segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Incêndios ( 2011,Denis Villeneuve)

Indicação  do filme e apresentação: Silvana Massiotti
Texto: Reinaldo Silva
Gêmeos ou quando 1+1=1
Vou iniciar este artigo descrevendo rapidamente aspectos comparativos que o filme possui em relação a uma peça teatral, que faz parte da cultura grega antes da era cristã, escrita por Sófocles, denominada Édipo Rei. Uma tragédia grega. Todas as tragédias gregas são enigmáticas. É um resumo “papo cabeça”. No meu entender tem tudo a haver com o filme.
A peça narra a história de um personagem, Édipo, que, sem saber, desprovido de qualquer intenção prévia, por puro desconhecimento, comete incesto. Insisto, porque é importante: Édipo não premeditou esse ato. Ele logo após ter nascido foi levado para longe de sua cidade natal, porque um Oráculo (v. google) ao ser consultado disse que sua vida corria perigo se lá permanecesse. Foi adotado e no transcorrer de sua existência adquiri as qualidades de um bravo guerreiro. Após um longo período trava uma luta com um adversário e o mata. Logo em seguida, casa com a viúva deste adversário.
Vários anos se passaram e uma longa peste devassa os alimentos da cidade em que Édipo foi consagrado Rei, pondo em risco a vida da população. Para conhecer o motivo de tal fatalidade o Oráculo é consultado. E sua resposta é aproximadamente esta: “alguém nesta cidade matou o seu pai e casou com sua mãe”. Por analogia, que aqui não vem ao caso, Édipo descobre que este alguém é ele. Ao fazer a descoberta Édipo perfura seus olhos cegando-se (v.nota no final).

Fim do “papo cabeça”!
Agora caros leitores(as) vocês que viram o filme e aqueles que, por ventura, sentirão vontade de ver, porque eu não vou contar, façam as suas próprias comparações entre o filme e alguns elementos que acima privilegiei da peça Édipo Rei.
No início da peça um enigma é anunciado e durante todo o transcurso da narrativa, vários personagens estão envolvidos sem saber qual será o desdobramento que o enigma apresenta, em que ocasião a revelação ocorrerá e qual as consequência advinda da revelação do enigma.

Tal como na peça, também no filme um enigma é anunciado, na abertura de testamento, envolvendo a vida dos principais personagens (mãe, filha, filho e um terceiro personagem, que a mãe nunca revelou a existência). Fica bastante explícito no testamento lido pelo testamenteiro aos seus filhos, que este terceiro personagem é um irmão que eles desconhecem.
O testamento é redigido como um enigma, convocando os filhos a procurar o irmão desconhecido.
No desdobramento do percurso, descobertas surpreendentes irão desvendar a origem e trajetória da vida da Mulher que Canta e do terceiro personagem, que no decorrer do filme iremos descobrir que ele é um “além-irmão”, se assim posso considerar.
A segunda diz respeito ao acaso surpreendente que todos desconhecem. Um acaso que no passado transformou definitivamente a vida da Mulher que Canta alcançando a todos os personagens, uma ferida no ser que não cicatriza.
Na peça Édipo Rei um Oráculo anuncia um enigma no qual o personagem Édipo não sabe que está envolvido. No filme, qual é a posição que assume o terceiro personagem?
No decorrer dos anos Édipo transformou-se num bravo guerreiro. Em que se transformou esse terceiro personagem?
Édipo cega-se ao conhecer o enigma. O que acontece com A Mulher que Canta ao descobrir por acaso, quem é esse terceiro personagem? O que aconteceu?
Estou apenas provocando a sua curiosidade, tá ligado(a)?
O filme não é xerox da peça, longe disso. E como todo filme acredito que possa ser visto com outros olhares.O filme é show de bola, e o delírio é meu!!
Então você está me pedindo dicas do filme! Tudo bem. Mas sem múltipla escolha.
Todo enigma é apresentado como um jogo de quebra cabeças; ou, se quiser: imagine-se no centro de um labirinto com vários corredores sem nenhuma indicação de saída?
Por onde ir? Não descole os olhos da tela.
Perguntas:
1)No filme, quem lança o enigma (exercendo a função do Oráculo) ao fazer uma revelação, provocando direta ou indiretamente as seguintes indagações: “Conheça a si mesmo”, “Saiba quem você é”?;
2)Em que momento, no encontro com o acaso, A Mulher que Canta tem acesso a revelação?;
3)Qual o sentido que um dos filhos quer dizer com 1+1=1?
4)Será esse 1+1=1 não é a representação matemática que o diretor utilizou para simbolizar o título do filme, Gêmeos?
Portanto, enigma, acaso, Édipo, A Mulher que Canta, os seus filhos e um terceiro personagem desconhecido e central da trama do filme, fazem parte de alguns elementos da estrutura narrativa da tragédia grega.
Viu, não contei o filme.
Todo labirinto do enigma ocorre em cidades localizadas no Oriente Médio, onde os confrontos políticos estão imersos em um ódio pela diferença religiosa. “Assistimos” a todo tipo de crueldade, a violência descarnada beira a barbárie. Mas, atenção é importantíssimo as aspas no assistimos!
Não é um filme que banha a tela de sangue, cabeças cortadas etc desses da sessão da tarde na televisão. O diretor utiliza duas estratégias para evitar que os espectadores tenham acesso ás cenas com maior impacto de violência. Primeira estratégia: pense numa espécie de ante-sala dos acontecimentos, na qual é nossa imaginação que age ou bloqueia o acontecimento.
Segunda estratégia: a) filma as cenas violentas à distância, muda rapidamente de câmara, mudando também de cena antes que o ato seja mostrado na tela, o que desloca a visão do expectador(a);
b) ou ainda de maneira inteligente, afasta e posiciona a câmara, embaçando as imagens (uma espécie de anteparo), para que a visão do expectador não fique envolvida diretamente nas cenas.
Estamos diante de um diretor que não apela para a banalizando da violência. Uma lição para aqueles diretores, que para mim, nada acrescentam em seus filmes, quando exploram a violência de forma apelativa, e que por isso não faço qualquer comentário sobre sua suposta arte rotulada de cult. 

