sábado, 10 de dezembro de 2016

Casablanca (Michael Curtiz;1942)


Casablanca é filme de 1942, concebido dentro do espírito de propaganda a  favor da participação dos EUA na Segunda Guerra Mundial na Europa.Com improvisações de roteiro, resultou em símbolo de romantismo amoroso e político no cinema. Ganhador de três Oscars, inclusive o de melhor filme.

Casablanca, ou o renascimento dos deuses
Umberto Eco, 1975 (*)
(*) UMBERTO ECO, 1985. Viagem na irrealidade cotidiana. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, p.263-268

Há duas semanas todos os quarentões estavam diante do televisor para rever Casablanca. Não se trata de um normal fenômeno de nostalgia. De fato, quando Casablanca é projetado nas universidades norte-americanas, os jovens de vinte anos sublinham cada trecho e cada deixa canônica (“mande prender os suspeitos de sempre”, ou então “são os canhões ou é o meu coração que bate?”, ou todas as vezes que Bogey diz “kid”) com aplausos quase sempre reservados às partidas de beisebol. E o mesmo tive oportunidade de ver numa cinemateca italiana freqüentada por jovens. Qual é então o fascínio de Casablanca?
A pergunta é legítima, porque Casablanca é esteticamente falando (ou seja, do ponto de vista de uma crítica rigorosa), um filme modestíssimo. Revista, pastiche, onde a verossimilhança psicológica é muito frágil, as reviravoltas concatenam-se sem razões aceitáveis. E sabemos também por quê: o filme foi pensado à medida que ia sendo rodado, e até o último instante o diretor e os roteiristas não sabiam se Ilse partiria com Victor ou com Rick. Portanto aqueles que parecem astutos achados do diretor e arrancam o aplauso por seu inopinado descaramento são, com efeito, decisões tomadas por desespero. E então: como podia sair, dessa cadeia de imprevistos, um filme que ainda hoje, revisto pela segunda, terceira ou quarta vez, arranca o aplauso devido à façanha, que se gosta de ver bisar, ou o entusiasmo devido à descoberta inédita. Há um cast de formidáveis canastrões. Mas não é o suficiente. Há ele e ela, amargo ele e meiga ela, românticos, mas já se tinham visto outros melhores. Casablanca não é Sombras vermelhas, outro filme de retorno cíclico. Sombras vermelhas é uma obra prima sob todos os aspectos, cada trecho dele está inserido no devido lugar, os caracteres são justificados passo a passo, e a trama (isso também conta) provém de Maupassant, pelo menos a primeira parte. E daí? Daí se tem a tentação de ler Casablanca como Eliot relera Hamlet, cujo fascínio ele atribuía não ao fato de ser uma obra bem sucedida (aliás, ele a julgava entre as menos felizes de Shakespeare), mas justamente pela razão oposta: Hamlet seria o resultado de uma fusão não obtida entre vários Hamlets precedentes, um em que o tema era a vingança (com a loucura como mero estratagema), e o outro cujo tema era a crise devido à culpa da mãe, com a conseqüente desproporção entre a tensão de Hamlet e a imprecisão e inconsistência do crime materno. De modo que a crítica e o público o consideram belo porque interessante, acreditando-o interessante porque belo. Com Casablanca, em menor proporção, aconteceu o mesmo: levados a inventar uma trama na marra, os autores colocaram dentro dela uma porção de coisas. E para colocar tudo era preciso escolher no repertório do já comprovado. Quando a seleção do já comprovado é limitada, tem-se o filme maneirista, o seriado, e até mesmo o Kitsch. Mas quando do já comprovado se coloca tudo, tem-se uma arquitetura como a igreja da Sagrada Família de Gaudí. Fica-se com vertigem, esbarra-se na genialidade. Agora esqueçamos como o filme foi feito e vejamos o que ele mostra. Já começa num lugar mágico de per si, o Marrocos, o Exótico, inicia com um quê de melodia árabe que se esfuma na Marselhesa. Quando se entra no ambiente de Rick, ouve-se Gershwin. África, França, Estados Unidos. A esta altura entra em cena um emaranhado de Arquétipos Eternos. São situações que presidiram as histórias de todos os tempos. Mas habitualmente para fazer uma boa história basta uma única situação arquetípica. Por exemplo, o Amor Infeliz. Ou a Fuga. Casablanca não se contenta: coloca todas. A cidade é o local de uma Passagem, a passagem rumo à Terra Prometida (ou a Noroeste, se quiserem). Para passar, porém, é necessário submeter-se a uma prova, a Espera (“esperam, esperam, esperam” diz a voz em off no começo). Para passar do vestíbulo da Espera à Terra Prometida, é preciso uma Chave Mágica: o visto. Em torno da Conquista dessa chave desencadeiam-se as paixões. A mediação à chave parece ser feita pelo Dinheiro (que aparece em diversas tomadas, geralmente sob a forma de Jogo Mortal, oi roleta: mas por fim se descobrirá que a Chave pode ser dada somente através de um Dom (que é o dom do visto, mas é também o dom que Rick faz de seu Desejo, sacrificando-se). Porque esta é também a história de um turbilhão de Desejos, dos quais apenas dois acabam sendo satisfeitos: o de Victor Laszlo, o herói puríssimo, e o do casalzinho búlgaro. Todos aqueles que têm paixões impuras fracassam.
E então, outro arquétipo, triunfa a Pureza. Os impuros não chegam à terra prometida, somem antes; no entanto, realizam a Pureza através do Sacrifício: é a Redenção. Rick se redime, e também o capitão da polícia francesa. Percebe-se aí, sub-repticiamente, que as Terras prometidas são duas: uma é a América, mas para muitos é um falso objetivo; a segunda é a Resistência, ou seja, A Guerra Santa. Victor vem vindo dela, Rick e o capitão da polícia estão indo para lá, alcançam De Gaulle. E se o símbolo recorrente do avião parece reforçar a cada passo a fuga para a América, a Cruz de Lorena, que aparece uma única vez, prenuncia o outro gesto simbólico do capitão, que no fim joga fora a garrafa de água de Vichy (enquanto o avião decola). Por outro lado, o mito do sacrifício atravessa o filme inteiro: o sacrifício de Ilse, que em Paris abandona o homem amado para voltar ao herói ferido; o sacrifício da esposa búlgara pronta a entregar-se para ajudar o marido; o sacrifício de Victor, que está disposto a ver Ilse com Rick, contanto que a soubesse salva. Nessa orgia de arquétipos sacrificiais (acompanhados do tema Senhor-Servo, graças à relação entre Bogey e o negro Dooley Wilson) inserese o tema do Amor Infeliz. Infeliz para Rick, que ama Ilse e não pode tê-la, infeliz para Ilse, que ama Rick e não pode partir com ele, infeliz para Victor, que sabe que realmente acabou perdendo Ilse. O jogo dos amores infelizes produz vários e acerta os cruzamentos: no início é infeliz Rick, que não entende por que Ilse foge dele; depois é infeliz Victor, que não entende por que Ilse se sente atraída por Rick; e finalmente é infeliz Ilse, que não entende por que Rick a deixa partir com o marido. Esses três amores infelizes (ou Impossíveis) dispõem-se em triângulo. Mas no triângulo há um marido Traído e um Amante Vitorioso. Aqui, ao contrário, ambos os homens são traídos e perdedores: mas na derrota (e por trás dela) joga um elemento adicional, tão sutil a ponto de escapar a nível de consciência. É que sub-repticiamente instaura-se (sublimadíssima) uma suspeita de Amor viril ou Socrático. Porque Rick admira Victor, e Victor sente-se ambiguamente atraído por Rick, e parece que a certa altura cada um deles representa o duelo do sacrifício para agradar ao outro. Em todo caso, como nas Confissões de Rousseau, a mulher se põe como Trâmite entre os dois homens. A mulher não é portadora de valores positivos, apenas os homens o são.
Sobre o pano de fundo dessas ambigüidades encadeadas estão os tipos de comédia, ou todos bons ou todos maus. Victor desemenha um papel duplo, agente de ambigüidade na relação erótica, e agente de clareza na relação política: ele é a Bela contra a Fera nazista. O tema Civilização versus Barbárie se enreda com os outros, a melancolia do retorno odisséico se une à intrepidez bélica de uma Ilíada em campo aberto. Em torno dessa dança de mitos eternos estão os mitos históricos, ou seja, os mitos do cinema devidamente revisitados. Bogart personifica pelo menos três deles: o Aventureiro Ambíguo,misto de cinismo e generosidade; o Asceta por Desilusão Amorosa e ao mesmo tempo o Alcoólatra Redimido (e para faze-lo redimir-se é necesário embriagá-lo, de repente, quando já era Asceta desiludido). Ingrid Bergman é a Mulher Enigmática ou Fatal. Em seguida há Ouça Querido a Nossa Canção, o Último Dia em Paris, A América, A África, Lisboa como Porto Livre, o Posto de Fronteira ou Último Fortim às Margens do Deserto. Há a Legião Estrangeira (cada personagem possui uma nacionalidade e uma história diferente) e finalmente o Grande Hotel Gente-Que-Vai-Gente-Que-Vem. O lugar de Rick é um lugar mágico onde pode acontecer (e acontece) de tudo: amor, morte, perseguições, espionagem, jogos de azar, seduções, música, patriotismo (a origem teatral da trama e a pobreza de meios levaram à admirável condensação de eventos num único lugar). Esse lugar é Hong Kong, Macau Inferno do Jogo, prefiguração de Lisboa Paraíso da Espionagem, Barca do Mississipi. Mas justamente porque os arquétipos estão todos aí, justamente porque Casablanca é a citação de mil outros filmes, e cada ator refaz um papel desempenhado outras vezes, joga sobre o espectador a ressonância da intertextualidade. Casablanca traz consigo, como que num rastro de perfume, outras situações que o espectador vai introduzindo nele, tiradas, sem que perceba, diretamente de outros filmes que aparecem depois, como Ter ou não ter, em que Bogart representa o herói hemingwayano; mas Bogart já galvaniza para si as conotações hemingwayanas pelo simples fatos que, é dito, Rick combateu na Espanha (e como Malraux ele auxiliou a revolução chinesa); Peter Lore arrasta atrás de si as lembranças de Fritz Lang; Conrad Veidt envolve o seu oficial alemão em sutis nuanças de Gabinete do Dr. Caligari, não é um nazista cruel e tecnológico, é um César noturno e diabólico. De modo que Casablanca não é um filme, é muitos filmes, um antologia. Feito quase ao acaso, provavelmente fezse sozinho, se não contra, pelo menos além da vontade de seus autores. E por isso funciona, a despeito das teorias estéticas e das teorias filmográficas. Porque nele se desdobram, por força quase telúrica, as Potências da Narrativa em estado selvagem, sem que a Arte intervenha para disciplinar. E então podemos aceitar que as personagens mudem de humor, de moralidade, de psicologia de um momento para o outro, que os conspiradores pigarreiem para interromper a conversa quando se aproxima um espião, que as mocinhas de vida fácil chorem ao ouvir a Marselhesa. Quando todos os arquétipos irrompem sem decência, são atingidas profundidades homéricas. Dois clichês provocam riso. Cem clichês comovem. Porque se percebe obscuramente que os clichês falam entre si e celebram uma festa de reencontro. Como o cúmulo da dor encontra a volúpia e o cúmulo da perversão beira a energia mística, o cúmulo da banalidade deixa entrever uma suspeita de sublime. Algo falou no lugar do diretor. O fenômeno é digno pelo menos de veneração.

