sábado, 10 de dezembro de 2016

Casablanca (Michael Curtiz;1942)


Casablanca é filme de 1942, concebido dentro do espírito de propaganda a  favor da participação dos EUA na Segunda Guerra Mundial na Europa.Com improvisações de roteiro, resultou em símbolo de romantismo amoroso e político no cinema. Ganhador de três Oscars, inclusive o de melhor filme.

Casablanca, ou o renascimento dos deuses
Umberto Eco, 1975 (*)
(*) UMBERTO ECO, 1985. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, p.263-268

Há duas semanas todos os quarentões estavam diante do televisor para rever Casablanca. Não se trata de um normal fenômeno de nostalgia. De fato, quando Casablanca é projetado nas universidades norte-americanas, os jovens de vinte anos sublinham cada trecho e cada deixa canônica (“mande prender os suspeitos de sempre”, ou então “são os canhões ou é o meu coração que bate?”, ou todas as vezes que Bogey diz “kid”) com aplausos quase sempre reservados às partidas de beisebol. E o mesmo tive oportunidade de ver numa cinemateca italiana freqüentada por jovens. Qual é então o fascínio de Casablanca?
A pergunta é legítima, porque Casablanca é esteticamente falando (ou seja, do ponto de vista de uma crítica rigorosa), um filme modestíssimo. Revista, pastiche, onde a verossimilhança psicológica é muito frágil, as reviravoltas concatenam-se sem razões aceitáveis. E sabemos também por quê: o filme foi pensado à medida que ia sendo rodado, e até o último instante o diretor e os roteiristas não sabiam se Ilse partiria com Victor ou com Rick. Portanto aqueles que parecem astutos achados do diretor e arrancam o aplauso por seu inopinado descaramento são, com efeito, decisões tomadas por desespero. E então: como podia sair, dessa cadeia de imprevistos, um filme que ainda hoje, revisto pela segunda, terceira ou quarta vez, arranca o aplauso devido à façanha, que se gosta de ver bisar, ou o entusiasmo devido à descoberta inédita. Há um cast de formidáveis canastrões. Mas não é o suficiente. Há ele e ela, amargo ele e meiga ela, românticos, mas já se tinham visto outros melhores. Casablanca não é Sombras vermelhas, outro filme de retorno cíclico. Sombras vermelhas é uma obra prima sob todos os aspectos, cada trecho dele está inserido no devido lugar, os caracteres são justificados passo a passo, e a trama (isso também conta) provém de Maupassant, pelo menos a primeira parte. E daí? Daí se tem a tentação de ler Casablanca como Eliot relera Hamlet, cujo fascínio ele atribuía não ao fato de ser uma obra bem sucedida (aliás, ele a julgava entre as menos felizes de Shakespeare), mas justamente pela razão oposta: Hamlet seria o resultado de uma fusão não obtida entre vários Hamlets precedentes, um em que o tema era a vingança (com a loucura como mero estratagema), e o outro cujo tema era a crise devido à culpa da mãe, com a conseqüente desproporção entre a tensão de Hamlet e a imprecisão e inconsistência do crime materno. De modo que a crítica e o público o consideram belo porque interessante, acreditando-o interessante porque belo. Com Casablanca, em menor proporção, aconteceu o mesmo: levados a inventar uma trama na marra, os autores colocaram dentro dela uma porção de coisas. E para colocar tudo era preciso escolher no repertório do já comprovado. Quando a seleção do já comprovado é limitada, tem-se o filme maneirista, o seriado, e até mesmo o Kitsch. Mas quando do já comprovado se coloca tudo, tem-se uma arquitetura como a igreja da Sagrada Família de Gaudí. Fica-se com vertigem, esbarra-se na genialidade. Agora esqueçamos como o filme foi feito e vejamos o que ele mostra. Já começa num lugar mágico de per si, o Marrocos, o