Reinaldo Silva

Nota: Freud fundamentou o ensino teórico e prático da psicanálise freudiana pelo conceito Complexo de Édipo, extraído pela sua interpretação da peça Édipo Rei




segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Um Corpo Que Cai( 1958;Alfred Hitchcock)


Indicação do filme, apresentação e texto: Reinaldo Silva

Alfred Hithcock nasceu em 1899 em Londres (Inglaterra). Sua contribuição para a arte cinematográfica é inestimável. Em 54 anos de atividade, entre 1922 e 1976, ele dirigiu 53 longas-metragens.
Começou no cinema mudo e teve de se adaptar ao falado; foi do preto e branco (a seu ver o mais adequado à linguagem visual do suspense) ao colorido, e ainda realizou experiências pioneiras com o tecnicolor e a terceira dimensão. Dos estúdios londrinos a Hollywood, Hithcock fez de tudo; escreveu e desenhou letreiros de filmes mudos, foi assistente de direção, diretor de arte, roteirista, cenógrafo, figurante e diretor. Lançou ao estrelato jovens desconhecidos como Shirley MacLaine e Anthony Perkins, e trabalhou com grandes estrelas como Grace Kelly, Ingrid Bergman, Cary Grant e James Stewart.
Tinha enorme prazer em falar e escrever sobre como trabalhava (isso não apenas servia a propósitos publicitários), chamando atenção para o seu domínio da arte cinematográfica e satisfazendo a ânsia do público por uma perspectiva dos bastidores a respeito de como os filmes são feitos, mas também tinha importantes funções críticas e teóricas. Mantinha um diálogo contínuo com os críticos e o público espectador.
Publicações de livros, artigos em revistas especializadas, congressos e festivais de cinema não param de elogiar seus filmes. É conhecido como o mestre de filmes suspenses. Influencia até hoje incontáveis diretores, suas técnicas cinematográficas foram utilizadas e aprimoradas, e em alguns filmes literalmente copiadas. Alunos e professores de cursos de cinema e comunicação de faculdades espalhadas pelo mundo apresentam monografias e teses acadêmicas sobre a sua obra. Morreu em 29 de abril de 1980.
Charles Chaplin e Alfred Hithcock são os meus diretores favoritos. Marcaram definitivamente meu prazer pelo cinema. Depois vieram outros excelentes. Mas eles me conquistaram. Encantamento infantil “chapliniano” curiosidade adolescente “hithcockiana”.
Vou destacar e dar ênfase a um dos ângulos do filme com o qual mais me identifiquei. Esclareço que este ângulo foi para mim uma surpresa. Já assisti inúmeras vezes esse filme, mas não tinha sido influenciado pela perspectiva que destaco abaixo. É a comprovação de que mudamos a cada instante. Portanto, minha perspectiva é especulativa e recai sobre as observações que fiz sobre os comportamentos das personagens representadas por Kim Novak e James Stewart. Esses comportamentos estão inseridos em um contexto de suspense, que persistem durante a maior parte do filme, envolvidos pela música e fotografia excepcionais. Esses dois elementos (música e fotografia) enfatizam o desempenho dos atores na vivência das suas personagens. É a partir do desempenho dos atores que faço as especulações sobre os processos mentais dos personagens veiculados na tela. Acredito que esses processos interagem com o público de forma indireta ou diretamente. É o filme mais sensual de Hithcock.
Começo chamando atenção para a abertura do filme. Por favor, fixe o olhar e prestem bem atenção no formato do objeto que circula, entra e sai pelo olho de uma figura feminina, cresce e some, muda de cor e de lado da tela, cresce e some, misturado as cores vibrantes em painel de néon. O objeto muda de tamanho, mas o formato não muda.