domingo, 4 de dezembro de 2016

Comandante ( 2003;Oliver Stone )


Apresentação do filme : Miguel Armando Perez
Texto: Reinaldo Silva


Comandante  ou um mito moderno chamado Fidel

Este comentário não aborda Fidel Castro num confronto ideológico entre o certo e o errado nem sobre os aspectos da revolução cubana e seu desdobramento. Não tem a carga moral do bem e do mal.
Vivemos num mundo em que a busca do convencimento é uma arma permanente de persuasão, manipulação e sedução. É um mundo com pântanos que o senso comum, os discursos das mídias impressas (jornais, livros e revistas), eletrônica (televisão), e no presente as mídias sociais, criam para nos fazer acreditar em “verdades”, “realidades”, “neutralidades” e “objetividades” dos fatos.
Todos esses espaços servem à luta política, principalmente quando retratam indivíduos de uma forma personalista. O que desejam é gerenciar a nossa atenção. Proliferam as ilusões de crenças e obscurecem o esclarecimento. Acreditam que somos todos tolos, consumidores de novidades. Portanto, minha intenção não servirá a esses propósitos.
 Minha pretensão é apontar algumas projeções que o mito irradia. Exemplos: uma  “liderança carismática”; o “grau de religiosidade de sua personalidade”; e “as realizações que são lhes atribuídas como dádivas de um ser atemporal”.
Não só Fidel, mas Che Guevara e a revolução são os três pilares de sustentação da estrutura do mito. É impossível mencionar apenas um elemento dessa estrutura sem tocar nas outras duas. Che é o mito da revolução permanente, de um bem estendido as sociedades da América Latina.
São os três pilares acima mencionados que o filme de Oliver Stone esmiúça, com suas lentes focadas em diversos ângulos, que faz a câmara tremer em diversas ocasiões, diálogos provocativos, entrecortados pelas mãos, rosto e corpo inteiro de Fidel. Oliver Stone expõe o mito em seu estágio de idade avançada.
Fidel é um líder carismático das massas porque a sedução é uma fusão afetiva puramente emocional, o êxtase e o encanto que sua enérgica postura de pai provedor provoca, acompanhada de um discurso de atos de bravura, canaliza e promovendo uma vontade de superação coletiva das dificuldades materiais.
Um inimigo comum, espécie de grande mal, fortalece a união da massa em torno do líder Fidel. O grau de religiosidade faz parte da dimensão altruísta emanado pela sua figura. Ele inclusive relata o sacrifício dedicado à revolução. Nas cenas externas, principalmente com estudantes, ocorre um frenesi, a tensão dos braços erguidos para tocá-lo, como somente os santos irradiam. Um beijo de Fidel é motivo de lágrimas.
Seu surgimento e de Che Guevara como mitos modernos está localizado num período histórico em que as utopias marxistas vigoravam como lema central na luta política contra a miséria econômica e conseqüente opressão de classe nas sociedades capitalistas.
Não há como entender o mito Fidel revolucionário se não localizar a sua figura num ambiente mundial da “guerra fria”, dividido pelo capitalismo americano e o socialismo soviético. E ainda, pela resistência a partir do início do bloqueio econômico imposto pelos americanos na década de 60. A própria resistência ao bloqueio foi a chama que manteve acesa a figura de Fidel como mito.
Outro elemento importante para manutenção da chama do mito Fidel teve a participação de depoimentos artistas de diversas áreas, filmes, publicações de livros, festivais, além das  “realizações” de Cuba, principalmente nas áreas de saúde e educação.
Mas o que restará no futuro do mito Fidel?
O avanço do capitalismo na sua forma globalizada não suporta os bens duráveis, tanto materiais quanto como idéias. O capitalismo se propõe a si mesmo como um modelo indestrutível. E nisso que os seus defensores acreditam. Até que ele próprio se destrua, aniquilando todos os meios de extração da natureza.
Não acredito que os mitos modernos e arcaicos estejam ausentes da efemeridade em nosso dia a dia.
Como todo mito, Fidel (como aconteceu com Che Guevara) se transformará em objeto de consumo de camisetas, pôster, flâmulas, tatuagens etc. O duplo avanço das tecnologias, e de um acelerado consumo material, causam efeitos na instabilidade emocional e nas escolhas de longa durabilidade dos indivíduos.
Acredito que um dos temas mais fascinantes atualmente é o que a aceleração produz em nosso cotidiano. A rapidez que nos provoca a fornecer respostas quase que instantaneamente.
Para terminar uma imagem:
Caminha-se sobre uma fina camada de gelo. A ordem é não parar, porque senão afunda.
O mito é a embriaguez de um tempo sem retorno as suas origens.

Reinaldo Silva



segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Sacco e Vanzetti( 1971;Giuliano Montaldo)


Indicação e apresentação do filme: Ricardo Costa
Texto: Reinaldo Silva

                Sacco e Vanzeti em tempos sombrios

Em primeiro lugar e necessário esclarecer a distinção entre as ideologias anarquista e marxista. Isto não fica claro no filme. Em algumas cenas Sacco e Vanzetti são chamados de comunistas mais por ignorância dos inquisidores. Segue abaixo uma resumida diferença entre comunismo e anarquismo.
Há discordância, grosso modo, entre essas duas ideologias. O anarquismo propõe um modelo de sociedade sem a existência do Estado, regida por um coletivismo comunitário, por categoria de trabalhadores, na qual a militância sindical é o vetor de reformas econômicas, sociais e políticas, ou seja, uma utopia de sociedade sem a existência do Estado. Porém, como em toda ideologia, existem correntes anarquistas que defendem uma mínima participação do Estado, reservando-lhe o lugar de legislador das decisões advindas das coletividades comunitárias.
A ideologia marxista apresenta uma outra proposta utópica de sociedade, na qual o Estado tem um papel fundamental tanto na fase de transição (socialismo), quanto na fase decisiva de uma sociedade sem classe (comunismo). Entre essas duas fases existe uma outra intermediária, denominada ditadura do proletariado, quando os meios de produção (fábricas, bancos, terras, enfim, todo o conjunto produtivo) são coletivizados. Aqui também existem correntes que mitigam a existência desta fase intermediária. Mas o que é importante salientar é que o marxismo não abre mão do papel do Estado, uma vez que ele passa a ser o detentor do poder político da classe operária em sua luta contra a classe burguesa.
Existem duas eminências pardas, que caso caminhem na mesma calçada não irão se cumprimentar de jeito nenhum. Marx e Proudhon. Quem quiser conhecer detalhes sobre a origem do anarquismo consultar o Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia de André Lalande, páginas 65 e 66 ou na Internet. Indico o livro porque sou um “dinossauro” que luto para não ser extinto.
Feito o esclarecimento, vamos ao filme.
O maior valor, segundo a “democracia” americana é a liberdade. Esse é o “orgulho” da nação, segundo os americanos. Mas em tempos sombrios, como no caso apresentado pelo filme, todo portador de ideologia incompatível com os interesses dos interpretes da “democracia” americana, é reconhecido, rapidamente, como inimigo público número um, em nome da segurança nacional. Esse é o aperitivo para colocar goela abaixo, depoimentos extorquidos, montagem de esquemas criminosos, publicidades especulativas de cunho dramático, luz, câmara e ação.
Tempos sombrios é uma decorrência da vida instável nas “sociedades democráticas”. Talvez seja a própria “natureza” da democracia, ou porque a personificação do Estado seja um elemento estranho no cotidiano das diferenças individuais. Realmente não sei!
O roteiro, fotografia e montagem do filme são diretos sem aqueles nuances românticos e estéticos da produção dos estúdios de Hollywood. Trama ágil, vivida por atores de forma intensa. Em tempos sombrios a justiça é o braço armado nas mãos dos ideólogos da segurança nacional, da simulação de uma ameaça que preza pelo absurdo. De um crime perfeito. A farsa do julgamento realizado.
Tempos sombrios é sinal de regressão social? Fim da instituição Estado? Necessidade de mais Estado?


