terça-feira, 17 de maio de 2022

Deus da Carnificina ( Roman Polanski,2011)


Adaptando em Deus da Carnificina a peça homônima da francesa Yasmina Reza, encenada no Brasil em 2011, o diretor franco-polonês Roman Polanski extraiu o melhor da qualidade do texto, aliando-se à própria autora como corroteirista e a um notável quarteto de atores: Jodie Foster, Kate Winslet, Christoph Waltz e John C. Reilly.
Tirando bom partido do confinamento previsto no texto original, cuja ação se passa na sala de um apartamento, Polanski desdobra as muitas nuances de um duelo verbal feroz entre dois casais. Um deles, formado pelos pais de um garoto que agrediu o filho do outro com um pau, quebrando-lhe dois dentes. Os dois meninos são colegas de classe.
O incidente, corriqueiro na aparência, é o rastilho de pólvora que vai incendiar quatro personagens de origens sociais e culturais diferentes, cada um representando posições em choque sobre diversas questões explosivas no mundo atual – o politicamente correto, a mobilização por causas do Terceiro Mundo, as regras da vida em comunidade, as diferenças entre homens e mulheres, os sacrifícios pessoais exigidos pelo casamento.
Polanski faz justiça ao texto, assinando um filme notável por sua intensidade minimalista ao sustentar a ironia que se infiltra nas entrelinhas. Além de estar à vontade dentro deste tipo de cinema claustrofóbico, que ele cultivou tão bem em trabalhos anteriores, como A Faca na Água (1962), Repulsa ao Sexo (1965) e O Inquilino (1976), o diretor recebeu um inesperado e desagradável reforço adicional: foi durante os sete meses de sua prisão domiciliar, em seu chalé na Suíça, em 2009, que ele produziu este roteiro. A prisão foi ainda um rescaldo da velha pendência com a justiça norte-americana, relativa a um suposto estupro contra uma menor, há 35 anos atrás.
Inovando em relação à montagem teatral, Polanski incorpora ao filme duas sequências externas, filmadas num parque de Nova York por um de seus assistentes – já que ele pode ser preso se voltar ao país -, inclusive a própria briga dos meninos que deflagra a guerra entre seus pais. Além disso, o diretor acrescenta uma ácida conversa entre o casal Nancy (Kate Winslet) e Alan Cowan (Cristoph Waltz) no banheiro, inexistente no teatro.
Filme e peça apoiam-se fundamentalmente na notável artilharia verbal do texto original, que serve à perfeição não só para delimitar as diferenças entre os personagens, como para escancarar como são frágeis as máscaras sociais, como a educação, a cultura, até os modos à mesa. Não é um panorama muito otimista do estado geral da civilização, alguns milênios depois da saída dos homens das cavernas, mas certamente sua ironia é uma digna forma de encará-lo.
 
Fonte: http://cineweb.com.b...p?id_filme=3731


 

O Anjo Embriagado( Akira Kurosawa;1948)


 Indicação,apresentação do filme e texto : Fábio Martins


O Anjo Embriagado (Yoidore tenshi) – Japão, 1948
Direção: Akira Kurosawa
Roteiro: Keinosuke Uekusa, Akira Kurosawa
Elenco: Takashi Shimura e Toshirô Mifune.
Duração: 98 min.

O filme é frequentemente considerado a primeira grande obra de Kurosawa como diretor. Trata-se de uma história realista, com alguma influencia do realismo italiano, no qual um médico, alcóolatra,  atende um gangster ferido e identifica nele sinais de tuberculose. Esta foi a primeira parceria de Kurosawa com o ator Toshiro Mifune (que irá interpretar papéis importantes em 16 filmes do diretor). Apesar de Mifune não ter sido escalado como protagonista, sua performance explosiva como o ganster dominou tanto o filme que acabou desviando o foco do personagem principal, o médico alcoólatra. Se em Um Domingo Maravilhoso (1947), Kurosawa abordou de maneira crítica e lírica a vida da população pobre no Japão pós-guerra, em O Anjo Embriagado ele voltou suas lentes para os miseráveis e para as gangues. 
O protagonista de Anjo Embriagado é interpretado de forma marcante por Takashi Shimura, que dá vida a um médico de modos pouco sutis, mas que expressa seu lado doce com uma jovem adolescente que ele cura. O médico mostra-se preocupado com a saúde dos que o procuram, agindo, às vezes, como um verdadeiro pai turrão. Já o mafioso interpretado por Mifune, embora acometido com tuberculose, não consegue interromper seus vícios, o que agrava cada vez mais o seu estado de saúde. Entre vícios e miséria, o filme apresenta o cotidiano de uma comunidade na periferia de Tóquio, entre a sujeira e o mau cheiro, no qual Kurosawa usa da própria constituição do cenário para delinear a composição psicológica de suas personagens, que não sofrem apenas dos males do corpo, mas também do espírito.
A fotografia de Takeo Ito explora bastante o contraste entre o dia e a noite, o preto e o branco, lembrando, até por sua constituição criminosa, os filmes noir. Com o retorno do chefão da gangue reassumindo o seu lugar, o personagem de Mifune vai definhando, os seus comparsas da Yakuza arquitetam um modo de deixá-lo fora dos negócios o mais rápido possível. A indicação de uso do homem como uma peça, que quando quebrada ou defeituosa é jogada fora, é apresentada de maneira cruel. Kurosawa não faz apenas a condenação moral do crime, mas convida os espectadores a refletirem sobre o contexto social em torno da criminalidade.
O Anjo Embriagado foi um grande sucesso de público à época de seu lançamento, 1948, sendo aclamado também pela crítica, e escolhido pelo grupo de críticos Kinema Junpo como o melhor filme do ano, o primeiro de três filmes de Kurosawa a receber essa honraria. Foi ainda vencedor dos prêmios de Melhor Fotografia, Filme e Trilha Sonora no Mainichi Film Concours. Em que pese ter sido obrigado a reescrever o roteiro por causa da censura dos tempos da ocupação americana,  trata-se de obra geralmente caracterizada como o início da independência e domínio pleno de Kurosawa sobre a direção geral de seus filmes, o que irá se consolidar em Cão Danado (1949), e despontaria nas obras-primas da década seguinte.