicos. Se aquelas cenas tivessem sido excluídas, a obra perderia toda sua relevância, todo seu poder, e se transformaria numa comédia banal e fútil sobre personagens que fazem piada de tudo, até das desgraceiras mais terríveis.
Mas é o horror de experimentar um cotidiano desfile de corpos humanos destroçados, de entrar em contato direto e constante com o terror da guerra, que obriga os médicos a criarem maneiras de escapar da realidade através da diversão, da futilidade, do esporte, do álcool, do papo furado. São táticas de sobrevivência. Grandes artifícios utilizados para erguer um pesado muro de repressão que esconda o insuportável terror que está a se desenrolar. Estou certo de que Altman não está fazendo um elogio tácito ao comportamento imoral, foda-se tudo, de seus personagens, mas registrando mecanismos psíquicos de fuga de uma realidade demasiado tenebrosa e chocante para ser tragada. “A leviandade desses rapazes era um meio para que eles pudessem sobreviver!”, declarou o diretor.
E não só a futilidade dos médicos é descrita, comoparece haver também uma espécie de provocação latente do próprio filme aos espectadores. Afinal, M.A.S.H. se apresenta como uma comédia engraçadíssima, onde estão presentes alguns dos diálogos mais espertos e divertidos da história do cinema, mas ao mesmo tempo esboça uma espécie de crítica à trivialidade como uma espécie de covardia moral.
É como se Altman, após fazer um de seus personagens dizer algo de comicidade irresistível, se virasse pra nós e perguntasse: “mas por que é que você está rindo, pilantra? Os cadáveres estão se amontoando e os corpos continuam sendo costurados e remendados, e vocês vão na mesma onda desses médicos babacas em sua perseguição incessante de uma sagrada cegueira?”
O público inevitavelmente ri do filme, mas ganha de presente uma certa culpa, uma certa acusação: da mesma maneira que os personagens se entregam à futilidade para se esquecerem que estão num campo de batalha, também o público que frequenta os cinemas comerciais normalmente se entrega às gargalhadas e ao entretenimento escapista para evitar olhar uma realidade que não tem coragem de encarar de frente.
Ainda que M.A.S.H. não faz críticas explícitas à Hollywood como outro clássico de Altman, O Jogador, pode ser interpretado como um certo jogo dúbio com o público: que recebe o entretenimento todo sujo de sangue, que recebe o sangue todo recoberto pelo riso. Como diz o cartaz francês: eis um “filme sangrento de onde jorra o riso!” Além do eloquente manifesto anti-bélico que é, M.A.S.H. é também uma crítica cultural onde Altman descreve o entretenimento e a leviandade como mecanismos de fuga da realidade (Ernest Becker explica…). M.A.S.H. não está somente oferecendo piadas bestas – como disse Altman: “after all, you gotta pay for your laughs”.
(Eduardo Carli de Moraes)

Disponivel em https://acasadevidro.com/mash/

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

O Pianista ( Roman Polanski;2003)


 APRESENTAÇÃO DA SESSÃO  
Profª Joana D'Arc Fernandes Ferraz (UFF ) 
TEXTO: Profª Joana D'Arc Fernandes Ferraz (UFF )  
Rogério Ferreira de Souza (UNIRIO)

AS CONTRIBUIÇÕES DO FILME "O PIANISTA" PARA A TEORIA DA MEMORIA

Autores: Joana D'Arc Fernandes Ferraz – Doutora em Ciencias Sociais - UERJ /
Rogério Ferreira de Souza – Mestre em Memória Social - UNIRIO

Resumo: este trabalho tem como objetivo principal analisar o Filme “O Pianista” (dirigido por Roman Polansky, em 2003) à luz da Teoria da Memória. O filme O Pianista traz mais uma vez para a sociedade o tema da memória judaica. Este tema parece não envelhecer. A cada novo filme, uma nova forma de relembrar vem àtona. Então, uma questão persiste: por que ainda não conseguimos esquecer este período? Partimos de duas questões que se relacionam. A primeira, procura analisar as contribuições da memória, enquanto teoria, para o campo das Ciências Sociais. A segunda, busca entender o sentido do retorno constante ao tema da
memória judaica, suas marcas e os reflexos dos fascismos no mundo contemporâneo.

Palavras-chave: teoria da memória, trauma, fascismos, memória judaica, cinema.

ABSTRACT: the purpose of this work is the analysis of the newest Roman Polanski's movie, The Pianist (2003), by using the resources of the Theory of Memory. The movie brings the society a new approach of the Jewish memory. This matter seems to be renewed at each film that's dedicated to it. So, a question remains: why we couldn't forget this period? The text began with two related questions. At first, it tries to analyse the contributions of the memory, as a theory, to the Social Sciences area. At second, it tries to explain the meaning of the frequent return to the Jewish memory, its characteristics and the influence of fascism in the contemporain world.

Key words: Theory of Memory, trauma, Fascism, Jewish memory, cinema.