domingo, 20 de novembro de 2016

Hannah Arendt (2013; Margarethe von Trotta)


Indicação e apresentação do filme: Valéria Toledo


Muito interessante o filme e a abordagem do mesmo.Melhor ainda as analises conjuntas do grupo ,discutindo.Isto de faz perceptível desde a forma como se trabalhou as questões filosóficas pertinentes ao filme, tanto no que permeia a questão do conhecimento, do pensar, até o nível prático, isto é, trazendo o conjunto de questões discutidas no filme para a realidade.Podemos então perceber a atualidade e a ferocidade do pensamento de uma grande autora e pensadora.( Valéria Toledo) 
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Como jornalista, Hannah Arendt julgou mais o homem do que propriamente o nazismo.Considerando-o como um sere medíocre, incapaz, tão incapaz ao ponto de nem perceber o grande mal que estava realizando.Infelizmente, criticas e o próprio povo judeu, não conseguiram entender o seu modo de pensar, considerando o seu artigo relacionado ao nazismo e ao povo judeu.Realmente, seria muito dificil entende-la (Alfredo Henrique)
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Oportuna a exibição do filme sobre Hannah Arendt, que  apresenta, principalmente,  a polêmica teoria  da "banalidade do mal",desenvolvida a partir   da interpretação do comportamento de Adolf  Eichmann, um oficial  nazista responsabilizado pela logística de extermínio de milhões de pessoas.Em 1963, a autora publicou um livro sobre o julgamento de  Eichmann, o que  provocou um escândalo imediato. Arendt permaneceu  firme na defesa de suas idéias,  mesmo  atacada por amigos e inimigos na mesma medida.
Segundo Hannah Arendt, Adolf Eichmann não era um monstro, alguém com um espírito demoníaco e antissemita. Ela o identificou como um burocrata, um sujeito medíocre, que de certa forma renunciou a pensar nas conseqüências dos seus atos. “Embora as atrocidades por ele conduzidas tivessem sido de uma crueldade inimaginável, o executante era ordinário, comum, nem demoníaco, nem monstruoso ". Eichmann revelou-se como uma pessoa incapaz de exercer a atividade de pensar.
Segundo  Arendt ,  “Será que a natureza da atividade de pensar, o hábito de examinar, refletir sobre qualquer acontecimento, poderia condicionar as pessoas a não fazer o mal? Estará entre os atributos da atividade do pensar, em sua natureza intrínseca, a possibilidade de evitar que se faça o mal? Ou será que podemos detectar uma das expressões do mal, qual seja, o mal banal, como fruto do não-exercício do pensar?”  O filme também é importante para refletirmos sobre os dias atuais. Se pensarmos na sentença arendtiana que “os maus não são somente os vilões como Hitler, mas todo o cidadão que nada faz para combater o mal”, somente discordará de Arendt quem estiver propenso à irresponsabilidade, passividade, à indiferença e à insensibilidade. (Joaquim Ferreira)

domingo, 13 de novembro de 2016

Quanto Vale ou e Por Quilo? ( 2005;Sérgio Bianchi)

                      
Indicação e apresentação do filme: Joaquim Ferreira 
Texto: Reinaldo Silva

No meu entender Sérgio Bianchi é atualmente o diretor mais inovador do cinema brasileiro. As questões que aborda são atuais e seus filmes tratam questões problemáticas sobre políticas sociais. Ele não faz concessões. Sua linguagem cinematográfica é crua.
Entende-se por linguagem de um filme o conjunto das imagens associadas aos diálogos, aos planos e demais recursos técnicos utilizados na elaboração de um filme.
Neste filme, assim como no seu filme anterior (Cronicamente Inviável) o altruísmo, a solidariedade e o conjunto de valores morais existentes na sociedade brasileira e as relações sociais que derivam da prática política não são ações desinteressadas. Em um determinado momento do filme uma personagem socialite exclama que fazer caridade “eleva o espírito”. Em outro momento expõe de forma didática o funcionamento do que é conhecido como “dádiva da caridade”, ou seja, a personagem financia uma festa deixando em aberto como irá cobrar no futuro a dívida. São vários os exemplos sobre o funcionamento do cinismo atua em nossa sociedade, travestido de solidariedade e altruísmo.
A maioria dos diálogos em cada cena expõe o jogo de interesse, o uso do marketing político como ferramenta de convencimento das políticas sociais. Como disse acima, o diretor não faz concessões e não é politicamente correto. Por exemplo, ao expor problemas sobre os critérios étnicos utilizados na política social de “cotas raciais”. Qual o percentual de cor negra para conceder o benefício? O critério é valido numa sociedade com forte índice de miscigenação étnica?
O roteiro é uma ponte entre a adaptação do conto Pai contra Mãe de Machado de Assis de 1906, e documentos existentes no Arquivo Nacional sobre o período da escravidão no Brasil.
Qual foi a intenção do diretor?
 No meu entender:
1) Apresentar uma tese sobre as condições mercadológicas atuais da exploração da miséria, por empresas autorizadas a substituir o Estado no que diz respeito às políticas públicas. O seu alvo são as ONGS.
2)  O prolongamento das estruturas políticas de dominação, em que as oligarquias se revezam no poder utilizando o marketing como prática de convencimento.
3) Os interesses dos interessados, ou melhor, dos beneficiados, em relação a continuidade e manutenção da estrutura de dominação da oligarquias.
4) O “navio negreiro” aumentou com a entrada dos proletários advindos do processo de industrialização, que serão alçados como parceiros em novos empreendimentos.
5) Com o desenvolvimento das forças produtivas do capitalismo, as relações de produção aumentaram e diversificou a massa dos explorados. A dinâmica da exclusão social no Brasil foi adquirindo contornos perversos, encobrindo formas de exploração atualmente sofisticada, onde os explorados surgem como matéria prima de interesses econômicos. O grande aliado desses interesses é o Estado neoliberal.
6)  A miséria de segmentos da sociedade é disputada por ávidos concorrentes, tornaram-se objetos de desejo de grupos nacionais e transnacionais, inaugurando uma nova fonte de acumulação de capital, extraída dos impostos recolhidos pelo Estado.
            Esses são apenas algumas “questões bombas” abordadas pelo filme.
(Reinaldo Silva)

domingo, 6 de novembro de 2016

Asas do Desejo( Wim Wenders;1988)



Indicação do filme: Ana Babo
Apresentação e texto : Reinaldo Silva

                      Asas do Desejo ou o corpo da vida.
Transcrevo abaixo um poema recitado antes do início do filme. Alguns trechos são melódicos, como se fosse uma canção.

A criança, quando criança,
caminhava de braços caídos,
queria que o ribeiro fosse rio,
o rio uma torrente
E este charco, o mar
 A criança, quando criança,
não sabia que era criança,
tudo para ela tinha alma
e todas as almas eram uma só
 A criança, quando criança,
não tinha opinião sobre nada,
não tinha hábitos,
sentava-se de pernas cruzadas,
de repente desatava a correr,
tinha um remoinho
no cabelo
e não fazia careta quando era fotografada.

Preparem-se!!! No sábado o “Cine Estalagem” irá apresentar um filme de tirar o fôlego. Para mim um dos melhores filmes que já assisti. E já o assisti diversas vezes e não me canso de rever, porque aguça a sensibilidade para questões que diz respeito as nossas escolhas.
Wim Wenders faz parte de uma nova geração de diretores do cinema alemão, juntamente com Fassbinder e Werner Herzog, surgida a partir da década de 70 do século 20. Antes tínhamos Murnau e Fritz Lang, expoentes do período que ficou conhecido como “expressionismo alemão”.
Alguns diretores elaboram os seus filmes como proposta de reflexão sobre temas políticos, filosóficos, literários, histórico etc, e não apenas como meio de entretenimento. Explico. Diálogos, enquadramento de uma cena, movimentos de câmara, fotografia,  podem servir de referências sutis de um conto, de um romance, de um outro filme, que desperta a curiosidade, tornando-se tema de conversa após a projeção do filme ou de uma pesquisa posterior pelos interessados.
Ao fazerem essa escolha sabem que seus filmes não serão assistidos por um grande público. Por isso, o custo de produção de seus filmes é baixo se comparado, por exemplo, aos lançamentos dos grandes estúdios americanos. Este é o caso do filme Asas do Desejo.
 O filme Asas do Desejo é uma fábula. Fábula é uma narrativa alegórica em verso e prosa de situação imaginária de cunho popular ou mitológica, destinada a ilustra um preceito.
A questão central que faz parte desta fábula está profundamente relacionada como queremos viver não só na atualidade, mas também sobre a possibilidade de nossa presença na terra. É uma questão narrada por um anjo.
Dentre outras questões o filme aborda direta ou indiretamente: a imortalidade da alma;
a divisão do mundo em uma parte física e uma parte metafísica; a existência ou continuidade da vida após a morte; a ressurreição do corpo;
Até os dias de hoje nos debatemos para entender, acreditar ou não em questões provindas da tradição milenar do pensamento filosófico. São esses temas que o filme aborda. E faço um paralelo entre as questões que o filme levanta, fazendo três perguntas, que estão na cabeça da maioria das pessoas, quer nos momentos de tristeza pela perda de uma pessoa querida, quer em conversas reservadas, ou mesmo em conversas informais:
Nosso corpo possui uma alma? Nossa alma é imortal? Acredita em ressurreição?
Se fizermos uma pesquisa procurando saber as respostas, certamente ouviremos SIM para todas. Dependendo da religião ou crença, teremos explicações variadas sobre cada pergunta.
Mas saiba que desde a mais antiga antiguidade, passando pela idade média, o corpo, o desejo, a imortalidade da alma e a ressurreição eram questões que faziam parte do pensamento filosófico e religioso. Era um tema amplamente discutido por renomados pensadores católicos, como Sto Thomas de Aquino e Sto Agostinho.
Não estranhe a intensa presença de crianças em inúmeras cenas. O poema é dividido em várias partes e narrado parcialmente durante o filme.  

