domingo, 19 de novembro de 2023

M.A.S.H. ( Robert Altman;1970)

A obscenidade da guerra triturada pela sátira: sobre “M.A.S.H.” de Robert Altman (1970)


Quanto mais rude fosse a piada, maior a chance de aparecer no filme. Quanto mais obscena a piada, melhor. Pois não havia nada mais obsceno do que esses jovens sendo despedaçados e mandados para esse lugar para serem remendados e mandados de volta à batalha. Pra mim essa era a obscenidade!” (ALTMAN)

Mesmo em Hollywood, há quem tenha os culhões de afrontar o complexo industrial militar e os masters of war empunhando os recursos pontiagudos da arte satírica. O mestre Robert Altman era um semi-desconhecido dentro do showbizz roliudiano lá por 1969 e já adentrava os portões da toda-poderosa Fox pra dirigir um roteiro que tinha sido recusado por uma dúzia de outros diretores. Com orçamento “apertado” (“só” umas 3 milhões de doletas…) e um elenco de atores desconhecidos (uma dúzia deles estreavam no cinema), Altman se lançou ao projeto sob os olhares de desconfiança e ceticismo – pra não dizer hostilidade declarada – dos figurões do estúdio.
Na mesma época, a Fox estava produzindo dois outros longa-metragens de guerra – Tora! Tora! Tora!, de Richard Fleischer, e Patton, de Franklin J. Schaffner – tidos como prioritários: ofereciam à empresa perspectivas de lucro muito mais convidativas. Na maciota, com pouca grana e muitos capitalistas sedentos querendo arrancar-lhe o pescoço fora, Altman, em uma das atitudes mais heróicas e corajosas dum cineasta dentro da engrenagem hollywoodiana, filmou seu genial manifesto anti-guerra M.A.S.H.
O ano era 1969 e os Estados Unidos da América, mascarando seu imperialismo arrogante com a fachada da “defesa dos valores ocidentais”, despejava bombas, com sua arrogância costumeira, sobre um pequeno país asiático que tivera a ousadia de tentar o comunismo. Crime imperdoável. Com a Guerra do Vietnã a todo vapor e as mortes dos soldados em ascensão frente à tenacidade dos vietcongues, assim como crescentes ondas de repúdio diante do ecocídio e da carnificina produzidos pelo despejo de agente laranja nos territórios agredidos, os protestos pacifistas iam gradativamente aumentando.
Os hippies, dançando ao som do rock and roll e se sujando na lama de Woodstock, pronunciavam em altos brados: make love, not war. As manifestações anti-guerra ganhavam voz também entre artistas de muito peso na cultura mundial – John Lennon e Yoko Ono, por exemplo, que espalhavam por aí os outdoors que garantiam: war is over (if you want it) e convidavam as massas a cantar “Give Peace a Chance”.
Nesse contexto, Altman soltou uma obra recheada de humor negro e obscenidades, destilando um desrespeito generalizado contra todo tipo de autoridade, ridicularizando toda a classe militar e pintando um retrato da insanidade doentia que se apossa das mentes em tempos de guerra.
Sem olhar para os méritos artísticos do filme, M.A.S.H. já é um notável por causa do estrago que causou e pelas mudanças que trouxe: além de ter sido o primeiro filme a ousar utilizar a famosa four-letter-word (“I’ll blow your fucking head off”), teve um faturamento de bilheteria considerável, recebeu 5 indicações ao Oscar (vencendo o de roteiro), levou pra casa a Palme D’Or em Cannes, serviu de inspiração pr’uma série de TV homônima que durou 11 temporadas (e ganhou quase 100 Emmys), colocou Altman direto na história do cinema como um dos mais instigantes e irreverentes cineastas americanos e… (por que não?) ajudou a parar a guerra.

