domingo, 22 de setembro de 2019

A Metamorfose (1975,Jan Nemec)



Indicação ,apresentação do filme e texto: Reinaldo Silva

                                Os múltiplos sentidos da metamorfose
“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama  metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimalvelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos.
- O que aconteceu comigo - ?  pensou” (A Metamorfose – Franz Kakfa) 
Palavra chave: Fábula – São composições literárias de curta narrativa, não só muito presentes na literatura infantil,  escrita em prosa ou versos com personagens animais que agem como seres humanos, servindo de ilustração para preceitos morais.
A novela A Metamorfose de Franz Kafka foi escrita em no outono de 1912 e publicada em 1915. É uma das poucas obras que ele publicou em vida e se transformou numa das principais marcas registradas da ficção kafkaniana, que juntamente com o seu romance O Processo, recebeu ao longo de sua existência análises  teológicas, sociológicas, históricas e estilísticas, passando por abordagens filosóficas de caráter existencialista. É no primeiro parágrafo da novela, conforme está descrito na abertura deste comentário, que o autor apresenta ao leitor a fábula, sem esclarecer o seu sentido preciso no decorrer da narrativa até a conclusão final da novela. 
A versão cinematográfica (1975) da novela foi feito em média metragem com duração aproximada de 50 minutos, para a televisão tcheca pelo diretor Jan Nemec (1936 a 2016), nascido na antiga Tchecoslováquia, que após a derrocada do regime soviético, passou a se chamar  República Tcheca. Talvez o filme tenha sido feito com a intenção de estimular a leitura da novela, porque sem uma explicação resumida de alguns elementos importantes contidos na novela, teremos vagos elementos para especularmos sobre a metamorfose de Gregor. 
A câmara subjetiva como recurso cinematográficos. O que isso quer dizer?
O filme é narrado por uma terceira pessoa, que podemos comparar a leitura das estórias infantis que os  adultos narram para as crianças. A câmara subjetiva são tomadas que partem do interior do inseto, registra o mundo que o circunda, suas reações e as reações do pai, da mãe, da irmã, do gerente de seu trabalho, da faxineira e dos objetos inanimados que estão a sua volta. É por intermédio da câmara subjetiva que assistimos as tentativas de comunicação frustadas de Gregor-inseto. A condição física que ele adquiriu será irreversível. Por isso que o uso da câmara subjetiva é fundamental para termos contato com o mundo interior de Gregor e como ele observa o mundo exterior. Sem a visão de Gregor nos fornece do seu mundo interior nada saberemos sobre como ele habita o novo corpo, como ele observa e sente seu convívio com a família. 
Quem era Gregor antes da metamorfose? Explicações necessárias para especular sobre os sentidos da fábula.
Ele era caixeiro-viajante. Não tinha nenhum satisfação em exercer essa função, que o obrigava constantes deslocamentos, abrigando-se em hotéis/pousadas de baixo custo, e não via a hora de largar tudo e conseguir outra função. No trabalho seus superiores o explorava, exigindo cada vez mais um maior volume de vendas. Como arrimo de família era responsável pelo sustento do pai, da mãe e da irmã. Além do sustento da família, tinha assumido uma dívida por empréstimos feito por seu pai com o proprietário da empresa em que trabalhava, em decorrência de fracassos na direção de negócios. Gregor mantinha em segredo o desejo de anunciar em breve o financiamento dos estudos de música de sua irmã, o que iria demandar mais esforço e dedicação na sua função. Devido as suas preocupações com o acúmulo de responsabilidades pelo sustento da família e constantes viagens, Gregor não mantinha nenhum relacionamento afetivo. Mesmo com todo empenho demonstrado, Gregor não recebia o devido reconhecimento de seus pais, embora declarava que sua  irmã lhe dedicava alguma atenção. Em resumo, a família vivia parasitadamente as custas do trabalho de Gregor.
A crítica aos valores morais na família.
Minha interpretação da fábula é que ela representa uma conversão do parasitado da família, de quem é explorado, para o suposto parasita. A passagem de quem se sacrifica para quem não pode ser mais sacrificado, de quem é reconhecido para quem perdeu o reconhecimento, do familiar para o não familiar, do manso e dedicado aos deveres em prol da família para o monstro, o deformado, que tem que ser admitido contra a vontade, passando a ser aceito como peso para a família, cujo interesse de seu desaparecimento passa a ser desejado. 
São três momentos que o filme apresenta. O primeiro é o espanto, o pavor: a metamorfose de Gregor na condição abjeta de inseto. Portanto, um acidente doloroso que impossibilita Gregor de ser como antes. Ele é despossuído de seu prestígio financeiro junto a família e do valor econômico e funcional da sua força de trabalho junto ao capital, que esperava dele ainda um maior esforço para pagamento da dívida que herdou de seu pai. O segundo é a constatação de que o acidente transforma Gregor de provedor em dependente, obrigando a família a sair do conforto de ser sustentada. Ele passará então a ser um estorvo. O terceiro momento é admissão pela família que Gregor não irá retornar a sua condição anterior, e por isso a eliminação é o melhor solução. 
Mas a hipocrisia que rege os valores morais da família de Gregor vai além de concluir pela solução final. É que essa solução não é tão simples. Ela tem que ser bem arquitetada sem parecer intencional, não pode ser praticada por nenhum membro da família. Pouco a pouco uma nova personagem vai assumindo a função acalentada, mas jamais declarada pela família de Gregor. Essa personagem não possui nenhuma consideração por ele. Pelo contrário, considera-o um animal nojento e asqueroso. Portanto, ela se encaixa perfeitamente na solução final. Kafka escreveu em sua novela apenas: a faxineira.
“A origem social de Gregor Samsa, a sua família, revelou-se como a força que o aniquilou” (Theodor Adorno – Prismen, Munique – 1977)
Abraço