Este filme traz mais uma vez o tema da memória judaica. Em primeiro lugar, devemos indagar: o que é a memória? Jacques Lacan nos ensinou que só fica na memória o que pode ser esquecido. No entanto, só se esquece ou se lembra daquilo que se conheceu ou viveu, e não do que se ignorou, como afirma Henry Rousso,
(1998) . Fica, então, uma lacuna: como e onde se fundam ou se separam o que se vive com que se esquece. Esse é o limite da memória. Porém, existem várias memórias que podem ser pensadas de forma diferenciada,
tanto em relação à sua utilização pelos sujeitos sociais, pelas sociedades e pelas nações, quanto pelas características que elas apresentam. Portanto, ao se falar de memória devemos pensar na pluralidade de seus significados e de seus usos, como está presente na obra de Myrian Sepúlveda dos Santos (2003).
A Memória é um campo relativamente novo nas Ciências Sociais, ela representa uma nova sensibilidade, um novo olhar sobre o passado, menos comprometido com a verdade dos fatos , preocupada primordialmente, não com o que foi dito, mascom  o como foi dito. 
O que vai diferenciar as várias memórias é a forma como elas serão apropriadas/reutilizadas pelos indivíduos e/ou pelas sociedades. O que faz do Pianista uma obra fundamental para as Ciências Sociais além da possibilidade de se pensar, através dele, os vários conflitos sociais que a memória pode revelar, pelas imagens do horror, acima disso, se pensar o que se fala de nós, de todos nós ao se falar sobre os fascismos. Que tipos de sujeitos sociais somos ou estamos sendo?
As memórias do holocausto e da colaboração de diversos cidadãos com o regime nazi-fascista são recorrentes, principalmente a partir da década de 1980. Henry Rousso (1987) ao referir-se ao trauma da França em relação à colaboração com o nazismo, afirma que pode-se delimitar três grandes momentos da memória desse período: o do luto inacabado, logo depois da guerra; um período de recalcamento, entre os anos 50 e 60 (quando o silêncio era a tônica) e um período de obsessão, que ainda não saímos. Pensamos que essas referências a estes três momentos da memória do holocausto, na França, podem ser pensadas de modo geral, para toda a Europa colaboracionista.
A memória desse período tem a capacidade de nos incomodar, de nos colocar incessantemente nesse encontro, por vezes cruel conosco e com os nossos. Por isso, uma questão ainda persiste: por que se fala tanto dessa memória? Constantemente somos relembrados, seja através de livros, de filmes e da mídia. Como analisa Andréas Huyssen (2000) a sociedade contemporânea é cada vez mais seduzida pela memória, por isso vivemos o momento do passado presente. É como se não pudéssemos esquecer esse período. Ou talvez, como se da constante lembrança pudesse se fazer surgir, calmamente, o esquecimento, consciente ou não.
A proposta deste trabalho é pensar, através do filme O pianista, as possíveis interpretações sobre a memória. Como podemos explicar o constante retorno a esse tema? Suspeitamos alguns motivos, entre eles:
• pode-se argumentar sobre a necessidade de que a História nos sirva de lição, para que não mais se repita. Deslocando o holocausto como uma figura de linguagem, retirando dele a sua historicidade específica. A crítica que Huyssen (2000) faz a isso é que essa utilização da memória do holocausto pode servir como uma falsa memória ou simplesmente bloquear a percepção de histórias específicas;
• também é possível se argumentar que essa memória seja recorrente porque ainda não foi possível superar a dor sofrida pelos que viveram esse regime; a dor persiste e o pior, nem tudo foi explicado e nem entendido; Primo Levi (1990) , argumenta que “não saberia dizer se o fizemos, ou o fazemos, por uma espécie de obrigação moral para com os emudecidos ou, então, para nos livrarmos de sua memória. Com certeza o fazemos por um impulso forte e duradouro.” (1990: 48)
• talvez, uma outra explicação para essa memória recorrente seja o fato de se tentar entender, pelo menos em parte, o que esse regime revela sobre nós, tanto individualmente como coletivamente, ou seja, o que em nós ainda persiste da marca totalitária.O filme de Roman Polanski, O Pianista , narra a biografia de um pianista judeu polonês, Wladyslaw Szpilman. Wladek, como era conhecido pelos amigos e parentes, vivia em Varsóvia e era pianista de uma rádio local. Sua família era declasse média, tinha três irmãos, era o mais velho. Ocupava-se somente de seu piano, da sua arte. Nas discussões entre família sobre o futuro dos judeus, pouco sabia. Não lia jornais, nem tinha informações detalhadas sobre o início da perseguição. Todas as informações que tinha sobre a invasão de Hitler na Polônia, em relação às pressões do regime sobre os judeus, eram os seus familiares que forneciam. Constantemente o seu irmão Henrik o questionava sobre a sua alienação em relação a questões tão importantes para a sobrevivência de toda a família.
Na medida em que as pressões nazistas aumentam, a família foi perdendo os seus espaços e as suas posses, ficando proibidos de freqüentar e até mesmo de passar por determinados lugares. Restando somente o piano, que Wladek decide vender, mesmo contra a vontade de todos. Finalmente, sem mais nada, eles perdem o seu
lugar naquele mundo não judeu. E então começa a saga, são enviados para o gueto, passam fome, vivem humilhações e vêem mortes cruéis. Sem dinheiro e sem perspectivas, a família recebe a visita de um amigo judeu que trabalha para o regime e chama os dois rapazes para também trabalharem. Henrik revoltado, não aceita e ainda ofende o colaborador. Wladek agradece o convite, mas consegue um emprego de pianista num restaurante do gueto, onde ficam os judeus que se beneficiam com o desespero e a falta de perspectivas de outros judeus, comprando seus bens. Henrik e Halina (sua irmã) foram escolhidos para ficarem trabalhando, enquanto a família vai sendo transportada para outro lugar, bem provável para a morte. Mas eles escolhem ficar com a família. Wladek os chama de estúpidos pela escolha que fizeram. No momento em que o trem chega sua família entra, novamente o colaborador judeu reaparece, puxa Wladek e o tira da fila de entrada para o trem. Essa foi a última vez que ele viu a sua família.