Pergunto: Não é um rodamoinho ou remoinho(segundo o Dicionário Aurélio, movimento circular e forte, de pequeno diâmetro, que se processa em espiral, da superfície para o fundo, nas águas de um rio ou mar) que vemos? Mas que também pode ser a figuração de uma fobia, de uma compulsão, de uma possessão?
Vou chamar esse objeto de figura da Paixão. Paixão em todos os sentidos. Aquela sensação que nos desorienta. Uma sensação de aprisionamento, de um corpo fragmentado, desequilibrado, sujeito às fortes oscilações de humor, que nos faz refém e totalmente entregue a um dos nossos cinco sentidos (visão, olfato, paladar, audição e tato). Imagens que incorporamos e idealizamos sob a qual não temos nenhum controle consciente. Exemplos: comida, bebida, corpo, política, religião, dinheiro, poder, glória, fama etc, e por uma determinada pessoa. Toda paixão, para ser Paixão com letra maiúscula é movida por uma compulsão.
No filme o que está sendo mostrado é a potência da paixão entre indivíduos. Quem vivenciou ou vivencia uma paixão por uma pessoa saberá o que está acontecendo com os personagens. Trata-se de uma experiência intensa (existem pessoas que vivem ou imaginam vivenciar paixões o tempo todo). O título Um Corpo que Cai é uma metáfora deste sentimento. Um corpo que é sugado por um encantamento embriagador numa espécie de transe místico, pelos pequenos gestos, pelo cheiro da pele.
Peço desculpas, mas preciso direcionar o olhar de vocês para transmitir a minha especulação. Para abreviar, vou a partir deste momento mencionar apenas Kim e Stewart.
Observem o deslumbramento de Stewart na primeira cena em que aparece Kim. É claro que ele não poderá ser descoberto, uma vez que ele foi “contratado” para segui-la. Mas isso não explica o seu deslumbramento ao ver Kim de costas, ombros descobertos, sair do fundo do restaurante, envolvida em um cenário com cores vibrantes contrastando com seus cabelos louros que reluz como se fosse ouro. Stewart disfarça, mas ao mesmo tempo seu olhar parece indicar que ele foi envolvido por uma potência desconhecida.
Enquanto Stewart segue Kim vai sendo envolvido pela fragilidade de Kim. Fragilidade que o deixa embevecido quando se torna um herói ao salvá-la. Seus corpos entram em contato. Na cena seguinte Kim esnoba em sensualidade. Dizem que um dos fetiches entre os indivíduos é vê o outro vestindo roupas opostas ao seu sexo. É assim que Kim se apresenta a Stewart.
Roupas penduradas indicam que Stewart manteve um primeiro contato com o corpo de Kim. Com os olhos petrificados, faz uma oferenda (café) indicando o trono próximo à lareira, local que simboliza a chama que ilumina o templo dos deuses ou das deusas. Ele está sendo sugado pela paixão.
Nos minutos finais do filme vocês verão que a situação se inverte. É Stewart que irá pilotar Kim. Mas isso vocês irão descobrir. Como aperitivo relato apenas que o personagem de Kim irá ressuscitar aos olhos de Stewart numa das cenas mais bonitas do filme. Chega! Não conto mais, nem que “a vaca tuça”.  
Já faz algum tempo que a Diva me deu a cópia de um livro intitulado Curso de Psicopatologia que ela utilizou na faculdade. De vez em quando eu o vasculho tentando fazer uma autoterapia. Prefiro terapia de choque. Já me diagnostiquei com uns oito ou nove sintomas. É meu livro preferido de auto-ajuda. Não está a venda nas livrarias. Dizem que esgotou. Quem estiver procurando fórmulas gabaritadas de qualidade de vida, recomendo a leitura deste  livro. Depois de conhecer todos os sintomas classificados pela psiquiatria, vocês podem decidir se cortam os pulsos ou se jogam num precipício. Vocês irão entender porque os psiquiatras são pessoas tão amáveis e a maioria se suicida. Como vocês já perceberam “eu amo” a psiquiatria!!!