Reinaldo

O Botão de Pérola (2015, Patrício Guzmán)



Indicação, apresentação do filme e texto : Joaquim Ferreira

O BOTÃO DE PÉROLA: MEMÓRIA ,CINEMA E POESIA NA HISTÓRIA DA  AMERICA LATINA

"Un país sin cine documental es como una familia sin álbum de fotografías"( Patrício Guzmán)

O documentário  o "Botão  de Pérola "( El Botón de Nácar,2015),de Patrício Guzmán, expõe de forma  articulada  e metafórica  as  categorias de cultura e  memória  na formação do Chile  com  as raízes e a permanência  da violência na América Latina 
O   diretor Patrício Guzmán [1]    é  de  orientação política abertamente esquerdista. Iniciou sua carreira de cineasta  nos anos 1960 produzindo  um cinema engajado e que apoiava abertamente o governo de Salvador Allende.Por isso , deixou  o Chile depois que o general Augusto Pinochet implantou a ditadura em setembro de 1973 . Sua obra comporta  produções importantíssimas sobre o Chile ,com estéticas ,  ritmos e formatos diferentes que vão desde o estilo documental mais clássico - "A Batalha de Chile”(1975-1979) , “O Caso Pinochet”(2001) e  “Salvador Allende"(2004)-    até   produções  como passando por Nostalgia da Luz (2010)[2]   e  " O Botão de Pérola", filmes nos quais o recurso a fotografia e sua relação com paisagens naturais é marcante não sendo filmes menos históricos e realistas  por isso.
Em " O Botão de Pérola" ,  diretor nos oferece uma metáfora  admirável como  objeto de reflexão da nossa realidade, na medida da necessidade de ressignificarmos  o conceito de América Latina. A  indicação desse  filme  foi motivada  pela necessidade atual em   tratar esse tema importantes  à História da América Latina.Além  da premência histórica , a sensibilidade técnica e estética do diretor , criou uma obra  muito original. No enredo, há duas narrativas – a política e a cultural – que se entrecruzam em momentos históricos do país. Equilibrando a história e memória com o  fio da poesia e uma belíssima fotografia, ressalta uma metáfora fundamental:" (...) o uso da água e como esta é guardiã da memória e também cemitério, já que este recurso natural permeia a história dos povos nômades das águas, que serão apresentados pelo documentário." [3] 
Desta forma,  Guzmán observa as águas do Chile, onde foram jogados milhares de pessoas durante a ditadura e  faz uma triangulação entre a geografia (a condição insular do país), o passado colonial (com a morte e estupro de índios) e a ditadura de Pinochet.  Ao longo do documentário, o diretor Patrício Guzmán propõe a interação entre sujeito e história  pela arte .que não se  limita  à mera representação do fato histórico, mas uma reflexão sobre ele.
 "a sétima arte pode ser vista também como uma representação do passado e objeto de pesquisa histórica, capaz de questionar um passado próximo ou longínquo, resgatar a memória de personagens envolvidos (...)   [4] 
 Portanto, a produção cinematográfica de Patrício Guzmán em " O Botão de Pérola"  evidencia que o documentário em questão , apesar da aparente superficialidade, possui um compromisso crítico com a sociedade nele retratada,.Assim para Guzmán, 
" el cine documental forma parte de la conciencia critica y analítica de uma sociedad. No puede verse solamente como uno entre lós diferentes gêneros del cine; Es una verdadeira vocación que exige una entrega total y una clara posición ética" [5]  