Para sobreviver ao regime, Wladek se submeteu a todo o tipo de sofrimento, mesmo aquele mais negativo da natureza humana: a sujeição do corpo e para além dele. Fome, trabalho, dor, doença, frustração, humilhação, vergonha... uma situação tão extrema que fica difícil pensar que algum ser humano possa sobreviver a ela. No entanto, Primo Levi (1988) , afirma que não nos é possível prever o que os homens são capazes de suportar diante das adversidades. Embora não tenha morrido rapidamente, como sua família, a cada dia no gueto Wladek vai perdendo a sua vitalidade e a sua dignidade, aquilo que nos faz homens. Por não conseguir suportar aquela situação de trabalhos pesados, constantes negociação com os mais adaptados, castigos corporais severos, Wladek prefere fugir, mesmo sabendo que corre o risco de morrer. Como já colaborava
com a resistência, esta ajuda-o. E a partir daí terá dois objetivos na vida: controlar a sua comida, para que não morra de fome e fugir sempre que estiver em perigo. Num desses momentos de fuga, quando Wladek está escondido num apartamento, do lado alemão, em frente ao gueto, ele se questiona dizendo que às vezes ele não sabe de lado do muro ele está.No entanto, algo parece superar tudo, como se fosse até mesmo maior do que ele próprio: a sua música. Em todos os momentos difíceis, impossíveis, traumáticos, ela está lá. É uma memória que supera todas as outras, é a memória vencedora..
Ela extrapola o corpo. A harmonia imaginária que vem das lembranças das sinfonias de Chopin tocadas em seu piano, vence o caos e o desespero e consegue resgatá-lo novamente para a vida. O que essa memória tem de tão extraordinária? Ela representa o fim, o fim último de sua vida. Em dois momentos marcantes do filme ela aparece.
No primeiro, ele está escondido num apartamento com um piano, sem poder tocá- lo, pois não podia fazer barulho e ele o toca sem encostar as mãos em suas teclas, mas o toca e nos faz sentir cada nota. É tão vivo esse momento que temos a impressão de que está realmente tocando o piano. Ao tocar, Wladek parece
libertar-se de todo o presente.
No segundo momento, já no final do filme, Wladek está numa casa destruída pela guerra. A sua aparência física e a sua condição psíquica nos fazem compará-lo a um animal. Agarrado neuroticamente a uma lata de doce, não lhe importa mais saber se viverá ou não, sua única preocupação naquele momento é encontrar um
meio de abrir a lata e alimentar-se. Nesse instante um oficial alemão aparece em sua frente. Wladek o olha, parece um pouco fora daquela situação, como se os seus sentidos tivessem congelado ante a fome e o frio. O oficial olha para ele e lhe pergunta quem ele é? Esta pergunta, que outrora lhe trazia uma enorme satisfação ao responder, neste momento, porém, há um confronto, quase que imperceptível entre a força de um passado brilhante e um presente desumanizado, cuja brutalidade dilacera toda a dignidade humana, ceifa orgulhos e transforma pessoas em restos de vida. E neste momento ele responde: eu sou, eu fui um pianista. A reação do oficial é mais impressionante ainda. Após ouvir a resposta, o oficial o conduz a uma sala com um piano e pede para tocar algo. Esta cena, inicialmente, é dúbia, pois não fica claro se o oficial estaria duvidando de que Wladek era realmente um pianista, ou se, sendo amante da música, teria a oportunidade de ouvir algo que o tirasse daquele lugar, mesmo que por um instante.
A música tocada por Wladek faz com que o oficial sinta uma profunda admiração por ele. No dia seguinte, este volta à casa em que Wladek está escondido, trazendolhe um casaco, comidas e um abridor de latas. No entanto, mesmo depois de ter ouvido a música, ao se referir a Wladek, o oficial o chama de judeu. O filme
termina com Wladek de volta a sua cidade, tocando com uma orquestra, para um grande público.
No primeiro momento, nas duas cenas com o piano referidas acima, percebemos a memória atuando como liberdade, como emancipação. Esta, talvez, seja a principal mensagem do filme. No entanto, fica um vazio e uma dúvida: sair daquele tormento significou o retorno ao prazer para Wladek? A música, ele teve de volta, mas e o mundo? O que foi ele dali em diante, além de pianista? Como é estar vivo, ter sobrevivido? Que memórias lhes restam?
Friedrich Nietzsche (1996) já nos revelara os males ocasionados pelo homem quando este buscou criar a memória , a fim de que pudesse construir os seus valores morais e as conseqüências deste ato.
“Quanto pior “de memória” a humanidade, tanto mais terrível o aspecto de seus costumes; em especial a dureza das leis penais nos dá uma medida do esforço que lhe custou vencer o esquecimento e manter presentes, nesses escravos momentâneos do afeto e da cobiça, algumas elementares exigências do convívio
social.” (Nietzsche, 1998:51)
No entanto, não nos é possível pensar a construção da nossa humanidade sem a memória. Se algum dia isso foi possível, se o esquecimento era o reino da felicidade, hoje, prisioneiros ou não da nossa história, somos filhos do passado e da memória.
Levi (1990) afirma que como sobrevivente só resta-lhe sentir vergonha de estar vivo. Será que vale a pena, diante de tudo o que passou, retirar dali alguma memória?
Levi (1988) diz ter a convicção que sim e completa que “estamos convencidos que nenhuma experiência humana é vazia de conteúdo, de que todas merecem ser analisadas; de que se pode extrair valores fundamentais (ainda que nem sempre positivos) desse mundo particular que estamos descrevendo”.
É com esse olhar de Levi sobre a memória, que procuramos pensar as diferentes manifestações da memória em O Pianista . Ou seja, acreditamos que por pior que tenha sido essa experiência, ainda podemos retirar dela valores, nem sempre positivos, mas que nos ajudarão a pensar em formas melhores de viver em
sociedade.
Além desse momento de destaque do filme, que trazem referências interessantes sobre a memória e para além dela, destacamos outros três momentos de análise.
Organizamos as cenas pela ordem em que ela aparece no filme. A primeira cena é quando o oficial alemão pergunta a Wladek quem ele é, e ele responde: eu sou, eu fui um pianista . De que forma ele olha o mundo naquele momento? O que vemos nessa fala é um sujeito que está no limite, entre a ausência de desejo e o desejo sufocado. Ele ainda não negou o seu prazer (eu sou), que neste caso poderíamos pensar na música e na vida. A sua subjetividade ainda não foi contaminada. O seu desejo não foi substituído, erradicado pelo fascismo, mas ele não consegue afirmá-lo e então desabafa (eu fui). A memória é privilegiada.
Embora ela só possa existir quando deixar de ser , ela só se afirma quando existe na vida, no cotidiano. Embora a memória seja continuamente recriada, de trás para frente e de frente para trás; do passado para o presente e do presente para o passado, ela só existirá onde for possível para o sujeito/sociedades/nações