SENTA QUE LÁ VEM HISTÓRIA…

O enredo do filme, no entanto, não se desenrola no Vietnã. O roteiro de Ring Lardner Jr. foi inspirado num romance de Richard Hooker, um médico que serviu na Guerra da Coréia no início dos anos 50. Uma pequena contextualização histórica pode ser útil aqui, já que o filme não a faz de maneira alguma, praticamente eliminando (propositalmente) qualquer referência à Coréia.
Em 1945, com o fim da Segunda Guerra, o derrotado Japão deixou de controlar a Coréia e os exércitos de ocupação invadiram o país quase simultaneamente, os americanos pelo Sul, os soviéticos pelo Norte, rasgando a nação em dois. Em 1948 os soviéticos abandonaram o país e no ano seguinte foi a vez dos americanos também puxarem o carro. Em junho de 1950, exércitos norte-coreanos invadiram os territórios do Sul, tomando posse de Seul e de grande parte da Coréia do Sul.
Respondendo rapidamente a pedidos da ONU por assistência médica e militar na Coréia, o presidente Truman mobilizou o exército norte-americano pra território coreano, onde foram instalados uma série de hospitais improvisados pra atender os feridos em campo de batalha.
Os M.A.S.H.s – Mobile Army Surgical Hospital – atendiam principalmente aos casos mais graves: gente que não teria chance de sobreviver a uma dificultosa viagem a um hospital fixo através das precárias estradas do país. Os helicópteros, utilizados para driblar as dificuldades rodoviárias, eram carregados com os corpos sangrentos e mutilados dos moribundos no front e os despejavam aos borbotões nas unidades M.A.S.H.
Com a escalada da violência e o consequente aumento de demanda por médicos, o exército americano passou a convocar jovens estudantes de medicina, muitos deles com somente 1 ou 2 anos de treinamento cirúrgico, e os enviava para trabalhar em condições precárias e com péssimo equipamento nas terríveis mesas de operação dos M.A.S.H.s coreanos. Mesmo com o armistício de julho de 53, que conquistou uma tênue paz na Coréia, estima-se que mais de 35.000 soldados americanos permaneceram aquartelados na Coréia do Sul por mais de 45 anos após o cessar-fogo. O último M.A.S.H. foi desativado em 1997.
O filme de Altman, transpirando um realismo bem verossímil, nos colocará ficticiamente dentro de um dos acampamentos do M.A.S.H. Porém, o diretor procurou propositalmente eliminar qualquer referência à história da Guerra da Coréia e evitou ao máximo até mesmo colocar personagens coreanos no filme, na tentativa de fazer com que o público tivesse a ilusão de que aquilo se desenrolava no Vietnã. Donald Sutherland disse que a Guerra da Coréia era somente “uma metáfora atrás da qual eles se escondiam”, talvez um artifício para escapar da censura, mas que a intenção manifesta do filme era ser despejado nos EUA de 1970 como uma obra anti-Guerra do Vietnã. Bem útil para este intento que coreanos e vietnamitas tenham, ambos, olhinhos puxados!