A criança, quando criança,
Fazia perguntas como estas:
Por que é que sou eu e não tu?
Quando começou o tempo e onde acaba o espaço?
A vida sob o sol não é apenas um sonho?
Aquilo que vejo, ouço e cheiro não é apenas a aparência de um mundo antes do mundo?
Existe realmente o Mal e pessoas que são más?
 É possível eu, que sou eu,
não o ter sido antes de ser,
e de repente o eu que sou
deixar de ser aquele que sou?

Somente as crianças podem ver os anjos, porque dão vida as ficções. Não existe criança que não cria em sua imaginação estórias compondo cenários fictícios e personagens fantasmas.
Há uma cena belíssima em que um dos anjos está no circo sentado ao lado de uma criança, com olhos e semblantes extasiados pela presença de palhaços, acrobata e mágico.
Os adultos não podem os anjos. Será porque estão aprisionados por preocupações que não deixa brechas para inocência das ilusões? Será porque a consciência da morte impossibilita as fantasias?
Mas existe um personagem que quebra essa regra. Esse personagem é uma auto-referência de Wim Wenders.
  Vocês irão perceber que as cenas iniciais do filme são feitas em preto e branco. No decorrer do filme elas vão se alterando, ora preto e branco ora coloridas.
Por que a diferença? Porque nas cenas coloridas estão presentes personagens humanos, e nas cenas em preto e branco estão presentes ou que resultam da observação dos anjos. Humanos sinaliza corpo portador dos cinco sentidos, uma característica que os anjos não tem, devido ausência de corpo.
Os anjos vivem num mundo descarnado, não têm sensibilidade treinada para distinguir cores.
A palavra Asas do título é uma metáfora para desejo. Lembra a natureza do desejo. Desejar é se colocar em movimento, deslocar-se de um ponto a outro.
Após conhecer as aflições humanas, temores, medos, angústias, e acontecimentos passados, como o nazismo, a destruição de Berlim no final da Segunda Mundial em 1945, convivendo com o trauma de uma nação dividida por um murro (filme realizado em 1987 e o muro demolido em 1989), um dos anjos toma uma decisão.
Sua decisão foi refletida, analisou, comparou os fatos e as condições presentes e futuras, antes de fazer uma opção, que, no meu entender, resume-se na seguinte pergunta:
Qual a vida que merece ser vivida?
 Abraço

Reinaldo Silva

domingo, 23 de outubro de 2016

Um Conto Chinês (Sebastián Borensztein;2011)


Indicação e apresentação do filme: Dalvinha Vieira;
Texto: Reinaldo Silva

Um conto chinês ou “Não adianta trocar de mal com a vida” 
                                Uma apresentação professoral com indagações aos presentes por ocasião da apresentação do filme. Excelente!O personagem central do filme “trocou de mal com a vida”. Por que digo isso?Ele é intolerante para consigo mesmo e com as outras pessoas, tem um péssimo humor, esbraveja por qualquer fato que contraria suas escolhas, sua irritação é visceral e de uma acidez de fazer inveja a um limão, encara a vida como algo pesado através de uma lupa com sofrimentos e perdas acumulados.Uma das funções de seu trabalho era atender ao público. Você não tem noção da maneira como ele atendia!
Ele se auto-recrimina, sua fisionomia não portava nenhum sorriso, carrancudo. Seu xingamento preferido é “puta que me pariu”. Isto é, lamentava ter nascido.
Sabe aqueles momentos em que ficamos de “saco cheio” de tudo? Pois é esse o estado “normal” do personagem. Acredito que você já tenha entendido o que desejo transmitir sobre esse personagem.
Tenho a impressão que todos nós já conhecemos ou “convivemos” com pessoas assim. Encontrei pessoas que reclamavam de tudo o tempo todo, eram de uma insatisfação abismal com a vida. Mau humor crônico. O mundo em certas ocasiões tritura mesmo e o chão vira areia movediça. Mas o mundo da vida só pode ser como ele se apresenta, independente de nossa vontade e desejos.
Mas apesar de tudo que acabei de escrever sobre o personagem, você poderá no decorrer do filme um outro lado deste personagem, totalmente diferente em seu modo de agir, algo singular, que não encontramos com facilidade na maioria das pessoas. É o que chamamos de um paradoxo. Duas dimensões contrárias em um só elemento.
 Tenho fascínio particular pelo entendimento que o filósofo (século 17) Baruch Espinosa tem do sentido da palavra Encontro. O Encontro que fazemos com o mundo da Vida.
O personagem será surpreendido por um Encontro inédito. Inédito porque irá mobilizar emoções represadas. Inédito porque inesperado, que surgiu do acaso. Outro personagem cairá no seu colo e fará do seu cotidiano um fardo pior do que ele carregava, “um verdadeiro inferno”.
A mudança do personagem central não é súbita. Ocorrerá pouco a pouco e com bastante resistência. Mudar hábitos é muito difícil. Na maioria das vezes mudar de hábito é doloroso demais, não avaliamos com precisão os benefícios que a mudança trará. Na incerteza dos benefícios preferimos repetir hábitos adquiridos, imaginando que a vida segue nossas escolhas. Queremos segurança por isso nos acomodamos repetindo hábitos. Levamos os hábitos até aos limites máximos. A permanência de hábitos pode encurta muitos desejos ainda desejados e encontros inéditos que possam ser feitos com o mundo.
 Para o desespero do personagem central existe entre ele e esse outro personagem um vácuo verbal intransponível. Eles não falam o mesmo idioma. A tentativa de comunicação é por gestos.
Esse outro personagem, tal como o personagem central, também teve um daqueles Encontros com o mundo, que divide a vida ao meio, que lhe retira até os meios de sobrevivência básicos, como alimentação e moradia.
A partir do Encontro dos personagens somos convidados a assistir mudanças de afetos entre eles, envolvendo também outros personagens que transitam pelo filme afirmando seus desejos.
O xingamento “puta que me pariu” do personagem central, a queixa por ter nascido, por estar num mundo que atua a todo instante contrariando os seus hábitos, transformar-se numa busca de um novo lugar perdido no tempo.
Abraço
Reinaldo


domingo, 16 de outubro de 2016

O Limoeiro (2008;Eran Riklis)