pensar/pensarem no que foram. Mas Wladek, embora não possa recusar essa possibilidade (eu fui), a coloca em segundo lugar. Ele quer viver, ele quer SER. A memória, diferente de Wladek, prefere ficar ENTRE. Ela não nega o seu passado: não duvidamos que o passado possa modificar o presente, mas não rejeita o presente, constantemente também o presente recria o passado.O segundo momento foi quando Wladek estava refugiado num apartamento do lado alemão e ele desabafa: às vezes não sei de que lado do muro eu estou . Este relato apresenta uma discussão bastante nova em relação à memória judaica.
Segundo Michel Pollak (1989) só recentemente, a partir da década de 1980, é que os judeus começaram efetivamente a falar das suas memórias, não mais somente como vítimas, mas apontaram de que maneira, aquela situação extrema, levou muitos deles a serem colaboradores do regime . No caso de Wladek, ele nunca
colaborou com o fascismo, mas ao ver a luta vã dos resistentes, ao perceber a dimensão da dominação, ele sente-se incapaz de fazer algo para mudar e entende a sua omissão como colaboração.
E o terceiro momento foi quando, mesmo sabendo que Wladek era um pianista, mesmo tendo ouvido e se deliciado com sua música, oficial o chama de judeu. Pollak (1989) inferindo sobre a obra de Maurice Halbwachs afirma que, ao estudar o processo de enquadramento das memórias individuais em memórias coletivas, ele defende a tese de que todas as memórias são coletivas, eliminando a possibilidade de uma autonomia do sujeito em relação à estrutura social e acreditando que o passado só se torna compreensivo a partir de sua reconstrução e práticas vividas no presente. Ao defender esta estrutura quase funcional da memória, Halbwachs fundamenta um quadro institucionalizador da memória coletiva. Esta memória, que ao definir o que seria comum ao grupo, produziria as diferenças em relação aos outros e reforçaria os sentimentos de pertencimento/identidade e as definições de fronteiras sócio-cultural.
Entretanto, Halbwachs procurou destacar as funções positivas e de coesão desta memória coletiva, que integraria o indivíduo ao grupo via uma adesão afetiva ao grupo. Nesse sentido, como argumenta Pollak, para Halbwachs, a nação seria a forma mais acabada de um grupo, e assim, conseqüentemente, a memória nacional
a forma mais completa de uma memória coletiva.
Pollak em oposição a Halbwachs, afirma que a memória coletiva incorporada ao discurso oficial da nação, também pode “acentuar o caráter destruidor, uniformizador e opressor...”(1989:04), quando estas eliminam a participação de outras formas de culturas, etnias, identidades, no processo de construção da nação.
Assim, por mais que o oficial alemão fosse um profundo admirador da música, e tenha ficado encantado com a forma como Wladek tocara o piano, isso não desfez o peso de uma memória nacional que impõe a diferenciação, via diminuição do outro. Wladek era um excelente pianista, mas nem por isso ele tinha deixado de ser judeu e inferior.
O mais interessante do Pianista é exatamente o fato dele não revelar o trauma subjacente a essa memória. O trauma não se supera, no momento em que ele parece estar acomodado é exatamente quando é mais forte. Levi (1990) reproduz a fala de um judeu (Amèry), que como ele, também foi prisioneiro de um campo de concentração, mostrando como cada indivíduo sente de maneira diferente o que viveu. Para Amèry, “quem foi torturado permanece torturado. (...) quem sofreu o tormento não poderá mais ambientar-se no mundo, a miséria, o aniquilamento jamais se extingue.” (p.10)Ainda que tenham vivido a mesma experiência, ela nunca será absorvida da mesma forma para cada um. É essa a singularidade da memória, porque ela implica, acima de tudo, a forma como os sujeitos as sofrem, as interpretam e as reinterpretam. Enquanto Levi diz que não perdoa os nazistas, mas que prefere deixar por conta da Justiça, mesmo sabendo dos seus limites, Amèry o critica, chama-o de ‘o perdoador'. E diz que depois de Auschwitz ele foi incapaz de encontrar na vida algo que o fizesse esquecer o que viveu. Amèry se suicida em 1978 . Algo ainda permanece, as palavras não são suficientes.
E por isso nós continuamos a falar desse período. Falamos, também, porque nos sentimos testemunhas, testemunhas não desse período, somos filhos dos seus reflexos, mas testemunhas da História, e por isso também não conseguimos nos silenciar. Falamos, ainda, porque que a marca fascista permanece a corroer anossa sociedade. Porque a luta do judeu, se estende na luta do pobre, do negro, do homossexual, das vítimas da violência policial e assim por diante.
Num momento político em que a Itália hoje, volta a apresentar caracterísitcas que a aproximam bastante do regime fascista, através da eleição de Sílvio Belusconi, líder de um Governo coligado com um partido de extrema-direita declaradamente xenófobo (Liga Norte) . Em que a França, também, quase voltou, através de JeanMarie Le Pen, racista, anti-semita e xenófobo, líder da Frente Nacional e representante da extrema direita, fez a sua campanha na luta contra os negros, os judeus e os estrangeiros, principalmente os árabes.
Por tudo isso, u ma pergunta nos incomoda: o que ficou faltando, ou melhor dito, o que ainda não aprendemos? Não queremos opor o Totalitarismo ao ideal de Democracia que nos foi imposto, conjugando com o discurso dominante de que existe um modelo a ser seguido. Nem queremos que a memória do holocausto sirva de clichê e anule as especificidades das lutas dos outros povos. Porém, não devemos negligenciar a marca fascista da nossa sociedade, como tão bem afirma Klaus Theweleit (1996), que se expressa na exclusão, na sublimação do desejo, na desvitalização diária que muitos homens passam.
Bibliografia:
THEWELEIT, Klaus. 1996. Male Fantasies. v .2. United States : University of Minnesota, third printing.
NIETZSCHE, Friedrich. 1996. “Para a Genealogia da Moral. Segunda Dissertação”. São Paulo: Editora Abril Cultural. Coleção Os Pensadores .
LEVI, Primo. 1988. É Isto Um Homem. Rio de Janeiro: Rocco.
__________. 1990. Afogados e Sobreviventes. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
HUYSSEN, Andréas. 2000. Seduzidos Pela Memória . Rio de Janeiro: Aeroplano.
POLLAK, Michael. 1989. “Memória, Esquecimento, Silêncio”. In Estudos
Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3.ROUSSO, Henry. 1998. La Hantise de Passé. Paris: Textuel.
______________. 1987. Le Syndrome de Vichy: de 1944 à nos jours. 2 éd. Paris: Ed. Du Seuil.
SANTOS, Myrian Sepúlveda. 2003. Memória Coletiva e Teoria Social . São Paulo: Editora Annablume. (prelo)