NOTAS
[1]-Patricio Guzmán es uno de los cineastas chilenos de mayor reconocimiento internacional. Después del golpe de estado permaneció en el Estadio Nacional de Santiago, incomunicado y amenazado de fusilamiento. Abandonó Chile en noviembre de 1973. Ha vivido en Cuba, España y Francia, donde reside. Seis de sus obras han sido estrenadas en Cannes, entre las que sobresalen “La Batalla de Chile”, “El Caso Pinochet”, “Salvador Allende” y “Nostalgia de la Luz”. Con esta última recibió el Gran Premio otorgado por la Academia del Cine Europea en 2010. Su última obra « El Botón de Nácar » obtuvo el Oso se Plata en Berlín en 2015. Fue invitado a formar parte de la Academia de Hollywood en 2013. Es presidente y fundador del Festival Documental de Santiago, FIDOCS. Retrospectivas recientes: British Film Institute, Harvard Film Archive. Disponível em https://www.patricioguzman.com/es/

[2]Filme  exibido no Lumière em setembro de 2018 e   com uma estrutura semelhante  ao filme "O Botão de Perola".Na realidade, considero o  dois filmes  como obras complementares a partir da utilização de recursos fílmicos nos quais se sobressai  a fotografia e a utilização da paisagem  geográfica e natural do Chile articuladas à realidade histórica.

[3] Ferreira, Moisés. (2017). El botón de nácar e a repressão na América Latina. DOC online - Revista Digital de Cinema Documentário. 295-307. 10.20287/doc.d22.ar5.
[4] Ferreira, Moisés. (2017). El botón de nácar e a repressão na América Latina. DOC online - Revista Digital de Cinema Documentário. 295-307. 10.20287/doc.d22.ar5.
[5] Ferreira, Moisés. (2017). El botón de nácar e a repressão na América Latina. DOC online - Revista Digital de Cinema Documentário. 295-307. 10.20287/doc.d22.ar5.

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Joaquim (2018,Marcelo Gomes)