Exótico, inicia com um quê de melodia árabe que se esfuma na Marselhesa. Quando se entra no ambiente de Rick, ouve-se Gershwin. África, França, Estados Unidos. A esta altura entra em cena um emaranhado de Arquétipos Eternos. São situações que presidiram as histórias de todos os tempos. Mas habitualmente para fazer uma boa história basta uma única situação arquetípica. Por exemplo, o Amor Infeliz. Ou a Fuga. Casablanca não se contenta: coloca todas. A cidade é o local de uma Passagem, a passagem rumo à Terra Prometida (ou a Noroeste, se quiserem). Para passar, porém, é necessário submeter-se a uma prova, a Espera (“esperam, esperam, esperam” diz a voz em off no começo). Para passar do vestíbulo da Espera à Terra Prometida, é preciso uma Chave Mágica: o visto. Em torno da Conquista dessa chave desencadeiam-se as paixões. A mediação à chave parece ser feita pelo Dinheiro (que aparece em diversas tomadas, geralmente sob a forma de Jogo Mortal, oi roleta: mas por fim se descobrirá que a Chave pode ser dada somente através de um Dom (que é o dom do visto, mas é também o dom que Rick faz de seu Desejo, sacrificando-se). Porque esta é também a história de um turbilhão de Desejos, dos quais apenas dois acabam sendo satisfeitos: o de Victor Laszlo, o herói puríssimo, e o do casalzinho búlgaro. Todos aqueles que têm paixões impuras fracassam.
E então, outro arquétipo, triunfa a Pureza. Os impuros não chegam à terra prometida, somem antes; no entanto, realizam a Pureza através do Sacrifício: é a Redenção. Rick se redime, e também o capitão da polícia francesa. Percebe-se aí, sub-repticiamente, que as Terras prometidas são duas: uma é a América, mas para muitos é um falso objetivo; a segunda é a Resistência, ou seja, A Guerra Santa. Victor vem vindo dela, Rick e o capitão da polícia estão indo para lá, alcançam De Gaulle. E se o símbolo recorrente do avião parece reforçar a cada passo a fuga para a América, a Cruz de Lorena, que aparece uma única vez, prenuncia o outro gesto simbólico do capitão, que no fim joga fora a garrafa de água de Vichy (enquanto o avião decola). Por outro lado, o mito do sacrifício atravessa o filme inteiro: o sacrifício de Ilse, que em Paris abandona o homem amado para voltar ao herói ferido; o sacrifício da esposa búlgara pronta a entregar-se para ajudar o marido; o sacrifício de Victor, que está disposto a ver Ilse com Rick, contanto que a soubesse salva. Nessa orgia de arquétipos sacrificiais (acompanhados do tema Senhor-Servo, graças à relação entre Bogey e o negro Dooley Wilson) inserese o tema do Amor Infeliz. Infeliz para Rick, que ama Ilse e não pode tê-la, infeliz para Ilse, que ama Rick e não pode partir com ele, infeliz para Victor, que sabe que realmente acabou perdendo Ilse. O jogo dos amores infelizes produz vários e acerta os cruzamentos: no início é infeliz Rick, que não entende por que Ilse foge dele; depois é infeliz Victor, que não entende por que Ilse se sente atraída por Rick; e finalmente é infeliz Ilse, que não entende por que Rick a deixa partir com o marido. Esses três amores infelizes (ou Impossíveis) dispõem-se em triângulo. Mas no triângulo há um marido Traído e um Amante Vitorioso. Aqui, ao contrário, ambos os homens são traídos e perdedores: mas na derrota (e por trás dela) joga um elemento adicional, tão sutil a ponto de escapar a nível de consciência. É que sub-repticiamente instaura-se (sublimadíssima) uma suspeita de Amor viril ou Socrático. Porque Rick admira Victor, e Victor sente-se ambiguamente atraído por Rick, e parece que a certa altura cada um deles representa o duelo do sacrifício para agradar ao outro. Em todo caso, como nas Confissões de Rousseau, a mulher se põe como Trâmite entre os dois homens. A mulher não é portadora de valores positivos, apenas os homens o são.