Embora os fatos sejam importantes para uma possível reconstrução do passado, sabemos que não se pode pensar um passado isento dos diferentes textos em que ele é escrito e a memória é mais um texto desse passado, é mais uma narrativa.
Por lembrança entendemos algo diferente de memória. Lembrança vincula-se a um sentimento, enquanto memória relaciona-se ao fato de lembrar e de relacionar esta lembrança ao contexto. Polanski deixa escapar na cena do pianista tocando para o oficial a idéia de que a música de Chopin desperta no oficial lembrança boas. Pois ele ouve com ar felicidade, dando a impressão de que ele nunca mais ouviria. Possivelmente pela
impossibilidade dele não ver mais a família, pela proximidade a rendição alemã. “Jamais deixou de haver sangue, martírio, sacrifício, quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória.” (Nietzsche, Friedrich. Genealogia da Moral. 1998:50)
Pollak afirma que “quarenta anos depois convergem razões políticas e familiares que concorrem para romper esse silêncio: no momento em que as testemunhas oculares sabem que vão desaparecer em breve, elas querem inscrever suas lembranças contra o esquecimento... Por conseguinte, existem nas lembranças de uns e de outros, zonas de sombra, silêncios, ‘não ditos' As fronteiras desses silêncios e ‘não ditos'com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento.” (1989:3-1)
Outros judeus sobreviventes do campo de concentração também não conseguiram com palavras descrever a dor que sofreram e só se libertaram dela com o suicídio, como vemos na obra de Tzevtan Todorov.