NO CAOS E NO IMPROVISO

Robert Altman tinha visões tão subversivas e um modo de trabalho tão fora do comum que teve uma série de problemas durante as filmagens e pós-produção. Com pouquíssimo respeito pelo roteiro, o diretor deixava rédeas soltas para que os atores improvisassem as falas e sugerissem toda uma série de detalhes e acontecimentos que não estavam previstos. Alguns depoimentos de atores afirmam que 80% do filme é improvisado. Esses mesmos depoimentos pintam o retrato dum set de filmagem dominado pelo caos, onde ninguém além de Altman sabia exatamente o que estava acontecendo, com os atores entregues à sua própria criatividade enquanto as câmeras dançavam ao redor.
Os dois atores principais, Donald Sutherland e Eliott Gould, vendo com ceticismo o comportamento extravagante do diretor, entraram em sérias desavenças com Altman, algo que chegou a comprometer a realização do filme. “Nós achávamos que Bob deveria ser internado numa instituição para pessoas mentalmente desequilibradas. Porque era obviamente doidice o que ele estava fazendo”, disse Sutherland. Também o roteirista Ring Lardner Jr. sentiu-se ultrajado quando viu o filme finalizado ao notar que PRATICAMENTE NADA do que havia escrito no roteiro aparecia no filme. Por ironia, Lardner iria vencer o Oscar de Melhor Roteiro no ano seguinte e, subitamente, ao perceber-se alçado à glória pela genialidade de Altman, rapidamente tratou de se referir ao diretor com mais carinho e gentileza…
No acampamento M.A.S.H. colocado em primeiro plano pelo filme, os feridos nos campos de batalha são trazidos às pressas, normalmente mutilados e empapados de sangue, com hematomas horrendos, fraturas expostas e feridas purulentas, para serem submetidos a operações de emergência. A dramaticidade da situação, absolutamente trágica, é contraposta pela atitude dos médicos e cirurgiões, que não levam nada à sério e tratam tudo na base da chacota. A tragédia e a comédia dão as mãos.
Hawkeye (Donald Sutherland) e Trapper John (Elliott Gould) são dois porras-loucas que se afogam em martinis, piadas sujas, humor negro e xavecos passados às colegas de trabalho. Enquanto abrem os corpos dos feridos e costuram suas entranhas, com as mãos banhadas em sangue e tripas, batem um papo como se estivessem no boteco, fazem gracinhas sobre os membros decepados dos feridos, comentam sobre as qualidades anatômicas das enfermeiras… A vida no acampamento é envolvida num ambiente de imoralidade, de vale-tudo, de foda-se todas as regras e todas as autoridades. E viva o pôquer, as bebedeiras, o sexo casual e o futebol americano na lama.
Toda uma série de alvos são sistematicamente ridicularizados e caçoados. Qualquer pessoa que se leve a sério ou que acredite convictamente em suas crenças (Burns rezando ajoelhado e sendo ridicularizado), que pretenda “fazer cenas” (Hot Lips depois da travessura do chuveiro), que tenha a ambição de estar fazendo algo de importante ou dramático (o “suicídio” de Painless), é sempre destroçada pelo sarcasmo cáustico e destrutivo dos médicos. Não há para eles nenhuma pessoa merecedora de respeito. “Costurando e cortando no campo de batalha, operando enquanto bombas e balas explodem à sua volta, revidando com risadas entre amputações e penicilina”, os médicos constroem um mecanismo para suportar a realidade intolerável onde estão afogados.
Altman declarou que o principal tema em M.A.S.H. é a insanidade. Obviamente, o cineasta se mostrou tremendamente preocupado com os rumores de que a Fox iria censurar as cenas tétricas de operação, nas quais a tela era tingida de sangue jorrante e cadáveres abertos sendo cavocados pelos bisturis dos médicos. Se aquelas cenas tivessem sido excluídas, a obra perderia toda sua relevância, todo seu poder, e se transformaria numa comédia banal e fútil sobre personagens que fazem piada de tudo, até das desgraceiras mais terríveis.
Mas é o horror de experimentar um cotidiano desfile de corpos humanos destroçados, de entrar em contato direto e constante com o terror da guerra, que obriga os médicos a criarem maneiras de escapar da realidade através da diversão, da futilidade, do esporte, do álcool, do papo furado. São táticas de sobrevivência. Grandes artifícios utilizados para erguer um pesado muro de repressão que esconda o insuportável terror que está a se desenrolar. Estou certo de que Altman não está fazendo um elogio tácito ao comportamento imoral, foda-se tudo, de seus personagens, mas registrando mecanismos psíquicos de fuga de uma realidade demasiado tenebrosa e chocante para ser tragada. “A leviandade desses rapazes era um meio para que eles pudessem sobreviver!”, declarou o diretor.
E não só a futilidade dos médicos é descrita, comoparece haver também uma espécie de provocação latente do próprio filme aos espectadores. Afinal, M.A.S.H. se apresenta como uma comédia engraçadíssima, onde estão presentes alguns dos diálogos mais espertos e divertidos da história do cinema, mas ao mesmo tempo esboça uma espécie de crítica à trivialidade como uma espécie de covardia moral.
É como se Altman, após fazer um de seus personagens dizer algo de comicidade irresistível, se virasse pra nós e perguntasse: “mas por que é que você está rindo, pilantra? Os cadáveres estão se amontoando e os corpos continuam sendo costurados e remendados, e vocês vão na mesma onda desses médicos babacas em sua perseguição incessante de uma sagrada cegueira?”
O público inevitavelmente ri do filme, mas ganha de presente uma certa culpa, uma certa acusação: da mesma maneira que os personagens se entregam à futilidade para se esquecerem que estão num campo de batalha, também o público que frequenta os cinemas comerciais normalmente se entrega às gargalhadas e ao entretenimento escapista para evitar olhar uma realidade que não tem coragem de encarar de frente.
Ainda que M.A.S.H. não faz críticas explícitas à Hollywood como outro clássico de Altman, O Jogador, pode ser interpretado como um certo jogo dúbio com o público: que recebe o entretenimento todo sujo de sangue, que recebe o sangue todo recoberto pelo riso. Como diz o cartaz francês: eis um “filme sangrento de onde jorra o riso!” Além do eloquente manifesto anti-bélico que é, M.A.S.H. é também uma crítica cultural onde Altman descreve o entretenimento e a leviandade como mecanismos de fuga da realidade (Ernest Becker explica…). M.A.S.H. não está somente oferecendo piadas bestas – como disse Altman: “after all, you gotta pay for your laughs”.
(Eduardo Carli de Moraes)