Pensei em descrever o que é fobia ou acrofobia, compulsão e possessão, mas mudei de idéia. Não quero causar uma má impressão. Eu empresto o livro se quiserem saber.
Hithcock insere a possessão, alucinações, fobias e obsessão na trama do suspense do filme. Cria até um modelo terapêutico de cura.
Retorno ao filme.
Quem adivinhar em que cena o Hithcock aparece, ganha uma coxinha de galinha do mercado do Juca, ok?
Tenho que mencionar dois detalhes importantíssimos do filme. Relaxe os olhos e abra os ouvidos (ou vice versa). Goze com a fotografia e com a música, e limpe as “pupilas degustativas” e os tímpanos.
A música é utilizada para criar uma “atmosfera”. Gerar excitação. Aumentar a intensidade da interpretação visual dos atores na cena, cadenciar ou dar mais vigor aos gestos. A música também pode ser um pano de fundo para a cena e um comentário sem a formalização do diálogo. Exerce a função do diálogo em uma cena muda e age como um trampolim psicológico das emoções sem que o público perceba. Ela torna possível expressar o que não é dito. A base do apelo cinematográfico é emocional. Dúvidas, interrogações, fascínio, discordâncias, desejos, aflições, medo e tudo que possa humanizar os atores, aproximando-os dos sentimentos do público.
Antes de comentar sobre a fotografia do filme, menciono dois comentários de Hitchcock sobre como escolhia as atrizes principais do elenco:
1)O principal critério que sigo ao selecionar minha heroína é que ela deve ser do tipo que agrade às mulheres, mais que aos homens, porque três quarto da platéia média de cinema é constituída por mulheres. Portanto, nenhuma atriz pode ser uma boa sugestão comercial como heroína de um filme, se não agradar a seu próprio sexo.
2) Uma heroína de cinema não deve ter altura acima da média; de fato, ser pequena é definitivamente uma virtude. Uma atriz pequena não apenas fotografa melhor que a que “se ergue a alturas imponentes” – especialmente em cena de close – como também agrada mais a platéia, que gosta de ver a cabeça cacheada da heroína aninhada no peito másculo do herói. Por isso é que praticamente todas as atrizes que alcançaram sucesso no cinema em papéis românticos e sentimentais são baixinhas.
Fotografia. Kim e Stewart são vasculhados de ponta a cabeça. Ela, de perfil, de corpo inteiro, da cintura para cima. Esbanja sedução. Ele, no rosto e nos olhos azuis petrificados.  Ambos em primeiro plano.
Hitchcock disse numa entrevista anos depois a François Truffaut que Kim Novak não usava sutiã e se gabava disso.
Na cópia restaurada vocês irão perceber que isso é verdade. Pelo que eu sei, não sou catedrático no assunto, nenhuma atriz daquele período do cinema foi tão ousada.
Outro detalhe que compõe a fotografia são as roupas que Kim veste, os automóveis, o vermelho das paredes e do tapete do restaurante onde Stewart a vê pela primeira vez quando Kim acompanhada o marido.
Reparem que a câmara se aproxima e fixa um ponto quando precisa acentuar os momentos mais emocionalmente intensos em ambientes fechados (por exemplo: beijos, abraços, luta etc ou para acentuar um detalhe importante como no caso do colar), e se distancia em locais públicos para que o(a) observador(a) possa identificar o local da cena (por exemplo: quando Stewart observa Kim na galeria de arte ou no cemitério, quando Stewart vê Kim entrando no hotel etc). Mas, a câmara pode fotografar ambientes internos simulados no estúdio como se fossem externos (exemplo: quando Stewart está pendurado na calha do telhado; nas cenas em Stewart dirigi o carro etc).
Música e fotografia são irmãs siamesas das imagens onde desliza os olhos do público nas finas películas dos fotogramas da celulose. Por isso Hithcock dizia que o cinema mudo era a essência da arte cinematográfica. (Reinaldo Silva)