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

A Faca na Água (Roman Polanski;1962)


 

RETROSPECTIVA ROMAN POLANSKI



 Em 2019 o Lumière Cineclube   organizou uma série de exibições mensais, “Grandes Diretores”, que divulgou e discutiu o legado de diretores considerados clássicos visto que suas filmografias influenciam até hoje a produção cinematográfica. Com curadorias diversas, assim foi ao exibirmos filmes dedicados a Alfred Hitchcock, Pedro Almodóvar, Orson Welles, François Truffaut Woody Allen e Agnès Varda, sendo que as exibições da cineasta francesa foram interrompidas por causa da pandemia do coronavírus em março de 2020.Quando as sessões presenciais foram restabelecidas os filmes da cineasta francesa foram exibidos nas sessões regulares.

Retomaremos essas exibições em 2023 ao longo dos meses de setembro e outubro de 2023 com o diretor franco- polaco Roman Polanski. E ao longo da programação outros diretores serão abordados.
 Polanski nasceu em Paris no ano de 1933, e hoje aos 90 anos acumula uma conturbada e intensa trajetória de vida particular, emocional, pública, policial e profissional.
O diretor de origem judia sobreviveu ao Holocausto na Polônia onde sua mãe foi morta pelos nazistas.  Em 1969 sua mulher Sharon Tate, grávida de seu filho, foi assassinada pela Seita Manson nos Estados Unidos. Nesse mesmo país em 1977 cometeu crime de abuso sexual de uma jovem de 13 anos. Condenado pela justiça estadunidense, até hoje é proibido de entrar nos Estados Unidos onde é considerado foragido. O próprio Polanki assumiu o delito.
E em meio a essas tragédias pessoais, é importante também destacar a genialidade demonstrada por Polanski em seus filmes. Deste modo as apresentações das sessões querem também discutir se podemos separar a obra de um artista de sua vida pessoal. O crime de Polanski implicou diretamente na importância que a sua obra teve e continua tendo para o cinema?  Se sim, devemos cancelá-lo? Devemos não assistir os seus filmes?  Ou o gênio está acima do bem e do mal? Cabe ao crítico de cinema e ao cinéfilo que quer conhecer melhor os filmes e os diretores a tarefa de julgar o artista como se fosse um juiz?  Sei que cabe à justiça julgar o artista em termos de penalização. E no caso de Polanski isso foi feito. As zonas de sombra nas quais coabitam e se intrincam a lei, a política, a moral e a ética, devem ser devidamente clareadas.
Não se trata de defender determinados artistas e suas condutas intoleráveis, mas de propor uma visão crítica sobre a chamada “cultura do cancelamento”. Negar uma obra por quem a produz não é conhecimento e impede a possibilidade de critica-la. Por outro lado, esses questionamentos são resultantes de um momento atual extremamente importante para a própria indústria cinematográfica. O cinema precisa de maior representatividade social pois excluiu e apagou, em mais de 100 anos, mulheres, minorias raciais, pessoas LGBTQIA+ e muitos outros grupos.
A partir de uma maior conscientização, fica cada vez mais claro a importância em levantar tais questões e aprofundá-las em conversas nas nossas sessões e em textos que serão publicados posteriormente nas redes sociais do Lumière Cineclube.