Sobre o pano de fundo dessas ambigüidades encadeadas estão os tipos de comédia, ou todos bons ou todos maus. Victor desemenha um papel duplo, agente de ambigüidade na relação erótica, e agente de clareza na relação política: ele é a Bela contra a Fera nazista. O tema Civilização versus Barbárie se enreda com os outros, a melancolia do retorno odisséico se une à intrepidez bélica de uma Ilíada em campo aberto. Em torno dessa dança de mitos eternos estão os mitos históricos, ou seja, os mitos do cinema devidamente revisitados. Bogart personifica pelo menos três deles: o Aventureiro Ambíguo,misto de cinismo e generosidade; o Asceta por Desilusão Amorosa e ao mesmo tempo o Alcoólatra Redimido (e para faze-lo redimir-se é necesário embriagá-lo, de repente, quando já era Asceta desiludido). Ingrid Bergman é a Mulher Enigmática ou Fatal. Em seguida há Ouça Querido a Nossa Canção, o Último Dia em Paris, A América, A África, Lisboa como Porto Livre, o Posto de Fronteira ou Último Fortim às Margens do Deserto. Há a Legião Estrangeira (cada personagem possui uma nacionalidade e uma história diferente) e finalmente o Grande Hotel Gente-Que-Vai-Gente-Que-Vem. O lugar de Rick é um lugar mágico onde pode acontecer (e acontece) de tudo: amor, morte, perseguições, espionagem, jogos de azar, seduções, música, patriotismo (a origem teatral da trama e a pobreza de meios levaram à admirável condensação de eventos num único lugar). Esse lugar é Hong Kong, Macau Inferno do Jogo, prefiguração de Lisboa Paraíso da Espionagem, Barca do Mississipi. Mas justamente porque os arquétipos estão todos aí, justamente porque Casablanca é a citação de mil outros filmes, e cada ator refaz um papel desempenhado outras vezes, joga sobre o espectador a ressonância da intertextualidade. Casablanca traz consigo, como que num rastro de perfume, outras situações que o espectador vai introduzindo nele, tiradas, sem que perceba, diretamente de outros filmes que aparecem depois, como Ter ou não ter, em que Bogart representa o herói hemingwayano; mas Bogart já galvaniza para si as conotações hemingwayanas pelo simples fatos que, é dito, Rick combateu na Espanha (e como Malraux ele auxiliou a revolução chinesa); Peter Lore arrasta atrás de si as lembranças de Fritz Lang; Conrad Veidt envolve o seu oficial alemão em sutis nuanças de Gabinete do Dr. Caligari, não é um nazista cruel e tecnológico, é um César noturno e diabólico. De modo que Casablanca não é um filme, é muitos filmes, um antologia. Feito quase ao acaso, provavelmente fezse sozinho, se não contra, pelo menos além da vontade de seus autores. E por isso funciona, a despeito das teorias estéticas e das teorias filmográficas. Porque nele se desdobram, por força quase telúrica, as Potências da Narrativa em estado selvagem, sem que a Arte intervenha para disciplinar. E então podemos aceitar que as personagens mudem de humor, de moralidade, de psicologia de um momento para o outro, que os conspiradores pigarreiem para interromper a conversa quando se aproxima um espião, que as mocinhas de vida fácil chorem ao ouvir a Marselhesa. Quando todos os arquétipos irrompem sem decência, são atingidas profundidades homéricas. Dois clichês provocam riso. Cem clichês comovem. Porque se percebe obscuramente que os clichês falam entre si e celebram uma festa de reencontro. Como o cúmulo da dor encontra a volúpia e o cúmulo da perversão beira a energia mística, o cúmulo da banalidade deixa entrever uma suspeita de sublime. Algo falou no lugar do diretor. O fenômeno é digno pelo menos de veneração.