Disponivel em https://acasadevidro.com/mash/

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

O Pianista ( Roman Polanski;2003)


 APRESENTAÇÃO DA SESSÃO  
Profª Joana D'Arc Fernandes Ferraz (UFF ) 
TEXTO: Profª Joana D'Arc Fernandes Ferraz (UFF )  
Rogério Ferreira de Souza (UNIRIO)

AS CONTRIBUIÇÕES DO FILME "O PIANISTA" PARA A TEORIA DA MEMORIA

Autores: Joana D'Arc Fernandes Ferraz – Doutora em Ciencias Sociais - UERJ /
Rogério Ferreira de Souza – Mestre em Memória Social - UNIRIO

Resumo: este trabalho tem como objetivo principal analisar o Filme “O Pianista” (dirigido por Roman Polansky, em 2003) à luz da Teoria da Memória. O filme O Pianista traz mais uma vez para a sociedade o tema da memória judaica. Este tema parece não envelhecer. A cada novo filme, uma nova forma de relembrar vem àtona. Então, uma questão persiste: por que ainda não conseguimos esquecer este período? Partimos de duas questões que se relacionam. A primeira, procura analisar as contribuições da memória, enquanto teoria, para o campo das Ciências Sociais. A segunda, busca entender o sentido do retorno constante ao tema da
memória judaica, suas marcas e os reflexos dos fascismos no mundo contemporâneo.

Palavras-chave: teoria da memória, trauma, fascismos, memória judaica, cinema.

ABSTRACT: the purpose of this work is the analysis of the newest Roman Polanski's movie, The Pianist (2003), by using the resources of the Theory of Memory. The movie brings the society a new approach of the Jewish memory. This matter seems to be renewed at each film that's dedicated to it. So, a question remains: why we couldn't forget this period? The text began with two related questions. At first, it tries to analyse the contributions of the memory, as a theory, to the Social Sciences area. At second, it tries to explain the meaning of the frequent return to the Jewish memory, its characteristics and the influence of fascism in the contemporain world.

Key words: Theory of Memory, trauma, Fascism, Jewish memory, cinema.