Joaquim Ferreira



domingo, 20 de agosto de 2023

O Pastor e o Guerrilheiro (José Eduardo Belmonte;2022)





O PASTOR , O GUERRILHEIRO .....E A LEITORA


O filme "O Pastor e o Guerrilheiro", produção de 2022   dirigida   por José Eduardo Belmonte, acrescenta  as últimas produções nacionais sobre a ditadura militar brasileira o aspecto da religião no contexto histórico vigente no período. Essa novidade por si só já destacaria o filme de Belmonte. Ao incluir a temática da religião dialogando com a política, Belmonte é pertinente numa roteirização dos divergentes para buscar a saída dos próprios isolamentos dos protagonistas, o pastor Zaqueu (César Mello) e o guerrilheiro Miguel ( Johnny Massaro). Isolamento pela prisão, pela tortura, pela incomunicabilidade sistêmica que a ditadura impunha e também a incomunicabilidade ideológica/epistemológica dos protagonistas.
 O que aparentemente significaria uma simples oposição mecânica entre religião e política, surpreende pelas intersubjetividades inerentes à essas esferas da vida social que são atribuídas aos personagens do pastor e do guerrilheiro e reveladas nos diálogos entre eles, especialmente quando se encontram na prisão. Desnaturalizando conceitos, significados, códigos e práticas constantes das respectivos, o filme ganha em qualidade. E a partir desse ponto é importante destacar a origem religiosa do pastor retratado no filme. Preso por engano pela ditadura ("por andar com comunistas"), o pastor Zaqueu representa um ramo histórico das religiões evangélicas brasileiras, a pentecostal, que preza a formação e os estudos teológicos sistematizados e sua divulgação. No filme, a trajetória de Zaqueu é pressionada para que ele ceda em suas práticas teológicas e adira ao crescimento da Teologia da Prosperidade, tão presente entre nós na atualidade. Surgido no final dos anos 1970, o neopentecostalísmo   hoje se insere nas mais diversas áreas do contexto nacional, da mídia ao cenário político.  
Conforme o sociólogo Ricardo Mariano,
" Até (...)décadas atrás seria inconcebível que um crente pentecostal fosse ao templo para, em fervorosas correntes de oração semana após semana e por meio de barganhas cósmicas - tendo a igreja como intermediaria e caixa registradora das transações -, desafiar a Deus com o fim de prosperar materialmente. “ (Neopentecostais: Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil 2005-Edições Loyola; pp.7)

Essa nova roupagem do protestantismo no Brasil, abandona várias características sectárias, hábitos ascéticos e o estereótipo de reconhecimento dos “crentes” ao propor novos ritos, crenças e práticas e atenuando os costumes e comportamentos como em relação às vestimentas.
Assim, o recorte que o filme faz sobre a religião deve ser considerada como o fenômeno social religioso e sua dinâmica no contato com outras esferas da sociedade sendo fundamental também para a compreensão o jogo político que as religiões participam.
E nessa direção, Friedrich Engels, no seu texto   “ A Guerra Camponesa Alemã”  ,de 1870, considera  que mais importante que o aspecto teológico das religiões,  frações das religiões  reformadas possuíam uma caracterização revolucionaria diante do catolicismo. Engels destaca a fração, anabatista que era dotada de um potencial de transformação social (não necessariamente uma revolução socialista) por conta de sua composição social que incluía camponeses, o nascente proletariado e plebeus.
Assim, o filme recorre a uma certa postura autocritica de seus protagonistas   buscando semelhanças e por isso não se excluindo.
Um outro aspecto que a meu ver contribui para a qualidade e pertinência do filme de v José Eduardo Belmonte é, digamos, um terceira linha, a linha condutora da memória que reforça o sentido da discussão central do filme .A história  é intercalada com cortes, onde a estudante Juliana (Julia Dalavia) Ao encontrar um livro em casa descobre que seu pai foi o coronel responsável pela tortura de João e   descobre sobre o encontro marcado entre o pastor e o guerrilheiro .Assim através da leitora Juliana a memória e sua transmissão  certificam  a historicidade  de “ O Pastor e o Guerrilheiro”.

Joaquim Ferreira

segunda-feira, 5 de junho de 2023

Saneamento Básico,o filme(Jorge Furtado;2007)