domingo, 11 de setembro de 2016

Cinema Paradiso(1988,Giuseppe Tornatore)



Indicação do filme: Reinaldo Silva
Apresentação : Joaquim Ferreira
Textos: Joaquim Ferreira e Reinaldo Silva

Milos Forman, quando perguntado sobre o que é cinema, afirmou que ele  é o compartilhamento de varias verdades, as nossas verdades e as verdades dos outros na perspectiva da troca dessas verdades. Na realidade, as outras verdades são as verdades dos críticos e do espectador. Enfim, um movimento de (re)construção de subjetividades!
E mais do que revelá-las, tais subjetividades são reforçadas na troca , recompondo as individualidades e o próprio mundo que nos cerca. No mundo em que vivemos, o pós-modernismo cerca as individualidades e criam um individualismo desconectado da realidade, ensimesmado em certezas rasas. Por isso também, o cinema é importante na exploração de varias visões de mundo sobre um filme  que equilibram  e afinam convergências sobre um fato, um momento ou ainda sobre o próprio papel do individuo no mundo. Esse é  o espírito que norteia nosso grupo de cinema: as escolhas e  as apresentações dos filmes, assim como   os textos apresentados,  seguem a proposta de revelar subjetividades.
Subjetividades são contraditórias e, muitas vezes, não enxergamos o obvio que compõem nossas subjetividades.Talvez o excesso de racionalidade ou uma estrutura emocional  que repele a pieguice pode atrapalhar  escolhas , sobretudo as mais obvias , postura aceitável e normal na recomposição de individualidades que necessita de  equilíbrio é . Deste modo, fui convidado, digamos " desafiado"  pelo amigo Reinaldo,  a  indicar e apresentar o filme Cinema Paradiso do diretor italiano  Giuseppe Tornatore. Confesso   que Cinema Paradiso não é o meu filme preferido de Tornatore.
Pode ser estranho afirmar  isso,mas a questão é  que fui provocado pelo Reinaldo a enxergar o óbvio. Fui instigado , a partir do enredo de Paradiso, a felicidade do menino Totó com a magia do cinema -, a revelar um pouco da minha própria vida baseado na pergunta chave: Por que gosto tanto de cinema? Confesso que expor a vida é uma coisa um tanto  complicada, mas se pensarmos em termos da recomposição das subjetividades que falei, por que não contribuir com esse movimento, revelando aspectos emocionais ligados a memória, ao amor por algo e a formação dos  gostos e  prazeres. Por isso, topei o desafio proposto pelo Reinaldo.Não me tornei cineasta mas sou um amante do cinema. Não virei  Salvatore, mas lembro de momentos Totó, que ajudaram a construir o amor pelo cinema.
Quando menino, com cerca de 9, 10 anos, costumava passar as  ferias escolares  na cidade de Santos, no litoral paulista ,Um dia , um primo de meu pai, o Antonio ,um faz-tudo no extinto cinema Brasília da cidade,me viu num canto, deslocado pela timidez e pela censura do filme .Típico português ,de poucas palavras mas de intuição loquaz, o Antonio  me pegou pelo braço em direção a sala de cinema e abrindo  um pouco a cortina da entrada ,  maravilhado, vi pela primeira vez, a tela enorme , colorida, cheia de símbolos e sons. O filme projetado era  2001-Uma Odisséia no Espaço, do mestre Kubrick , e a inesquecível cena  foi a do osso jogado para o alto que , em câmera lenta, vai subindo, subindo até surgir uma nave espacial. Fascínio e gosto de quero mais! Não sei se foi no mesmo ano, mas em outra sessão, a suprema transgressão  de um menino, incentivado pela fluente emoção do primo taciturno, marcou para sempre minha memória e minha subjetividade: entrei na sala de projeção e , com censura e tudo,  lá  estava ela, a maquina que saía cinema, talvez um 16 mm. E que nem um Totó, vi  cenas rápidas pela janelinha do projecionista. O filme em questão, era um do Steve McQueen,  As 24 Horas de Le Mans. Pronto!  