domingo, 4 de dezembro de 2016

Comandante ( 2003;Oliver Stone )


Apresentação do filme : Miguel Armando Perez
Texto: Reinaldo Silva


Comandante  ou um mito moderno chamado Fidel

Este comentário não aborda Fidel Castro num confronto ideológico entre o certo e o errado nem sobre os aspectos da revolução cubana e seu desdobramento. Não tem a carga moral do bem e do mal.
Vivemos num mundo em que a busca do convencimento é uma arma permanente de persuasão, manipulação e sedução. É um mundo com pântanos que o senso comum, os discursos das mídias impressas (jornais, livros e revistas), eletrônica (televisão), e no presente as mídias sociais, criam para nos fazer acreditar em “verdades”, “realidades”, “neutralidades” e “objetividades” dos fatos.
Todos esses espaços servem à luta política, principalmente quando retratam indivíduos de uma forma personalista. O que desejam é gerenciar a nossa atenção. Proliferam as ilusões de crenças e obscurecem o esclarecimento. Acreditam que somos todos tolos, consumidores de novidades. Portanto, minha intenção não servirá a esses propósitos.
 Minha pretensão é apontar algumas projeções que o mito irradia. Exemplos: uma  “liderança carismática”; o “grau de religiosidade de sua personalidade”; e “as realizações que são lhes atribuídas como dádivas de um ser atemporal”.
Não só Fidel, mas Che Guevara e a revolução são os três pilares de sustentação da estrutura do mito. É impossível mencionar apenas um elemento dessa estrutura sem tocar nas outras duas. Che é o mito da revolução permanente, de um bem estendido as sociedades da América Latina.
São os três pilares acima mencionados que o filme de Oliver Stone esmiúça, com suas lentes focadas em diversos ângulos, que faz a câmara tremer em diversas ocasiões, diálogos provocativos, entrecortados pelas mãos, rosto e corpo inteiro de Fidel. Oliver Stone expõe o mito em seu estágio de idade avançada.
Fidel é um líder carismático das massas porque a sedução é uma fusão afetiva puramente emocional, o êxtase e o encanto que sua enérgica postura de pai provedor provoca, acompanhada de um discurso de atos de bravura, canaliza e promovendo uma vontade de superação coletiva das dificuldades materiais.
Um inimigo comum, espécie de grande mal, fortalece a união da massa em torno do líder Fidel. O grau de religiosidade faz parte da dimensão altruísta emanado pela sua figura. Ele inclusive relata o sacrifício dedicado à revolução. Nas cenas externas, principalmente com estudantes, ocorre um frenesi, a tensão dos braços erguidos para tocá-lo, como somente os santos irradiam. Um beijo de Fidel é motivo de lágrimas.
Seu surgimento e de Che Guevara como mitos modernos está localizado num período histórico em que as utopias marxistas vigoravam como lema central na luta política contra a miséria econômica e conseqüente opressão de classe nas sociedades capitalistas.
Não há como entender o mito Fidel revolucionário se não localizar a sua figura num ambiente mundial da “guerra fria”, dividido pelo capitalismo americano e o socialismo soviético. E ainda, pela resistência a partir do início do bloqueio econômico imposto pelos americanos na década de 60. A própria resistência ao bloqueio foi a chama que manteve acesa a figura de Fidel como mito.
Outro elemento importante para manutenção da chama do mito Fidel teve a participação de depoimentos artistas de diversas áreas, filmes, publicações de livros, festivais, além das  “realizações” de Cuba, principalmente nas áreas de saúde e educação.
Mas o que restará no futuro do mito Fidel?
O avanço do capitalismo na sua forma globalizada não suporta os bens duráveis, tanto materiais quanto como idéias. O capitalismo se propõe a si mesmo como um modelo indestrutível. E nisso que os seus defensores acreditam. Até que ele próprio se destrua, aniquilando todos os meios de extração da natureza.
Não acredito que os mitos modernos e arcaicos estejam ausentes da efemeridade em nosso dia a dia.
Como todo mito, Fidel (como aconteceu com Che Guevara) se transformará em objeto de consumo de camisetas, pôster, flâmulas, tatuagens etc. O duplo avanço das tecnologias, e de um acelerado consumo material, causam efeitos na instabilidade emocional e nas escolhas de longa durabilidade dos indivíduos.
Acredito que um dos temas mais fascinantes atualmente é o que a aceleração produz em nosso cotidiano. A rapidez que nos provoca a fornecer respostas quase que instantaneamente.
Para terminar uma imagem:
Caminha-se sobre uma fina camada de gelo. A ordem é não parar, porque senão afunda.
O mito é a embriaguez de um tempo sem retorno as suas origens.

Reinaldo Silva