Indicação, apresentação do filme e texto: Joaquim Ferreira


Algo deve mudar para que tudo continue como está *

No processo histórico do  Brasil , a historiografia construiu manipulações de caráter  dominante tais como  a controversa  descoberta acidental ou intencional, assim como a imagem do  imaginário popular sobre  independência, como se tivesse ocorrida segundo o quadro de Pedro Américo ou ainda a vitória das tropas brasileiras na Guerra do Paraguai.Essa  construções,partem de um tipo de história que tem narrativa dos vencedores como ponto de partida para a dominação ideológica e relaciona-se a questão do mito e do herói .Talvez o exemplo mais enfático localize-se  na  transição da Monarquia para a República em fins do século XIX.  Pelas falhas na implantação de um projeto republicano na acepção correta do sentido, o poder político constituído pelo golpe militar  do Marechal Deodoro em 1889 precisou criar "valores republicanos" na consciência popular com a intenção de ressignificar a identidade brasileira. Dentre os vários símbolos criados pela República, o caso de Tiradentes , considerado herói nacional e mártir, cabe o destaque neo presente texto.  Tiradentes não foi criado pela República, mas sua imagem foi apropriada pelos vencedores, uma vez que o novo regime necessitava de uma figura forte que apagasse o então herói D. Pedro I, a imagem forte da monarquia(...) A República tratou de conferir um rosto ao herói. . Assim, criou bustos, quadros, data comemorativa e histórias: Tiradentes pode aparecer como Jesus Cristo (de barba e cabelos compridos) ou elegante em sua roupa de alferes. A imagem não importava, mas, sim, o ideal que Tiradentes representava e que a República queria alcançar. Hoje, Tiradentes vive no imaginário popular como uma entidade sacrificada a favor do futuro da nação. 1 
 Personagem símbolo da  Inconfidência Mineira, Joaquim José  da Silva Xavier, o Tiradentes (1746 -1792),foi um dentista, tropeiro, minerador, comerciante, militar e ativista político que viveu no Brasil, nas capitanias de Minas Gerais  e Rio de Janeiro .A Inconfidência, movimento de caráter separatista contra o domínio colonial português foi severamente reprimido  pela Coroa portuguesa em 1789. Interpretado e reinterpretado o constantemente pela nossa historiografia , a  figura de Tiradentes não poderia ficar de fora também da analise do personagem pela perspectiva do cinema. O filme "Joaquim"(2018), do diretor pernambucano Marcelo Gomes é mais uma representação  de Tiradentes e que já apareceu em outros dois filmes com abordagens diversas :   "Os Inconfidentes "(1972), de Joaquim Pedro de Andrade, e "Tiradentes " (1999), de Oswaldo Caldeira.
Joaquim Pedro, em sua obra-prima, apostou no anti-naturalismo e na alegoria para falar com amargura do papel dos intelectuais em contextos autoritários – seu filme foi realizado durante a ditadura militar que governou o país entre 1964 e 1985 – e Caldeira, na efervescência da Retomada, seguiu caminho semelhante ao de Carlota Joaquina: Princesa do Brazil (1995), lançando ao século XVIII olhar irônico e anacrônico com o objetivo de tratar de um presente de corrupção e descrença na política.  2
Contudo, Marcelo Gomes se filia a outro tipo de cinema e tem como objetivo a desconstrução de uma narrativa baseada no discurso oficial que reside nos livros de histórias e no senso comum. O filme propõe é uma jornada humanizante da figura de Tiradentes(representado pelo ator Júlio Machado) , uma trajetória que visa derrubar o monumento, reinterpretar o discurso oficial e humanizar o herói para dialogar com o presente.
Nesse sentido, Joaquim é um filme completamente poético, essa alteração da visão do protagonista não se dá de maneira didática ou algo do tipo, são situações que surgem na tela para modificar a visão do público e personagem perante àquela realidade. Na viagem de Joaquim há momento muito significativos, por exemplo, o ponto em que um índio, que serve como guia para os homens, e João, escravo particular de Joaquim, começam a cantar, o ritmo proposto pelo índio combina com a letra declamada pelo negro. Um momento de poucos minutos em que não se importa o que está sendo cantado, mas sim a representação de um povo que vai muito além de uma hegemonia branca e européia, representada em quase todo plano, onde  estes dois personagens encontram-se sempre no fundo do quadro. 3
Há dois momentos no filme importantes para entender essa situação, O primeiro logo na cena de abertura, em que uma narração comenta, sob a imagem da cabeça decapitada 4  de Tiradentes, a própria figura criada em torno de seu mito, questionando -se por que ele foi o único a ser morto entre tantos conspiradores, ou por que considerá-lo herói diante de uma revolta tão falha de libertação, "(...) e ainda por que o herói de raízes populares foi o único a cair e, depois, de forma quase hipócrita, ter sua estátua levantada, enquanto seus restos mortais ficaram apodrecendo nas Minas Gerais diante dos olhos de seus companheiros de luta, mais rico e até mesmo beneficiados pela Inconfidência".
Em outro momento, Joaquim está com piolho e por este motivo ele deve cortar seus cabelos longos para a peste não se proliferar.O personagem tira por um motivo asqueroso e comum o visual que geralmente é retratado nos livros de história. Ambas as ocorrências são políticas pois questionam o discurso oficial.Vale destacar também  a coerência entre tal leitura e a concepção visual do filme.  A câmera na mão, o travelling sempre instável, dialoga visualmente com a tensão e as incertezas que o protagonista carrega assim como a polifonia destacando sons e vozes  tão distintas, o português castiço , as línguas indígenas, os dialetos africanos. .Os " brasileiros" de então, não reconheciam a si mesmos como partes integrantes de uma nação pois ainda não existiam as consciências e teorias sobre confrontos com Portugal. que permeassem os mais desfavorecidos. 
A  História mostra  que os inconfidentes não tinham o interesse em transformar efetivamente  o Brasil em país independente e fora da orbita colonial portuguesa, mesmo que os modelos das Revoluções Americana e Francesa do século XVIII , de certa forma, terem sidos apropriados pelas grupos mais intelectualizados da Inconfidência Mineira. O ideário inconfidente, por exemplo, não questionou a abolição da escravidão. Nesse sentido, o filme mostra pessoas de diferentes etnias e nacionalidades ao longo de alguns séculos – processos e relações amortecidos por idéias como a da “democracia racial”, que cria uma história harmônica, ,mesmo com uma tensão latente. A cena final do filme é de uma atualidade impressionante na medida em que Tiradentes, talvez  demonstrando um autoengano, preconiza a necessidade de uma revolta ao  sentar-se a mesa com a elite local que ri da radicalidade verbalizada por ele  ,  não por achá-lo importante como projeto político de mudanças  efetivas,  mas riem de alivio por terem encontrado a figura idealista perfeita e por isso limitada nas mudanças da ordem colonial.  Assim, Tiradentes é bode-expiatório de uma classe que articulava mudanças porém  limitadas. Afinal,  "algo deve mudar para que tudo continue como está ". O filme  mostra cicatrizes de um processo histórico que ainda estão presentes na atualidade.