Este filme traz mais uma vez o tema da memória judaica. Em primeiro lugar, devemos indagar: o que é a memória? Jacques Lacan nos ensinou que só fica na memória o que pode ser esquecido. No entanto, só se esquece ou se lembra daquilo que se conheceu ou viveu, e não do que se ignorou, como afirma Henry Rousso,
(1998) . Fica, então, uma lacuna: como e onde se fundam ou se separam o que se vive com que se esquece. Esse é o limite da memória. Porém, existem várias memórias que podem ser pensadas de forma diferenciada,
tanto em relação à sua utilização pelos sujeitos sociais, pelas sociedades e pelas nações, quanto pelas características que elas apresentam. Portanto, ao se falar de memória devemos pensar na pluralidade de seus significados e de seus usos, como está presente na obra de Myrian Sepúlveda dos Santos (2003).
A Memória é um campo relativamente novo nas Ciências Sociais, ela representa uma nova sensibilidade, um novo olhar sobre o passado, menos comprometido com a verdade dos fatos , preocupada primordialmente, não com o que foi dito, mascom  o como foi dito. 
O que vai diferenciar as várias memórias é a forma como elas serão apropriadas/reutilizadas pelos indivíduos e/ou pelas sociedades. O que faz do Pianista uma obra fundamental para as Ciências Sociais além da possibilidade de se pensar, através dele, os vários conflitos sociais que a memória pode revelar, pelas imagens do horror, acima disso, se pensar o que se fala de nós, de todos nós ao se falar sobre os fascismos. Que tipos de sujeitos sociais somos ou estamos sendo?
As memórias do holocausto e da colaboração de diversos cidadãos com o regime nazi-fascista são recorrentes, principalmente a partir da década de 1980. Henry Rousso (1987) ao referir-se ao trauma da França em relação à colaboração com o nazismo, afirma que pode-se delimitar três grandes momentos da memória desse período: o do luto inacabado, logo depois da guerra; um período de recalcamento, entre os anos 50 e 60 (quando o silêncio era a tônica) e um período de obsessão, que ainda não saímos. Pensamos que essas referências a estes três momentos da memória do holocausto, na França, podem ser pensadas de modo geral, para toda a Europa colaboracionista.
A memória desse período tem a capacidade de nos incomodar, de nos colocar incessantemente nesse encontro, por vezes cruel conosco e com os nossos. Por isso, uma questão ainda persiste: por que se fala tanto dessa memória? Constantemente somos relembrados, seja através de livros, de filmes e da mídia. Como analisa Andréas Huyssen (2000) a sociedade contemporânea é cada vez mais seduzida pela memória, por isso vivemos o momento do passado presente. É como se não pudéssemos esquecer esse período. Ou talvez, como se da constante lembrança pudesse se fazer surgir, calmamente, o esquecimento, consciente ou não.
A proposta deste trabalho é pensar, através do filme O pianista, as possíveis interpretações sobre a memória. Como podemos explicar o constante retorno a esse tema? Suspeitamos alguns motivos, entre eles:
• pode-se argumentar sobre a necessidade de que a História nos sirva de lição, para que não mais se repita. Deslocando o holocausto como uma figura de linguagem, retirando dele a sua historicidade específica. A crítica que Huyssen (2000) faz a isso é que essa utilização da memória do holocausto pode servir como uma falsa memória ou simplesmente bloquear a percepção de histórias específicas;
• também é possível se argumentar que essa memória seja recorrente porque ainda não foi possível superar a dor sofrida pelos que viveram esse regime; a dor persiste e o pior, nem tudo foi explicado e nem entendido; Primo Levi (1990) , argumenta que “não saberia dizer se o fizemos, ou o fazemos, por uma espécie de obrigação moral para com os emudecidos ou, então, para nos livrarmos de sua memória. Com certeza o fazemos por um impulso forte e duradouro.” (1990: 48)
• talvez, uma outra explicação para essa memória recorrente seja o fato de se tentar entender, pelo menos em parte, o que esse regime revela sobre nós, tanto individualmente como coletivamente, ou seja, o que em nós ainda persiste da marca totalitária.O filme de Roman Polanski, O Pianista , narra a biografia de um pianista judeu polonês, Wladyslaw Szpilman. Wladek, como era conhecido pelos amigos e parentes, vivia em Varsóvia e era pianista de uma rádio local. Sua família era declasse média, tinha três irmãos, era o mais velho. Ocupava-se somente de seu piano, da sua arte. Nas discussões entre família sobre o futuro dos judeus, pouco sabia. Não lia jornais, nem tinha informações detalhadas sobre o início da perseguição. Todas as informações que tinha sobre a invasão de Hitler na Polônia, em relação às pressões do regime sobre os judeus, eram os seus familiares que forneciam. Constantemente o seu irmão Henrik o questionava sobre a sua alienação em relação a questões tão importantes para a sobrevivência de toda a família.
Na medida em que as pressões nazistas aumentam, a família foi perdendo os seus espaços e as suas posses, ficando proibidos de freqüentar e até mesmo de passar por determinados lugares. Restando somente o piano, que Wladek decide vender, mesmo contra a vontade de todos. Finalmente, sem mais nada, eles perdem o seu