Indicação e apresentação do Filme : Anna Nabuco
Texto: Reinaldo Silva

 Duas mulheres por elas mesmas:A luta política

Inicialmente quero agradecer a Anna sobre a escolha deste filme. Sua apresentação, um GPS. Para mim, que não havia assistido antes, uma “surpresa que surpreende”, como a metade que completa a outra metade. Porque quando um filme possui elementos que auxiliam e estimulam meu pensamento é como o preenchimento da algo que estava faltando.
O filme é um exemplo de luta política em todos os aspectos. Não vemos nenhum efeito especial. A fotografia nos conduz para os acontecimentos. Os atores impecáveis em seus personagens. Fui “parar dentro da tela”. 
Início este comentário fazendo uma proposta. Tenho ciência que a minha proposta é absurda, dura apenas alguns minutos. É jogo rápido.
Imagine-se seriamente na seguinte situação:
Você está no centro de um campo de guerra entre dois adversários que se odeiam. O ódio entre os dois lados atravessa gerações e vem de muito longe. Não se sabe ao certo quando começou.
Devido as circunstância de nascimento e cultura, você pertence ao campo de um dos adversários e sofre as conseqüências deste pertencimento. Você está em vias de defender algo que ama. Irá lutar contra um Estado, que determina o que pode e o que não pode. Muito mais o que não pode, porque praticamente tudo é motivo de ameaça a segurança deste Estado. Para ele a sua luta é insignificante. Esse Estado detém armas de destruição poderosas. Não existe chance de vitória, dizem. Você procura aliado junto aos seus e isso lhe é negado. Pedem que desista. Você não possui familiares e amigos para dividir sua angústia. Mesmo assim você perde num primeiro confronto. Recebe recomendações para desistir da sua luta porque de nada adiantará. Você sofre ameaças e pressões de caráter moral sobre os seus desejos, emitidos por ambos adversários. O que você ama não é um(a) filho(a) de carne e osso (ou uma outra pessoa), mas cultiva como se fosse. E para fechar sua imaginação: Você é uma mulher vivendo na fronteira que divide Israel e Palestina. E agora!!   Qual seria a sua decisão?
Recomendo esse filme para as pessoas que tem interesse em conhecer a luta política na prática sem a visão dogmática dos partidarismos das modas ocasionais. É uma aula de Política. 
Neste filme não encontramos doutrinas ideológicas de direita, centro, esquerda, posições conservadoras ou avançadas, ou ainda jargões retirados dos manuais dos “fazedores de cabeças”, que nos apontam as melhores escolhas de acordo com suas preferências. Também não encontramos movimentos feministas envolvidos na luta. 
Encontramos no filme duas mulheres que lutam na sua individualidade e em campos opostos. Portanto, não existe a luta da Mulher no sentido genérico, porque as mulheres são distintas, assim como os homens, e provavelmente os sapos, marrecos, rolinhas, avestruz etc. 
Aquelas mulheres, a palestina e a israelense travam uma luta. Serão cúmplices sem dizer olá, como vai? Não falam o mesmo idioma. A cumplicidade é expressa na intensidade dos olhares, nas expressões fisionômicas, na admiração, na curiosidade. Desde o início até o fim do filme não trocaram uma palavra. A linguagem, neste caso, é pobre e não representa os sentimentos mais fecundos. Qual é o mistério desta relação?
Para desespero dos dogmáticos da direita e da esquerda, a cumplicidade se dá entre uma mulher que pertence a um “grupo dominante” e uma outra mulher que pertence a um “grupo dominado”. Esse é o B a ba dos dogmáticos.
Não é nada fácil para a mulher israelense ser cúmplice da mulher palestina num campo de luta onde o ódio étnico, a moral religiosa, as pressões de grupos familiares e sociais, a segurança física e econômica influenciam as decisões.
Em certos momentos da luta política quando aderimos a um dos lados é fundamental avaliar as conseqüências. Existem convicções inegociáveis e convicções negociáveis. Tudo irá dependerá do que acontece no percurso da luta política. 
Por isso, a individualidade das mulheres palestina e israelense apresenta semelhança no que diz respeito à luta política, mas não são idênticas. Não há uma cumplicidade ideológica de classe. O que existe entre ambas é uma cumplicidade derivada da coragem, da determinação. A luta é inevitável quando acreditamos no valor das nossas convicções. 
O pensamento doutrinário divide o mundo em dois. De um lado os privilegiados. Do outro lado os desprivilegiados. Um não se dá com o outro. Os exploradores e os explorados. Os mocinhos e os bandidos. Os culpados e as vítimas. Essa é a doutrina de manuais ideológicos que obscurecem os vínculos que não estão contidos nas cartilhas facilitadoras do ressentimento.  
Temos abaixo os principais adversários das mulheres:
o ministro da segurança de Israel, que é também marido da mulher israelense.
o Estado de Israel, com suas leis; 
os meios sociais, aos quais as mulheres pertencem;
a moral secular dos costumes ortodoxos de cunho patriarcal.
Todos fazem parte da luta envolvida por interesse particulares e políticos.
Em que local do planeta ocorre a luta política dessas mulheres?
A luta política ocorre numa região dominada por conflitos milenares, entrelaçados pelos atritos interpretativos de textos religiosos com forte teor bélico. Não existe a separação entre religião e Estado. O Estado não é laico e sim teocrático, as instituições que o compõe não estão nas mãos do poder civil. Existe o poder de fato conquistado nas urnas (estou me referindo neste caso a Israel), mas influenciado por grupos ortodoxos (tanto na Palestina como em Israel), que conjugam as demandas sociais e políticas. Quando política e religião se misturam temos uma espécie de nitroglicerina pronta para explodir a qualquer momento.
Só existe Estado em um território delimitado por leis internacionais. No caso da Palestina não existe um Estado. Não existem instâncias (Legislativo, Judiciário, Executivo etc) reconhecidas pelos próprios palestinos como representante da nação. Não há concordância sobre os limites territórios palestinos e israelenses, embora o Estado de Israel tenha sido reconhecido pela ONU em meados do século 20. Onde não existe Estado, existem grupos disputando o poder e auto denominando-se representantes do povo palestino.
Portanto, o que motiva a luta é a expansão do espaço territorial, a geopolítica de dominação, e a predominância do ódio entre as partes alimentando o medo de destruição. É uma região em que o ódio venceu todas as expectativas de acordo de paz. 
No filme a destruição dos pés de limões do quintal da casa da mulher palestina são pretextos para expansão do domínio territorial do Estado de Israel.
Limões arremessados, olhares e fisionomia desafiadora, troca de olhares femininos que se “pesquisam”, lenço colocado sobre a cabeça, simbolizando resistência.
Imagino as seguintes perguntas da mulher israelense:
Quem é essa mulher? Por que não desisti? Existe alguém orientando seu comportamento?
A mulher palestina não luta em prol de nenhum movimento feminista, não está ligada a nenhum grupo que reivindica direitos iguais. Também não foi procurada por nenhum desses movimentos. Sua condição é de completo abandono, inclusive pela sua própria comunidade, afeita mais aos julgamentos morais dos comportamentos do que ao reconhecimento e apoio a sua demanda jurídica. 
Existe um enorme paradoxo entre ideologia e prática política. Não são poucos aqueles que defendem no plano das idéias, atitudes “libertadoras”, mas no campo da prática da vida cotidiana utilizam recursos opressivos nas mais diversas ocasiões. 
A luta política jamais deixará de existir em todos os segmentos em que ocorre convivência entre indivíduos, porque os desejos são conflitantes. Não existi uma sociedade utópica na qual não haverá conflitos entre indivíduos. Sim, podemos aprimorar as condições de vida em todos os aspectos degradantes (fome, tolerância em diversos níveis de convivência, acesso dos meios que possam possibilitar a realização de projetos individuais etc), mas é impossível eliminar a luta política dos desejos.
Insisto em dizer que a luta política daquelas mulheres é solitária. 
Porque insistir na luta contra os dogmas de segurança do Estado de Israel, e ainda contra os dogmas morais da sua comunidade é falta grave, exemplo de desobediência ofensiva. 
Imagine, caro(a) leitor(a) romper com o meio familiar, marido, grupo social, numa sociedade em que os direitos da mulher só é reconhecido de acordo com as leis do Estado teocrático?
Imagino o seguinte monólogo da mulher israelense sobre à mulher palestina:
“No início tive medo das atitudes dela. Por isso assim que a havia, escondia-me ou fechava as janelas. Mas não parava de pensar nela. E fui pouco a pouco adquirindo uma grande admiração pela sua luta. Quando eu a olhava, o que eu queria mesmo era mergulhar nos seus pensamentos. Ela me despertava ternura e ao mesmo tempo uma coragem desconhecida”.
Mídia & luta política
A cumplicidade das mulheres palestina e israelense desperta o interesse da jornalista. Não existe nenhuma nem cumplicidade feminina neste fato. Ela não está interessada na justeza da demanda da mulher palestina. Não é por ser mulher que ela se sensibiliza pela demanda de outras mulheres. Ela só está interessada na repercussão da matéria, nos troféus que anualmente são oferecidos no mercado por empresas interessadas em ficar de bem com as mídias. Portanto, o interesse da jornalista é profissional.
Já a repercussão da matéria faz parte da luta política entre os demais personagens. No filme, a matéria serviu de munição para mulher palestina e desgraça para mulher israelense. Mas a mídia não é uma espécie de defensora dos fracos e oprimidos.
Existe uma crença ingênua sobre a função das mídias. A ingenuidade é considerar as mídias como meios de informações isentos de qualquer interesse, que retratam a realidade com objetividade e neutralidade. A notícia só tem interesse para mídias quando podem ser relatadas como dramas apelativos, escândalos de todas as espécies, crimes, violência e perseguições.     
Vivemos estimulados pelos medos propalados pelas mídias.
As mídias servem para conduzir matérias de interesses pessoais e dos grupos políticos que se combatem para obter apoio dos diversos segmentos sociais. 
Advogado, direitos e prazeres na luta política
Para uma população enorme de mulheres do Oriente Médio a morte do marido em quaisquer circunstâncias sela de uma vez por toda sua vida amorosa. É também contra esse dogma que a mulher palestina luta. Por não ter dinheiro para pagar o advogado, ela utiliza sua força física como moeda de troca. Ela não quer nenhum favor. O que ocorre entre eles é atração física. Atração nela amortecida, mas que voltou a pulsar para desespero dos defensores da moral sexual ortodoxa. Por alguns segundos a expressão dos seus sentimentos deixa escapar um breve sorriso tímido, num toque de batom, na mudança do brilho dos olhos e na espessura geral do rosto. Sua feminilidade não foi submersa pela sua luta política. 
Por que o advogado tem seus interesses em defendê-la “gratuitamente”? Porque este é um caso que lhe dará notoriedade, conquistar o mercado de novos clientes. Há uma cena bastante significativa após a “vitória parcial” do advogado nos tribunais. A mulher palestina afasta-se do encontro com os representantes das mídias, deixando o advogado ser o centro das atenções.
Ela não está interessada em ser celebridade. O seu interesse é pela permanência dos pés de limão. Eles são alimentados, podados com cuidados afetuosos, “conversamos com eles”, diz o pai. São dignos de respeito, como qualquer outro ser humano. A poda é um assassinato!!
 Em 1989 o muro que dividia a Alemanha foi derrubado.
Nem imaginávamos que um novo muro surgiria. O século 20 foi cenário de duas grandes guerras mundiais e centenas de conflitos espalhados pela terra.  
O filme termina sem vencedores e perdedores.
Abraço

Reinaldo

                                   

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

O Substituto (Tony Kaye;2012 )