Da paquera- com olhos infantis - ,à paixão (meio proibida) - pelas cores, pelo som, pelo escuro revelador, surgiu então o amor pelo cinema.Sentimentos que foram fundamentais para a vida à frente.
O cinema tem essas coisas ! Ele é pedagógico  completo pois é enredo, ele é memória, sons,cores,ficção, verdade e ,sobretudo , subjetividades inscritas na tela.E como não pensar na mensagem do diretor que, muitas vezes, coincide com o que pensamos, tipo uma garrafa de SOS lançada ao mar que, nos momentos " ilhas desertas" da vida, as vezes param em nossa mãos ?
Cinema Paradiso não era , como afirmei , o meu filme preferido de Tornatore.  Sete anos depois do sucesso comercial , critico e estético de Paradiso, o diretor lançou O Homem das Estrelas , outro filme sobre cinema .Talvez, com o sucesso  anterior, o diretor tenha ficado mais livre e leve para expor a metalinguagem sem maiores riscos emocionais  .Mas depois de rever  Cinema Paradiso......
Cinema Paradiso é emocionante, reequilibra o individuo. O filme possui um extenso repertorio de alcance entre os amantes do cinema, e tem muitos aspectos do chamado “cinema de arte”, mas que também desperta interesse naqueles  que buscam um cinema menos reflexivo . Um dos méritos de Cinema Paradiso é o de não cair no emocionalismo barato , mesmo que os elementos da trilha sonora, confesso, nos deixem extremamente mexidos. Afinal, a trilha de Morricone sempre nos deixa assim ! Mas outros aspectos estruturais do filme, como a cenografia e montagem, equilibram o filme . A direção de arte ganha bastante com a visão do espaço de exibição de filmes numa  típica sala nos moldes dos cinemas de rua, ambiente alcançado por poucos da geração cinéfila atual. Reside aí , um outro  aspecto de Paradiso: o pedagógico ou, a lição de como fazer cinema desde a cabine do projecionista até o diretor, passando pela apropriação  dos filmes que fizeram a história do cinema . Na felicidade do menino Totó ao descobrir , aos poucos, pela abertura na cabine do projecionista, a magia do cinema , início um processo de aprendizagem  que é uma verdadeira aula de como integrar aos elementos que compõem o filme, não apenas a parte técnica do cinema,mas também a sua estrutura histórica com a  constante recorrência a citações e trechos de filmes clássicos durante a película.
Assim, revi o filme e Cinema Paradiso acabou se transformando no melhor filme de Tornatore para mim.A cena final ,quando o Totó-crescido-e-diretor-de-cinema- Salvatore assiste emocionado a uma vertiginosa montagem dos beijos clássicos do cinema, me remeteu a superação do esgarçamento e da fragilidade dos sentimentos, fatores intrínsecos a nossa própria existência..O corte para a cena final mostra um Salvatore emocionado, mostra que ele é todos nós, quando da necessidade do resgate da emoção mais profunda e verdadeira : a revitalização do amor e da paixão, pelo cinema ou pela vida.Não importa! ( Joaquim Ferreira)