lugar naquele mundo não judeu. E então começa a saga, são enviados para o gueto, passam fome, vivem humilhações e vêem mortes cruéis. Sem dinheiro e sem perspectivas, a família recebe a visita de um amigo judeu que trabalha para o regime e chama os dois rapazes para também trabalharem. Henrik revoltado, não aceita e ainda ofende o colaborador. Wladek agradece o convite, mas consegue um emprego de pianista num restaurante do gueto, onde ficam os judeus que se beneficiam com o desespero e a falta de perspectivas de outros judeus, comprando seus bens. Henrik e Halina (sua irmã) foram escolhidos para ficarem trabalhando, enquanto a família vai sendo transportada para outro lugar, bem provável para a morte. Mas eles escolhem ficar com a família. Wladek os chama de estúpidos pela escolha que fizeram. No momento em que o trem chega sua família entra, novamente o colaborador judeu reaparece, puxa Wladek e o tira da fila de entrada para o trem. Essa foi a última vez que ele viu a sua família.
Para sobreviver ao regime, Wladek se submeteu a todo o tipo de sofrimento, mesmo aquele mais negativo da natureza humana: a sujeição do corpo e para além dele. Fome, trabalho, dor, doença, frustração, humilhação, vergonha... uma situação tão extrema que fica difícil pensar que algum ser humano possa sobreviver a ela. No entanto, Primo Levi (1988) , afirma que não nos é possível prever o que os homens são capazes de suportar diante das adversidades. Embora não tenha morrido rapidamente, como sua família, a cada dia no gueto Wladek vai perdendo a sua vitalidade e a sua dignidade, aquilo que nos faz homens. Por não conseguir suportar aquela situação de trabalhos pesados, constantes negociação com os mais adaptados, castigos corporais severos, Wladek prefere fugir, mesmo sabendo que corre o risco de morrer. Como já colaborava
com a resistência, esta ajuda-o. E a partir daí terá dois objetivos na vida: controlar a sua comida, para que não morra de fome e fugir sempre que estiver em perigo. Num desses momentos de fuga, quando Wladek está escondido num apartamento, do lado alemão, em frente ao gueto, ele se questiona dizendo que às vezes ele não sabe de lado do muro ele está.No entanto, algo parece superar tudo, como se fosse até mesmo maior do que ele próprio: a sua música. Em todos os momentos difíceis, impossíveis, traumáticos, ela está lá. É uma memória que supera todas as outras, é a memória vencedora..
Ela extrapola o corpo. A harmonia imaginária que vem das lembranças das sinfonias de Chopin tocadas em seu piano, vence o caos e o desespero e consegue resgatá-lo novamente para a vida. O que essa memória tem de tão extraordinária? Ela representa o fim, o fim último de sua vida. Em dois momentos marcantes do filme ela aparece.
No primeiro, ele está escondido num apartamento com um piano, sem poder tocá- lo, pois não podia fazer barulho e ele o toca sem encostar as mãos em suas teclas, mas o toca e nos faz sentir cada nota. É tão vivo esse momento que temos a impressão de que está realmente tocando o piano. Ao tocar, Wladek parece
libertar-se de todo o presente.
No segundo momento, já no final do filme, Wladek está numa casa destruída pela guerra. A sua aparência física e a sua condição psíquica nos fazem compará-lo a um animal. Agarrado neuroticamente a uma lata de doce, não lhe importa mais saber se viverá ou não, sua única preocupação naquele momento é encontrar um
meio de abrir a lata e alimentar-se. Nesse instante um oficial alemão aparece em sua frente. Wladek o olha, parece um pouco fora daquela situação, como se os seus sentidos tivessem congelado ante a fome e o frio. O oficial olha para ele e lhe pergunta quem ele é? Esta pergunta, que outrora lhe trazia uma enorme satisfação ao responder, neste momento, porém, há um confronto, quase que imperceptível entre a força de um passado brilhante e um presente desumanizado, cuja brutalidade dilacera toda a dignidade humana, ceifa orgulhos e transforma pessoas em restos de vida. E neste momento ele responde: eu sou, eu fui um pianista. A reação do oficial é mais impressionante ainda. Após ouvir a resposta, o oficial o conduz a uma sala com um piano e pede para tocar algo. Esta cena, inicialmente, é dúbia, pois não fica claro se o oficial estaria duvidando de que Wladek era realmente um pianista, ou se, sendo amante da música, teria a oportunidade de ouvir algo que o tirasse daquele lugar, mesmo que por um instante.
A música tocada por Wladek faz com que o oficial sinta uma profunda admiração por ele. No dia seguinte, este volta à casa em que Wladek está escondido, trazendolhe um casaco, comidas e um abridor de latas. No entanto, mesmo depois de ter ouvido a música, ao se referir a Wladek, o oficial o chama de judeu. O filme
termina com Wladek de volta a sua cidade, tocando com uma orquestra, para um grande público.