Indicação do filme, apresentação e texto: Miguel Armando Perez

Conversando com Joaquim, em minha casa, ele pediu uma sugestão de filme para fechar a programação do mês de outubro.Por coincidência, uma grande amiga havia nos emprestado o Dvd do filme O Substituto.Então,   foi uma sucessão de acontecimentos que me levaram  sugerir este filme. Acho que o motivo mais importante foi que serviria para realizar uma homenagem aos professores, uma vez que o filme toca o tema da EDUCAÇÃO e, coincidentemente seria na semana onde o Brasil celebra o dia do professor, justo no sábado, 15 de outubro.Nada como um filme sobre educação para homenagear aos tantos mestres que nos passam sabedoria.
Já tinha assistido ao filme há alguns anos, quando ainda não passava pela minha cabeça que um dia, neste lindo lugar, faria parte de um grupo-Loucos por Cinema- ,mas confesso que na época, mesmo tendo gostado muito do filme, não assisti com o olhar para uma apresentação,.Então, surgiram na minha mente muitas lembranças. Este grupo permite que as apresentações sejam o ponto culminante de tudo que queremos passar sobre o filme: nossas experiências enquanto mestres, pais, avós, cidadãos, etc. Culmina com a exposição de como vemos a vida, de como o filme nos toca e sempre nos toca. Quando assistimos a apresentação de Maria em Bagdad Café por exemplo, terminamos nos emocionando e agradecendo os momentos inesquecíveis que Loucos por Cinema nos proporcionam.
Por ser um filme que toca o tema da educação, cheio de emoções e que reflete uma realidade complicada (poderíamos até dizer triste), este filme é uma verdadeira joia, pois, ele provoca reflexões sobre a Educação no Brasil, neste momento, ameaçada em sofrer um grande retrocesso.
Polêmico, este filme tem atuações fantásticas. Sem a pretensão de ser considerado um clássico, termina mexendo com nossas emoções, de forma até um pouco cruel, pois a realidade vivenciada não está perto de ser um jardim de rosas. É uma realidade um pouco dura, poderíamos dizer. A realidade dos profissionais da educação, que salvando os costumes, a cultura e as condições de cada país ou sistema social, tem muito em comum, na forma em que toca o dia a dia dos professores, dos alunos, da sociedade em geral, cada vez mais alienada. Esse é o mérito do filme e por isso podemos colocar que éum filme universal.
Atores de primeira linha como Adrien Brody,no papel de Henry ,Oscar de melhor ator em O Pianista,(Não é á toa que Polanski, grande lenda do cinema apostou neste ator nessa ocasião). Ele brinca neste filme, entre a atuação e as falas que em todo momento guiam o filme. Ele é emoção pura e apesar de sua juventude como ator, o considero fantástico. Nos leva de mãos dadas pelo mundo dos professores, pelo mundo da sociedade decadente que enfrenta, desde sua relação familiar até a profissional, com colegas e alunos. Longe do estereótipo do galã de Hollywood, do ator que explora seu lado masculino de durão, de herói estereotipado de Hollywood.Realizamosuma viagem cheia de emoções, durante todo o filme.
Outra vencedora de Oscar, Marcia Gay Hardem,no papel de Carol, a diretora da escola. Atuação fantástica, cheia de emoções. Nesse papel ela também consegue nos levar numa viagem pela vida dos professores, dentro e fora da escola.
Nem sempre contar no elenco com vencedores de Oscar é sinônimo de sucesso, mas todos, sem exceção neste filme conseguem passar emoções que mexem, e muito, com o espectador.
Quando vc vê Lucy Liu no papel da Dra. Parker, numa atuação capaz de nos levar para dentro do mundo dos estudantes, dos educadores ou orientadores como é seu caso no filme.Simplesmente ela toma tua mão e te conduz por um mundo, de momentos sombrios, de momentos gloriosos,  por um mundo muito decadente que reflete uma realidade que as vezes tentamos ocultar. O Substituto mergulha neste mundo, e o melhor, é que te conduz.Eu me senti, todas as vezes que assisti ao filme ,como se estivesse dentro desse mundo que poderíamos chamar de mundo perturbador.Realmente o filme mostra um lado bem escuro da sociedade, da educação, das pessoas e da vida de forma geral, tendo como foco os conflitos do dia a dia de alunos e educadores.Vai muito além quando mostra a realidade fora da escola. A realidade da sociedade, a frieza das pessoas e do sistema que termina sendo muito cruel. Algo interessante no filme é o fato da retrospectiva constante na vida de Henry, acho que usa o recurso para tentar justificar cada momento, cada decisão dele e levar a trama tomando como base a própria vida e, afinal isto fornece material para apresentar este lado triste e frio que envolve de forma brilhante este filme.
O diretor aproveita muito bem, eu diria, de maneira magistral estes recursos os quais te levam de um desenho animado ao rosto de uma pessoa, de um depoimento real, de um professor a uma cena em que esse depoimento e sem duvida a realidade de qualquer um dos protagonistas do filme, uma velocidade fantástica nessas combinações que nem por um momento te confundem, pelo contrario e como se deixassem na tua mente o preparo para o que virá depois, esse recurso é para alguém como eu leigo em questões técnicas de cinema algo que simplesmente me encantou no filme.
Atuações todas fantásticas, quando assistimos odesempenho de alguém como James Caan, grande ator em que o humor do seu personagem é o que permite levar a vida cruel e dura que se apresenta.Ao final da projeção percebemos que só um grande ator (Sonny Corleone, no Poderoso Chefão até o Mr.Seaboldt em O Substituto), daria uma aula de atuação com humor que  eleva a expressão do personagem por ele representado.
Marca enormemente. ENFIM É UM EDUCADOR.
Ponto alto são os diálogos. São diálogos fortes. Eu diria que extremamente fortes, mas que no fundo tem um lado poético até mesmo nas cenas fortes.  Poético no sentido não literário da palavra e sim no sentido da vida.Mesmo que cruel, frio e por momentos perturbador, é o caminho pela vida em uma sociedade que cada dia mais se afoga num labirinto sem saída.Uma sociedade que não oferece politicas públicas coerentes capazes de colocar a EDUCAÇÃO no patamar que merece. Numa sociedade onde aparecem muitos Henrys, pode até fazer a diferença, mas esta longe de ser a solução.
Nem por isso o filme perde a ternura, pois a abordagem da realidade da educação e da sociedade, simplesmente, nos leva a realizar uma grande reflexão dos problemas.Os problemas são colocados de maneira cruel e fria neste filme, Ai está seu grande mérito, ele nos leva, de forma magistral,numa viagem que toca assuntos delicados, é como se abrisse uma ferida e no final não sabemos como fechá-la.
Atuações simplesmente FANTÁSTICAS com uma carga emotiva muito forte.Um filme que mesmo sendo duro, frio e sombrio é capaz de nos colocar no centro dos grandes problemas que a todos nos tocam.
Simplesmente um excelente filme, para pensar e refletir, um filme que todos deveriam em algum momento da vida assistir.
Ponto culminante da noite foi à presença de MUITOS professores, alguns deles ainda ativos e outros já aposentados. Todos deixaram uma carga de fortes emoções, depoimentos que tocaram fundo, histórias, pontos de vista. Todos educadores de alguma forma se encontravam retratados no filme, essa foi a verdadeira emoção dessa noite, de um sábado em que um bando de Loucos por Cinema decidiram com um filme fantástico homenagear  nossos educadores. Todos eles que estiveram nessa linda noite e a todos aqueles que dedicam suas vidas a educação em geral- MEU CARINHO.
O Substituto hoje sou eu.Os protagonistas são todos os educadores deste mundo que lutam cada dia como Dom Quixote contra os Moinhos de Vento. Eles são os verdadeiros Quixotes do mundo de hoje.A todos eles meu respeito e admiração, todos eles aparecem no filme, e todos eles têm a ternura que permite transformar nossos jovens e nossa sociedade. Vocês,PROFESSORES, são a verdadeira luz que no filme pode nãoaparecer, mas que todos representam. Nem a escuridão do sistema ou da educação que às vezes tenta nos impor, poderá apagar a luz de sabedoria que todo professor leva dentro no seu coração.
O Substituto é um desses grandes filmes que tocam fundo no coração, mesmo colocando o lado cruel que nele aparece, finalizando, INFELIZMENTE é uma parte da vida que vivemos. Grande filme que pode até machucar, mas que termina nos levando a refletir com certeza, o mundo no qual não queremos viver.Esse mérito ninguém tira do filme O Substituto.

domingo, 2 de outubro de 2016

Bagdad Café ( Percy Adlon,1987)

























Indicação do filme e apresentação: Maria Garcia
Textos: Maria Garcia , Reinaldo Silva e Filippi Fernandes

É a partir do olhar lançado pelo cineasta que vamos construindo comentários, colocando cores particulares, estabelecendo ressonâncias, revitalizando sentimentos, redescobrindo histórias fixadas na memória. Tecendo criativamente essa sutil teia. Teia da vida, manifestação da mágica de tecer sonhos, nos remete a lembrança de que somos nós que criamos a realidade. 
Por que Bagdad Café?  Porque é poético, sutil, delicado...Com uma composição fotográfica muito elaborada. De uma linguagem pictórica marcante, onde as cores falam...Com tomadas de cena e cortes que alteram a realidade. Muito bem costurado com o roteiro. De uma narrativa crescente e envolvente. 
Um filme que constrói muito bem a dialética entre os opostos :Simples e profundo, drama e comédia, aridez e sutileza...Duas realidades opostas que vão se unindo aos poucos, contrastes que surgirem identificações. 
Passando por cima de uma possível crítica que uma mulher branca tenha o poder de organizar a vida de uma mulher negra. Jasmin e Brenda se completam. E isso vai se desenhando em uma história de abandono e recomeço. "São dois pontos de luz   no crepúsculo "
Um filme feminino. Um feminino que se revela aos poucos, que floresce. Nutre, acolhe, recria...De uma sexualidade natural e delicada como flor. 
A canção tema I'm Calling You de Bod Telson, cantada por Javetta Stell emociona com sua voz arrastada abrindo caminho no deserto. Nos nossos desertos. No que arde. Nosso interno fervendo nos impulsionando para ir. Seguir adiante em busca de um Oasis,  de uma noite calma, de um descanso no orvalho da noite.
Um filme que fala da transformação através do encontro. Do encontro evolutivo capaz de potencializar nossos dons , nossa força, nossa alegria. Alegria é um bom indicativo! Lida com o arquétipo da transformação presente nas metáforas. Como nos nomes Jasmin o que jas em mim e Brenda metamorfose, corvo fêmea. Quando o poder de um arquétipo é ativado pode ocorrer interferência na forma, a realidade se altera. A mágica acontece. E para terminar gostaria de reforçar alguns versos da canção principal. 
Eu estou te chamando 
Você não está me ouvindo?
Eu estou te chamando...
Cheguei mais perto
Doce liberdade