REFERÊNCIAS 
*Frase atribuída ao escritor italiano  Giuseppe Lampedusa (1896 / 1957)  Entre as suas obras  o romance Il gattopardo (O Leopardo) sobre a decadência da aristocracia siciliana durante. Conforme o texto do romance, a única mudança permitida é aquela sugerida pelo príncipe de Falconeri: tudo deve mudar para que tudo fique como está, frase amplamente divulgada em todo o mundo.
[1] Carlos Roberto Ballarotti  - A Construção do mito de Tiradentes: de mártir republicano a herói cívico na atualidade
[2]Disponível em https://www.reservacultural.com.br/joaquim-cinema-reserva-cultural-convida/
[3]Disponível em https://observatoriodocinema.bol.uol.com.br/criticas/2017/04/critica-joaquim
[4] A referência a Machado de Assis e suas Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) logo na primeira cena de "Joaquim" que, assim como o romance, também apresenta o ponto de vista de um narrador-defunto, talvez tenha ecos bem mais profundos do que um recurso meramente estético. Narrando uma versão fictícia para eventos prévios à Inconfidência Mineira, o cineasta Marcelo Gomes mostrará ao espectador mazelas que atormentavam os brasileiros naquela sociedade ainda submissa à Coroa Portuguesa e que perduraram na estrutura social na qual viveu o Bruxo do Cosme Velho. Machado abordou ironicamente a passagem do Império à República em uma deliciosa passagem de Esaú e Jacó(1904), na qual a personagem Custódio solicitou o serviço de pintura de uma velha placa que estava diante de sua confeitaria e cujos dizeres deveriam ser "Confeitaria do Império". Como a madeira dessa placa estava muito velha, o pintor recomenda que se faça uma nova tabuleta. Nesse meio tempo, ocorre a Proclamação da República. Custódio manda um bilhete ao pintor, pedindo que aquele “Pare no d.” O confeiteiro não sabia se deveria optar por República ou Império para nomear seu comércio. Com esse recurso irônico, o escritor carioca nos revela a percepção de que tanto a República quanto o Império seriam meros "adornos de fachada", que não provocariam mudanças estruturais na política ou no país. Disponível em https://www.andreacatropa.com/joaquim-o-filme

Amazônia Eterna ( Belisário França;2012)




Vídeo apresentação do tema:Felipe Nabuco









segunda-feira, 2 de setembro de 2019

CICLO DE FILMES "GRANDES DIRETORES " - Cidadão Kane (1941 ; Orson Welles)