Cine Paradiso: Amizade, “Pupilas Degustativas” e Paixão pelos Encontros


Imaginação (parte 1)
A professora dirigindo-se a turma batendo a sua vara de marmelo na mesa:
Silêncio! Silêncio! Alfredo, diga para a turma o que você faz no Cine Paradiso.
Alfredo: Bem, eu não sei bem como começar (olha fixamente para Totó). Talvez o (pára e pensa:“não posso revelar a minha cumplicidade com Totó). Bem, aprendi que certos filmes agitam as nossas “pupilas degustativas”.
Os alunos: Kakakakakakakakakaka!!!!!!!!
Professora: Silêncio! Silêncio! Olha aqui Alfredo, isso aqui não é uma brincadeira, ouviu?
Alfredo: Mas não estou brincando!
Professora: Não temos pupilas degustativas, entendeu? O correto é papilas degustativas. E fica na boca e não nos olhos, entendeu? Com quem o você aprendeu essa besteira?
Alfredo: Com um professor de história. Ele disse que quando um filme é bom, agita nossas pupilas degustativas.
Professora: Você não percebe que esse professor de história é louco!!
Alfredo: Dizem que ele é louco por cinema.

1) Cine Paradiso é uma obra prima. Generoso! Comovente! Extraordinário!
Posso escolher uma dessas palavras e mesmo assim as emoções ficarão contidas. Encontro com a potência da alegria. Exemplo marcante do amor pelo cinema. Precisa ser revisto inúmeras vezes para agitar as nossas “pupilas degustativas”. Isso mesmo, Cine Paradiso é uma degustação para os olhos, pupilas que se agitam mergulhadas no sabor das imagens.

Imaginação (parte 2)
Cortinas do Cine Paradise entreabertas:
Joaquim: Olá Totó! Quanto tempo que não nos vemos!!
Totó: Olá Joaquim! Como assim? Não entendi!
Joaquim: A última vez que nos vimos foi em Santos, lembra?
Totó (rindo): Coitado do Alfredo! Sabia que ele só falava nas pupilas degustativas. De onde você tirou isso? O que eu não estou entendo agora é essa sua conversa de que não nos vemos a muito tempo. Acho que você pirou igualzinho aquele sujeito que ficava falando“a praça é minha!“a praça é minha!”. Foi em Santos que nos vimos pela primeira vez!! (Totó cai na gargalhada).
Joaquim: Não me confunde Totó. Eu não lhe vejo a muito tempo!
Totó: Ah não? É o seguinte Joaquim. Nós estamos sempre juntos assistindo os filmes, nos emocionamos juntos, mas você é tão louco por cinema que nem repara.
Joaquim: É mesmo!!!
Totó (as gargalhadas): Não disse? Tchau! Vou encontrar o Alfredo.
Encontro inédito. Potente e definitivo até hoje. Uma odisséia particular do Joaquim iniciada em Santos. Observo as falas miúdas no entreabrir das cortinas, dois rostos imóveis com olhos esbugalhados aparecem na tela do Cine Estalagem. Encontraram a paixão. Estão loucos pelo cinema!!

2) Minha imaginação não me da trégua. Os personagens do filme Cine Paradiso saem da tela, vem na minha direção, misturam-se em meus sentimentos, vasculham as emoções. Tudo parece real. Expressões faciais, gestos e as reações dos personagens são peles em minha pele. Corpos que encontram outros corpos. Alegria e tristeza. Características essenciais da vida humana. Da vida tal como ela é. Sem reparos e melodramas.
3) Fico com a impressão de que todos os atores, em seus respectivos personagens, incorporaram uma interpretação geométrica. Os movimentos se moldam aos ambientes, os traços fisionômicos seguem a linearidade das palavras, os enquadramentos das cenas são pinturas que nos aproxima e afasta da sucessão dos acontecimentos. E a música!!! É inserida no momento em que as imagens aprofundam, cavam e fazem emergir a fragilidade mais densa das emoções.
Um filme é composto de muitas partes. Resultado do desempenho de uma equipe técnica coordenada em várias funções. Fotografia, montagem, edição, vestuário, maquiagem, iluminação, diálogos, roteiro, música, etc. Divisão de tarefas para mobilizar a nossa imaginação.
O que me interessa num filme é lançar mão dos recursos interpretativos das emoções e da razão. Paralelo entre corpo e mente. Destaco uma cena aqui, monto outra cena ali, junto, corto, edito e pronto: o meu filme está tinindo com recursos audiovisuais e efeitos especiais.
4)”Vá embora e não volte nunca mais, entendeu Totó? Não olhe para trás”.
Diz o mestre Alfredo a Totó.
Minha interpretação: “Totó de um outro sentido a sua vida, encontre o seu lugar no mundo, aqui você não passará de um projetista de um cinema do interior. Também não espere pelo retorno de uma paixão que só existe na sua recordação. Lute pela sua liberdade, faça novos encontros em busca dos seus desejos”.
No corpo memória de Totó existe fragmentos de imagens em formato de curtas metragens.
Do início ao fim a amizade entre Alfredo e Totó é de uma incrível potência afirmativa. Mesmo nos momentos mais alegres (quando Alfredo quebra as regras estabelecidas pelo poder religioso local em benefício daqueles que não conseguiram entrar no cinema), o sofrimento e solidariedade são elementos fundamentais desta amizade inapelável. Somos surpreendidos por encontros inesperados, que ora nos alegram ora nos entristecem. Esse é o movimento pendular que a Vida oferece. A Vida que merece ser vivida. Sem beira nem eira.
5) Amizade no encontro com a admiração. Alfredo resiste e apela. Totó joga o jogo. Quer porque quer. Desafia e desfecha um golpe decisivo:
Alfredo: Totó estou perdido, desesperado!!! Pelo amor de Deus me dá cola. Preciso passar na prova!
Totó: Troco a cola desde que eu possa mexer na máquina lá de cima. Topa ou não?
Alfredo: Não! Não! Ahn! Ta bom Totó! Topo sim!!!
Na tela passa o filme Ulisses, interpretado por Kirk Douglas. Ulisses enfrenta um enorme gigante de um só olho. Totó vence Alfredo. Ulisses vence o gigante.
6) Orgulho na amizade. Orgulho de si, sem escapismo e narcisismos atuais. Orgulho por uma amizade que escolhemos. Próprio, sentido e silencioso.
Quem resiste aquele sorriso dentuço do Totó? A sua perseverança no desejo que o anima? A sua explosão de alegria? O seu amor pela vida? Quem não gostaria de ter tido na vida um mestre como Alfredo?A sua sabedoria na escuridão do tempo? (Reinaldo Silva)