(Maria Garcia)

A Vida que vale a pena ser vivida(*)
Por Reinaldo Silva
                  Entendo que o filme Bagdá Café transmite um aprendizado que raramente percebemos: somos matérias em estado de transformação. Os Encontros fazem parte de nossa matéria. Encontros alegres e tristes com o mundo. Amizades, Amores, Sofrimentos, Perdas, Cumplicidades etc. Acontecimentos inéditos e transformadores, uns fortalecem, outros apequenam as nossas potências. Não passamos pela vida sem esses encontros.
Brenda e Jasmim, personagens centrais do filme vão ter um Encontro. Dois corpos tristes irão se transformar em dois corpos alegres. 
Caro(a) leitor(a) é um enorme desafio escrever um comentário sobre o filme, devido a riqueza e diversificação dos detalhes.
O diretor esbanja talento, a câmara passeia e congela fotos em quadros, que poderiam fazer parte de uma exposição numa galeria. Seu mérito foi beber na fonte dos grandes diretores. E o que escrever sobre os atores? Cenário? E da música tema do filme? E, ainda, sobre a homenagem, que o diretor faz quase no final a um gênero de filme que raramente é produzido pelos grandes estúdios cinematográficos? Refiro-me ao filme musical. Lembra do filme Dançando na Chuva?
Portanto, para escrever este comentário escolhi a Amizade como tema central do filme.
Faço uma conexão dessa escolha a partir da cena em que a carga emocional da furiosa personagem Brenda chega ao ápice do ressentimento e da inveja, numa calorosa bronca aos seus filhos, retirando do colo de Jasmin o seu neto. Diz Brenda a Jasmim, ao fechar a porta do apartamento:
Vá brincar com seus filhos!!!
Responde Jasmin: Eu não tenho filhos!
Momento decisivo: a porta fica fechada por alguns segundos e abre-se novamente. Brenda não é mais a mesma!!! A resposta de Jasmim mudou Brenda. Seu rosto, seus olhos, enfim toda a sua fisionomia muda segurando o seu neto no colo. O que aconteceu a Brenda?
Para entender o que ocorreu com a Brenda irei levar em conta o seguinte princípio: o instinto de maternidade. É esse instinto que aflora no momento nesta cena.
Instinto que concilia Brenda e Jasmim.
Algumas espécies de animais possuem esse instinto. Em mais de 2500 anos, a cultura judaico-cristã criou dispositivos em leis e costumes para manutenção e aprimoramento deste instinto.
A maternidade é um elo que abranda ou dissolve as diferenças entre as mulheres. É um fator valorativo e compartilhado em conversas, experiências, segredos e preocupações cotidianas.
Entendemos por “moral do sacrifício feminino” todos os empreendimentos feitos pela mulher para garantir a vida de sua cria.
Em minha experiência pessoal constatei por inúmeras vezes, que para muitas mulheres mães, o fato da mulher não ser mãe ou não querer ser mãe, é um fator determinante de “infelicidade”(v. nota 1 abaixo).
Volto à cena do filme.
O que mudou em Brenda?
Dei a entender acima que o ato de Brenda fechar e abrir a porta após ouvir a resposta de Jasmim é um divisor de águas entre “duas Brendas”.
A “primeira Brenda” vivia num mundo inóspito, com uma carga de ódio sustentado por gritos e agressões.
Porém, Brenda teve um Encontro com a Amizade. Um Encontro inédito!!
Na vida de Brenda o que não falta eram Encontros tristes, que a colocava “para baixo”.
A “segunda Brenda” que surge ao abrir a porta, acolhe a carência de Jasmim e passa a entender todas as suas atitudes anteriores, torna-se vulnerável. Em lugar das atitudes ácidas, Brenda desculpa-se, confidencia suas preocupações, seus olhos abandonam a tensão agressiva e no seu rosto emerge um acolhimento, um entendimento surpreendente para nós que assistimos a uma trajetória marcada pela hostilidade e aversão a todo tipo de envolvimento emocional.
Acredito caro(a) leitor(a) que os Encontros que fazemos no mundo  podem dar ensejo a escolha de uma vida que vale a pena ser vivida. Na vida o definitivo é mera ilusão. Não existem fórmulas prontas e nem percursos sem obstáculos.
“Tudo bem meu caro Reinaldo, mas imagine se eu vou pensar desta forma quando estiver em pleno gozo???!!!”
Mas caro(a) leitor(a) não quero cortar o seu barato! Não quero interromper o seu gozo. Lembro apenas que não regemos os acontecimentos com a nossa treinada batuta (consciência).
E é justamente isso que Jasmim e Brenda vão aprender com a vida no momento em que tudo parecia conspirar para prolongar a alegria deste Encontro. Um Encontro triste (com a lei identificada no xerife) ofusca e rompe o prolongamento da fórmula “pra toda vida”. Penso que a Angústia é inerente a nossa condição de humano. Somos acossados por um pensamento: aquele que organiza um futuro ilustrado por nossa racionalidade. É por isso que são insustentáveis as teorias sobre a liberdade de escolha (livre arbítrio). Jasmim sabe que Brenda irá concordar com o pedido de casamento que lhe foi proposto pelo pintor que descobre o seu inibido talento de modelo. Pintor cúmplice da continuidade da Amizade entre elas.

Reinaldo Silva

(*) Esse é o título de um dos livros de Clóvis Barros Filho, filósofo e professor da ECA – USP.
Nota 1: Essa moral sobre a maternidade vem sofrendo grandes transformações ao longo da história das sociedades ocidentais em decorrência de fatores econômicos, políticos e científicos na área da biologia. 