Indicação ,apresentação do filme e texto : Mário Massena

CIDADÃO KANE: UM FILME ESSENCIAL


Muito já se falou e foi escrito sobre Cidadão Kane nestes últimos setenta anos.  Desde seu lançamento em 1941, essa obra cinematográfica em que Orson Welles, com apenas 25 anos de idade, estreou no mundo do cinema, já recebeu tantas análises que qualquer tentativa de resenhá-la de forma críticacertamente incorrerá em alguma redundância, independente do ponto de vista assumido. Entretanto ninguém discute que o filme é sem dúvida um marco na cinematografia mundial, sendo seu valor reconhecido com o passar dos anos, seja por importantes instituições, seja por consagrados diretores, muitos dos quais o considera o filme mais importante de todos os tempos.
Os méritos inovadores que Orson Welles apresenta seja como roteirista, em que divide a tarefa com o experiente Hermann Mankiewicz, seja como diretor, produtor e ator protagonista, colocam a obra num patamar muito acima das produções que Hollywood estava habituada. A metalinguagem assumida pelo realizador funciona como uma sinalização que permeia todo o longa metragem. Logo no inicio o personagem principal enuncia: “não acredite em tudo que você ouve no radio”, uma referência imediata ao episódio de 1938, quando Welles narrou à clássica Guerra dos Mundos de H.G.Wells, em uma transmissão radiofônica com tamanha verossimilhança que acabou por gerar pânico em milhões de ouvintes em metade dos Estados Unidos; além das semelhanças com a vida do famoso magnata da mídia americana, Randolph Hearst, encarnado pelo personagem Charles Foster Kane, interpretado por Orson Welles, com todos os seus excessos e contradições. Neste caso a proximidade do argumento ficcional com a vida real do empresário era tamanha que por muito pouco o filme não seria lançado, uma vez que exibidores ameaçaram boicotar a exibição. O desfecho dessa profunda rejeição ao filme por parte da própria indústria do cinema culminou na noite do Oscar, quando das nove indicações recebidas - inclusive Melhor Filme, Direção, Ator, todas para Welles- ganhou apenas a de Roteiro, dividida com Mankievicz.
Esse mal estar gerado pelo filme pode ser entendido nas duras críticas que a narrativa inovadora e consistente propõe sobre a mídia, a política e ao próprio modelo capitalista americano, colocando em cheque o American way of life, estilo de vida tão decantado pela indústria do cinema e vendido como projetode vida para o mundo todo.O incrível é que Welles diz tudo isso com indubitável beleza visual. Ao contar a historia da vida do poderoso Kane, sob diferentes pontos de vista com a utilização de flashbacks, Welles sustenta a narrativa de forma clara e original para o expectador. Mas a obra vai além do discurso não linear e do uso do tempo cronológico para contar a historia. Com o recurso conhecido como profundidade de campo ou deep-focus, através do qual todos os objetos em cena ficam em foco, o diretor destacou não só o primeiro plano,mas também o que acontecia no segundo plano, enriquecendo brilhantemente as imagens. Usou também com extrema habilidade os contra-plongées – câmeras angulando por baixo, ampliando assim a dramaticidade das cenas, valorizando as sombras e as possibilidades de iluminação nos sets de filmagem. A ambientação e a força do personagem principal são reforçadas pelo competente trabalho do compositor Bernard Hermann e pela bela fotografia de Gregg Toland, contribuindo para a eficiente abordagem de Kane sob diferentes óticas. Outro destaque sem dúvida diz respeito à maquiagem realizada por Maurice Seiderman no envelhecimento gradual dos personagens. Além desses aspectos técnicos somam-se as excelentes atuações dos coadjuvantes, vindos do grupo Mercury Theater que, sem os vícios habituais dos atores de cinema, emprestam ao drama uma renovada performance.
O desprezo inicial do público e crítica dispensado ao filme foi compensado pelo reconhecimento internacional no pós-guerra.O longa metragem Cidadão Kane foi considerado marco-zero do Modernismo e eleito o filme mais importante do cinema seguidas vezes pelo British Film Institute. Em votação realizada em 2000 foi escolhido o melhor filme de todos os tempos pelo American Film Institute. Influenciando diretores e realizadores ao longo dos tempos, recebeu do famoso cineasta francês François Truffaut a seguinte definição: “Citizen Kane é um hino à juventude e uma meditação sobre a velhice, um ensaio sobre a vaidade e um poema sobre a decrepitude”.


Mario Massena