segunda-feira, 5 de setembro de 2016

A Excêntrica Família de Antônia (1995,Marleen Gorris)


Indicação do filme: Celso Bonfim
Apresentação: Joaquim Ferreira

" ´O tempo não cura as feridas, mas alivia a dor e embaça a memória´.
 A verdade é que o tempo não perdoa nada nem ninguém. E perceber seus efeitos pode ser algo bem triste. A ele nada escapa, embora todos vivam suas vidas sem se aperceber disso. É disso que fala A Excêntrica Família de Antônia filme da diretora Marleen Gorris, que conta a história de quatro gerações da família desta generosa, moderna, e terna mulher, que viveu a vida de uma forma tão simples e afetuosa, que quando a hora de partir chegou, ela simplesmente reuniu a família, despediu-se, fechou os olhos, e morreu…
Na primeira cena do filme, escutamos os suspiros de Antônia (Willeke van Ammelrooy) seguidos pelas lembranças de seu passado a partir do momento em que retorna à sua cidade natal acompanhada de sua filha Danielle (Els Dottermans) para visitar sua mãe, já no leito de morte. A partir de então, Antônia passa a viver novamente ao lado das pessoas daquela cidade. Percebe-se rapidamente que é uma mulher diferente das demais, acolhida pela cidade, da mesma forma com que se convive “com uma colheita ruim, uma criança deformada, ou um manifesto da onipresença divina”, segundo as palavras da narradora.
Acompanhamos cinco gerações de uma família que vai se constituindo a partir do amor e da generosidade da matriarca, que não hesita em acolher de diversas formas os habitantes daquele pequeno vilarejo, dos tipos mais diversos possíveis: desde uma mulher que uiva para a lua cheia, até um casal de deficientes mentais que encontra o amor de uma forma inesperada e improvável, passando por um filósofo pessimista, uma filha lésbica e uma neta superdotada.
Belas cenas envolvendo a imaginação de Danielle, como no momento em que se apaixona pela professora de sua filha (quando a vê como a Vênus de Botticelli), uma bela maquiagem que demonstra fielmente a passagem de tempo, e a variedade de sentimentos presentes na trama vividos pelos personagens e compartilhados com o expectador. Tristeza, alegria, e um estranho sentimento de melancolia, quando se percebe que embora a “missão” de Antônia já fora cumprida, e que sua hora chegou.
“ A vida quer viver!”, diz Antônia a sua neta em determinado momento do filme, e talvez seja esta mensagem que fica no final de tudo: perdas, ganhos, tudo isso faz parte da nossa história. Cada encara de seu jeito o fato de que a vida não tem muito sentido para além destas contingências (de um lado há a celebração desta vida na família de Antônia, de outro a negação desta pelo filósofo), mas a única verdade é que embora permeada por vários fins e começos (o que é simbolizado no filme pelas constantes gestações que vemos em cena), a vida nunca é conclusiva… É como se fôssemos pequenos capítulos, ou quem sabe notas de pé de página desta grande epopéia que é o existir… 
Belo e comovente no seu último ato, A Excêntrica Família de Antônia recebeu o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1995. Merecido prêmio para um filme excepcional. Assistam."

Disponivel em http://www.cinemadebuteco.com.br/criticas/romance/excntrica-famlia-de-antnia-html/