Da série "A provação da luz": Bagdad Café de Percy Adlon
Por Filippi Fernandes

Desajustes em pulso. Debaixo de um mesmo teto, duas bocas tracejam por uma mesma diretriz. A relação, entretanto, não é das mais serenas. O deserto ao redor é imenso e vazio, apesar da sequência indicar uma intimidade pautada em contrastes muito jocosos em torno de objetos-parafernálias que não funcionam. Ouve-se por repetidas vezes a palavra “Disneylândia” ser pronunciada, mas o ruído é enorme para que faça qualquer efeito. Algo está faltando ali e o convívio tem a contundência dos fracassos. Desengonçada, a imagem encrespa-se de tão chacoalhada, restando, por fim, a figura de uma retirante em sua humildade silenciosa, que prossegue, apesar do peso, apesar do calor, apesar da distância.. A câmera tenta captar esse instante de partida, num slow-motion peculiar e até perverso de tão cerimonioso. O carro sexista dele, de proporções espalhafatosas, passa adiante e ainda zomba derrapando o pneu na areia, bem debaixo do ouvido dela, que nada faz senão avançar. Escorre suor pelo rosto sob um céu de azul que remonta aos versos caeirianos:
"Um céu de azul, um pouco baço, umas nuvens brancas no horizonte, 
Com um retoque de sujo embaixo como se viesse negro depois. 
Isto é o que hoje é, 
E, como hoje por enquanto é tudo, isto é tudo. 
Quem sabe se eu estarei morto depois de amanhã?" 
As pernas balançam, o coração pulsa e ela está novamente só, a empurrar sisificamente a mala pela enorme extensão da estrada asfaltada. A cabeça é baixa, mas o peito exorta coragem. À distância consegue perceber no azul cerúleo dois espaços concêntricos de nuvens, como se…dois olhos fossem. Seria Deus?
Uma caminhonete antiga de cor bege para a meio caminho. Um homem amulatado pergunta se ela não gostaria de uma carona. Ela com muita dificuldade agradece a generosidade e prefere prosseguir viagem por si só, com suas próprias pernas, para onde o destino traçar. Na caçamba, vê-se a garrafa de café também bege mais claro que o marido dela soube descartar da memória. No meio da garrafa o rótulo com o nome da cidade de onde vieram. Nome alemão. O carro parte.
A caminhonete estaciona próximo a um bar que fica localizado perto de um posto de gasolina desativado, no meio da estrada. O local é rústico, feito de madeira e se chama “Bagdad Café”, pelo que o letreiro na fachada do estabelecimento aponta. Ele caminha para o bar, segurando a garrafa de café. No interior do bar, um rapaz estuda piano. O bar está completamente vazio. O barman, naquele momento, ocupa o tempo inserindo agulha por agulha num frasco de vidro. Talvez fosse um método encontrado para passar o dia mais depressa. O homem amulatado mostra o seu novo achado. Diz que encontrou na beira da estrada e, melhor ainda, com café. Comenta acerca da máquina de café ainda à procura de conserto e a importância providencial daquela garrafa térmica, para os dias que se seguiriam. 
O dia torna a passar como as pás de um ventilador em rotação lenta. O mulato sai, caminha sem rumo. Percebe então subitamente um carro saindo da estrada e indo em sua direção. Consegue se esquivar por um triz. O louco sai do carro e segue em direção ao bar. O mulato o segue. No bar, tenta se comunicar com o barman de maneira agitada e pouco útil. Algumas palavras saem desconexas de sua boca, não sem a ajuda de uma mímica gestual. Raul, em Limite,  perguntando por um homem alto e magro. Inútil, mais uma vez inútil. Ele pede então pelo chopp, mas não há chopp ali. Pede pelo café, mas não há café ali. Lembra então da garrafa de café e o serve. O estrangeiro louco se distrai com algo e não percebe a sua garrafa ali. Bebe o café com a mesma pressa de sempre e, por fim, agradece mostrando aos demais um punhado de pó de café. É o que pode deixar como agradecimento. Mostra um modo tosco de aproveitá-lo: levando-o até o nariz e cheirando como quem cheira rapé. E sai. Eles não entendem aquele costume e, como os índios diante da chegada dos europeus, põem-se a imitar a fim de sentir mais de perto aquela estranheza.  
A seguir entra uma mulher magra e amargurada. Os cabelos despenteados, a pose de quem já se cansou da vida. Chega criticando em voz alta o homem amulatado por não ter consertado a cafeteira, por X Y Z. Anda de um canto a outro. Grita ao rapaz que acaba de arriscar alguma partitura de Bach. “Essa música parece máquina de costura!”, diz. E o silêncio se instaura, na estranheza que lhe cabe. Os rostos fechados, o tédio engravatado.
Entra no bar um senhor que tem um lenço vermelho na cabeça, cabelos brancos, sorriso definido. Oferecem a ele o café. Ele arrisca e um gole basta para cuspir o café, querer beber água da bica, passar mal, com todo o exagero expressivo que lhe é facultado pela idade.
Descobre-se que a mulher azeda é a dona do estabelecimento. Mas ela não está mais no bar. Ela foi discutir no lado de fora com o homem amulatado, que agora se revela como sendo seu marido, a quem recebe ordens para que sejam cumpridas. Vê-se que está alterada pela forma como se movimenta, irritadiça, com a desarmonia de cada coisa. Chega a jogar algumas latas amassadas que o vento trouxe até seus pés. Mas a violência que vai, também volta. E tanto que quando a caminhonete parte, desata a chorar lágrimas exaustas, num canto remoto de si. Tudo parece inutilmente condenado a se repetir. “A lágrima clara sobre a pele escura”, como naquela bela canção de Caetano Veloso. 
Raia mais um dia. No limbo da amargura, a mulher desgrenhada termina por surpreender-se com uma mulher que pergunta, com alguma dificuldade, onde fica a recepção.
 -  Por ali, diz de maneira arrastada, com a mão. 
Empurrando a bagagem com a perna, adentra o recinto bagunçado. A mulher que acabara de recebê-la na porta, troca a guarda consigo mesma e, se dirigindo à mesa, adota um ar mais austero:
- em que posso ajudá-la?
A cliente seleciona a dedo as palavras, como se estivesse preenchendo um caça-palavra. Emperra aqui e ali,mas a mensagem é clara: quer alugar um quarto.
- para quantas pessoas?
- uma…
As reticências dela a surpreende mais uma vez. “Uma gringa num motel de beira de estrada?”
-por quanto tempo? — pergunta com os olhos mais abertos.
E já nem precisa responder: seu cansaço tem a força da indeterminação necessária. “Não está vendo que ela está por inteira ali, tirando umas feriazinhas?”, é a pergunta velada daquele instante.
Claro que a mulher despenteada vira aquela cena num filme policial hollywoodiano. E é claro que aquele olhar de pura desconfiança de cima a baixo é intimidador para a mulher que acaba de chegar. A sensação dela é a mesma dos colonizadores quando chegaram à América.
- Assine aqui, por gentileza.
E se debruça inteiramente sobre o papel, deixando uma assinatura enorme de muitas consoantes repetidas ao mesmo tempo e em grande pompa.
- Adiante o pagamento, por favor — e estica a mão, a fim de novas surpresas. Quem sabe abra a mala repleta de dinheiro sujo, e possa tirar dali o pouco que precisa para a hospedagem? Mas não: ela prefere pagar em cheque europeu.
- O centro da cidade…qual direção?
- Aqui é o centro da cidade.
A estrangeira silencia. Os olhos sem saber o que dizer. Recebe então a chave do quarto.
- Queria falar…com a gerente por aqui…
-Eu sou a gerente disso aqui — e quase dá um murro na mesa. O olhar mais fixo do que prego na parede. E continua:
- E não há pessoas para carregar suas bagagens.
A estrangeira recebe cada frase como uma bagagem a mais. Se despede então em direção ao quarto. A mulher despenteada chega a abrir a janela lateral para melhor examiná-la à distância. “Não é possível que isso esteja acontecendo por aqui”, diz com os pensamentos, pensamentos estes que a estrangeira repete ao chegar no quarto e se deparar com uma pintura de dois círculos concêntricos, similares aqueles que acabara de ver ao caminhar pelo deserto. Talvez esteja no caminho certo.
Voltando ao bar, esbarra com a filha que está de saída com o novo namorado: um rapaz barbudo que dirige uma Harley Davidson. Sim, um qualquer. Era só o que faltava: sua filha sendo mais uma no mundo. Esbraveja então contra a filha namoradeira, contra o filho vagabundo tocador compulsivo de Bach e, sobretudo, contra isso que eles chamam de vida e que não serve para mudar a situação em que se encontra. Por isso não há sinal de golas ou de botão ou qualquer coisa de postura erguida. É como se sua cabeça estivesse constantemente em posição de aríete.
O vidro semi-amarelado pelo tempo, o céu azuláceo e o revestimento da parede marrom não significando nada, além de uma mesma miséria. A estrangeira se aproxima, em silêncio. Abre a porta e senta. Todos a olham. O silêncio é mortal. Pede um café. O barman toma a liberdade de servir o mesmo café horroroso. Ela bebe e nada reclama. A sua preocupação é de outra ordem.
No quarto ao lado ao seu, uma mulher magra e repleta de adornos chinfrins, parece entediada com seu cigarro.
Nada acontece. Nada. Nadinha.
O tempo torna a passar como nos filmes de western americano. Quem sabe no mesmo dia ou vários dias após o ocorrido, a dona presta-se a limpar o quarto da suspeita. Ao entrar, percebe uma coisa diferente; o bastante para que unisse os palitinhos e arregaçasse as mangas da imaginação: viu roupas masculinas penduradas. Sua imaginação correu mais rápido que pôde tal qual houvesse visto um corpo crucificado. Imediatamente larga o aspirador e corre para o telefone preto. Chama o xerife local que em alguns minutos (ou, quem sabe, algumas horas) chega no local. 
Naquele ínterim, a estranha está no quarto, utilizando o aspirador para limpar aquilo que não fora limpo pela dona. Para suportar o calor, estava à vontade. Assim que bateu na porta, pede licença para se aprontar e vai logo de bandeja naquele ritual de tira gostos. Tintim por tintim e nada de errado foi encontrado. O xerife que, com os longos cabelos, mais parece um índio apache, pediu desculpas e se mandou. A dona sentiu-se indefesa perante uma coisa que já estava mais do que evidente. Teve de pedir desculpas ainda que não estivesse completamente convicta se se tratava de algo ridículo ou não. O fato é que o xerife se interessara sim na suspeita, mas não pelo perigo que ela representava ou poderia representar e tampouco pela sua pessoa. Ele estava de olho nas variadas roupas que trazia na bagagem. Roupas femininas como nunca havia experimentado…
Certa vez a estrangeira quis ser generosa para com aquela que a hospedava e assim aproveitou a posse do aspirador de pó e a ausência momentânea da proprietária para pôr em ordem o local: limpou e arrumou o que julgava necessário e até no telhado conseguiu varrer pó. Quando esta chega, assiste a um movimento de renovação que a desagrada profundamente. Vivia um paradoxo que a estrangeira em generosidade espontânea não conseguia entender: repudiava a situação em que vivia, apesar de sentir-se na obrigação de manter a ordem no mesmo lugar, no mesmo desmazelo. A impressão foi como se estivesse lhe roubando o lugar, apagando a uma existência de muitos anos. E por mais que tentasse negar aquilo com penas de pavão, era o que saltava aos olhos. Solta desaforos até ficar sem fôlego.
A etapa final deste processo veio quando soube que havia tido a chance de se aproximar de seus filhos a ponto de levá-los para o quarto e deixá-los à vontade para tocar Bach com um teclado imaginário e vestir suas roupas inusitadas, com tamanha naturalidade. Todos brincavam no quarto daquela estrangeira, criminosa, como se… a amassem maternalmente. Quis fechar então a porta com força, para que pudesse pensar logo no despejo daquelas aporrinhações. Mas justo naquele momento ela pôde se ver por inteira. É o momento em que a porta deixa de se fechar, momento em que os outros cadeados se estalam e caem no chão. E neste vão deixado, germina o primeiro botão. O primeiro após uma década ou mais.
Carrosséis, chaminés, tertúlias, girassóis, de uma só vez. Pela magia, a mortandade vira espaço de aprendizagem e diversão. O pó vira pé. O local lota, a lotação loca em rota de todos os dias. Fartura de palavras e dizeres. Um show de atrações e descobertas desnudas. Tem pra todos aquele bar tão balde a transbordar. Amor por amor, amor por amor, amor por amor. A cegonha, o fruto e o ar de balão a inflar para cima e adiante, para o norte sem nó e por inteiro. Esplendor. Até o marido da proprietária retorna ao perceber aqueles fogos de artifício. Conciliação. A estrangeira e o homem com faixa na cabeça, a namorar alguns atrevimentos em arte. Desnudar.
Por fim, ela precisa partir. Todos pedem que fiquem,mas ela precisa bater o ponto de seu passado fichado e documentado. Aquilo que acabou de demonstrar é imemorial, não tem nome ou dimensão.
Ela parte e deixa lágrima em quem permanece. Apesar da aprendizagem ter sido boa, sem ela a coisa não continua, justamente porque através dela há uma espécie de magia que atrai a atenção e a estima, como o terceiro movimento de Vladimir Martynov:


Os negócios desandam e desaceleram. A mesma poeira, a mesma… E ela retorna, na mesma linha de horizonte que antes, com a mesma inteireza debaixo dos braços. Tempos de disponibilidade,de intimidade. Um ponto aqui e outro acolá que unidos se tornam reta, plenitude e expansão.