No filme, uma comunidade fictícia no sul do país se mobiliza para construir uma fossa no arroio e acabar com o mau cheiro. A líder do movimento, descobre que a Prefeitura só tem verba para produzir um vídeo de ficção. Aos poucos, as filmagens vão envolvendo todos os moradores do local. Na realidade a questão de fundo é se o cinema deve ser preferência em um país com tantas e tamanhas carências. No filme os personagens questionam a todo momento: como o governo pode dar dinheiro para o cinema se as pessoas mal têm esgoto. Porém, para o diretor Jorge Furtado, os problemas culturais e os estruturais do país devem ser enfrentados na sua totalidade.
Resolvida essa questão de prioridades, Jorge Furtado fez uma obra cujo foco é precisamente o complexo processo de se fazer um filme. Utilizando a metalinguagem, do roteiro à montagem, passando pelos patrocinadores e escolha do elenco, todas as etapas estão lá. E, nesse caso, o enredo também serve como pano de fundo para uma alfinetada no bom e velho jeitinho brasileiro, nos improvisos de governos, da população e até do próprio cinema. ”
Conforme o crítico Luiz Zanin, um dos personagens de “ Saneamento Básico” se queixa “(...) que o roteiro está cheio de frases infilmáveis, Marina [personagem de Fernanda Torres] responde que “encheu lingüiça” um pouco porque a portaria diz que precisa ter no mínimo 10 páginas. E roteiro não serve para nada, só para pegar o dinheiro, uma piada cínica, recorrente entre cineastas que, em busca de dinheiro oficial, ou em concursos públicos, são obrigados a apresentar roteiros que não têm a mínima intenção de seguir, se vierem a filmar. ” (Luiz Zanin, O Estado de São Paulo, 25/07/2007)
Com a crítica, as políticas de distribuição de verbas para o audiovisual feita por Furtado, infiro a partir da concepção de SANEAMENTO BÁSICO, O FILME” a imprescindível necessidade de uma formação mais profunda e qualificada em termos da cultura cinematográfica para o oficio de fazer cinema. Assim, cabe realçar a importância do papel que a ASCINE possui. Fundada em 2001, foi a partir de 2007 que o fomento à produção do audiovisual foi fortalecida. Com o revés sofrido em 2019 no governo Bolsonaro, atualmente com o governo de Lula a ASCINE volta a ter destaque no desenvolvimento das políticas públicas para o cinema.

Joaquim Ferreira

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Raquel 1:1(Mariana Bastos;2022)

BRASIL;2022. ; DIREÇÃO E ROTEIRO:Mariana Bastos;90 min.
ELENCO PRINCIPAL: Valentina Herszage, Emilio de Mello, Priscila Bittencourt, Eduarda Samara, Ravel Andrade.
Raquel, uma adolescente religiosa, se muda com o pai para uma pequena cidade no interior do Brasil para começar uma nova vida. Ela faz amizade com um grupo de meninas evangélicas e se aprofunda em sua espiritualidade e na dor de seus traumas. Durante seus primeiros dias na nova cidade, ela também experimenta um misterioso despertar espiritual, onde recebe uma importante e controversa missão envolvendo a reescrita da Bíblia. Com apoio de alguns e ressentimento de outros, Raquel se esforça para encontrar equilíbrio dentro de uma perturbadora espiral de fé, razão e loucura.


segunda-feira, 24 de abril de 2023

Peões ( Eduardo Coutinho;2004)


BRASIL;2004
Direção:Eduardo Coutinho;85 min.
A história de trabalhadores da indústria metalúrgica do ABC paulista que tomaram parte no movimento grevista de 1979 e 1980, mas permaneceram em relativo anonimato. Eduardo Coutinho mergulha na busca pelos metalúrgicos do ABC paulista que participaram da greves. O movimento mudou a face do sindicalismo brasileiro, forneceu as bases para a criação do Partido dos Trabalhadores  e fez emergir a figura do líder Luiz Inácio Lula da Silva

Fados (Carlos Saura;2007)


PORTUGAL/ESPANHA;2007
Direção:Carlos Saura;90 min.
Fados é uma viagem sonora que  mistura  Brasil, Portugal e África em uma produção que destaca o gênero musical que se tornou uma referência dO patrimônio cultural dos portugueses. As canções são interpretadas por artistas  como Caetano Veloso, Chico Buarque, Toni Garrido, Mariza, Camané, Lila Downs, Carlos do Carmo, entre outros,além de uma homenagem àquela que foi a maior cantora de fado de todos os tempos: Amália Rodrigues.
 

segunda-feira, 17 de abril de 2023

Ex-Pajé ( Luiz Bolognesi;2018)


 BRASIL;2018; Documentário
Direção:Luiz Bolognesi;80 min
Perpera viveu na floresta sem contato com os brancos até os 20 anos de idade. Era um homem poderoso, do povo Paiter Suruí, até conhecer o homem branco, em 1969. Após ser acusado por um pastor evangélico de ter parte com o Diabo, é constrangido a se tornar um porteiro da igreja Evangélica, renunciando aos seus poderes de pajé. No entanto, essa missão comandada pelo pastor intolerante é posta em xeque quando alguém da aldeia vê a morte de perto e a sensibilidade do índio em relação aos espíritos da floresta mostra-se indispensável.

domingo, 16 de abril de 2023

Gyuri( Mariana Lacerda;2022)


BRASIL;2022 ; Documentário
Direção e Roteiro: Mariana Lacerda;88 min
Uma linha geopolítica improvável entre a pequena aldeia húngara de Nagyvárad e a Terra Indígena Yanomami, na Amazônia brasileira. Judia, sobrevivente da Segunda Guerra, Claudia Andujar exilou-se no Brasil e dedicou a vida à salvaguarda dos povos Yanomami. Seu valioso acervo, sua militância incansável, seu passado de guerra e a vulnerabilidade atual dos indígenas são revistos por meio de diálogos de Andujar com o xamã Davi Kopenawa e o ativista Carlo Zacquini, com a interlocução do filósofo húngaro Peter Pál Pelbart. 
Filme integrante do *Festival "É Tudo Verdade" 2023*.