No primeiro momento, nas duas cenas com o piano referidas acima, percebemos a memória atuando como liberdade, como emancipação. Esta, talvez, seja a principal mensagem do filme. No entanto, fica um vazio e uma dúvida: sair daquele tormento significou o retorno ao prazer para Wladek? A música, ele teve de volta, mas e o mundo? O que foi ele dali em diante, além de pianista? Como é estar vivo, ter sobrevivido? Que memórias lhes restam?
Friedrich Nietzsche (1996) já nos revelara os males ocasionados pelo homem quando este buscou criar a memória , a fim de que pudesse construir os seus valores morais e as conseqüências deste ato.
“Quanto pior “de memória” a humanidade, tanto mais terrível o aspecto de seus costumes; em especial a dureza das leis penais nos dá uma medida do esforço que lhe custou vencer o esquecimento e manter presentes, nesses escravos momentâneos do afeto e da cobiça, algumas elementares exigências do convívio
social.” (Nietzsche, 1998:51)
No entanto, não nos é possível pensar a construção da nossa humanidade sem a memória. Se algum dia isso foi possível, se o esquecimento era o reino da felicidade, hoje, prisioneiros ou não da nossa história, somos filhos do passado e da memória.
Levi (1990) afirma que como sobrevivente só resta-lhe sentir vergonha de estar vivo. Será que vale a pena, diante de tudo o que passou, retirar dali alguma memória?
Levi (1988) diz ter a convicção que sim e completa que “estamos convencidos que nenhuma experiência humana é vazia de conteúdo, de que todas merecem ser analisadas; de que se pode extrair valores fundamentais (ainda que nem sempre positivos) desse mundo particular que estamos descrevendo”.
É com esse olhar de Levi sobre a memória, que procuramos pensar as diferentes manifestações da memória em O Pianista . Ou seja, acreditamos que por pior que tenha sido essa experiência, ainda podemos retirar dela valores, nem sempre positivos, mas que nos ajudarão a pensar em formas melhores de viver em
sociedade.
Além desse momento de destaque do filme, que trazem referências interessantes sobre a memória e para além dela, destacamos outros três momentos de análise.
Organizamos as cenas pela ordem em que ela aparece no filme. A primeira cena é quando o oficial alemão pergunta a Wladek quem ele é, e ele responde: eu sou, eu fui um pianista . De que forma ele olha o mundo naquele momento? O que vemos nessa fala é um sujeito que está no limite, entre a ausência de desejo e o desejo sufocado. Ele ainda não negou o seu prazer (eu sou), que neste caso poderíamos pensar na música e na vida. A sua subjetividade ainda não foi contaminada. O seu desejo não foi substituído, erradicado pelo fascismo, mas ele não consegue afirmá-lo e então desabafa (eu fui). A memória é privilegiada.
Embora ela só possa existir quando deixar de ser , ela só se afirma quando existe na vida, no cotidiano. Embora a memória seja continuamente recriada, de trás para frente e de frente para trás; do passado para o presente e do presente para o passado, ela só existirá onde for possível para o sujeito/sociedades/nações
pensar/pensarem no que foram. Mas Wladek, embora não possa recusar essa possibilidade (eu fui), a coloca em segundo lugar. Ele quer viver, ele quer SER. A memória, diferente de Wladek, prefere ficar ENTRE. Ela não nega o seu passado: não duvidamos que o passado possa modificar o presente, mas não rejeita o presente, constantemente também o presente recria o passado.O segundo momento foi quando Wladek estava refugiado num apartamento do lado alemão e ele desabafa: às vezes não sei de que lado do muro eu estou . Este relato apresenta uma discussão bastante nova em relação à memória judaica.
Segundo Michel Pollak (1989) só recentemente, a partir da década de 1980, é que os judeus começaram efetivamente a falar das suas memórias, não mais somente como vítimas, mas apontaram de que maneira, aquela situação extrema, levou muitos deles a serem colaboradores do regime . No caso de Wladek, ele nunca
colaborou com o fascismo, mas ao ver a luta vã dos resistentes, ao perceber a dimensão da dominação, ele sente-se incapaz de fazer algo para mudar e entende a sua omissão como colaboração.
E o terceiro momento foi quando, mesmo sabendo que Wladek era um pianista, mesmo tendo ouvido e se deliciado com sua música, oficial o chama de judeu. Pollak (1989) inferindo sobre a obra de Maurice Halbwachs afirma que, ao estudar o processo de enquadramento das memórias individuais em memórias coletivas, ele defende a tese de que todas as memórias são coletivas, eliminando a possibilidade de uma autonomia do sujeito em relação à estrutura social e acreditando que o passado só se torna compreensivo a partir de sua reconstrução e práticas vividas no presente. Ao defender esta estrutura quase funcional da memória, Halbwachs fundamenta um quadro institucionalizador da memória coletiva. Esta memória, que ao definir o que seria comum ao grupo, produziria as diferenças em relação aos outros e reforçaria os sentimentos de pertencimento/identidade e as definições de fronteiras sócio-cultural.
Entretanto, Halbwachs procurou destacar as funções positivas e de coesão desta memória coletiva, que integraria o indivíduo ao grupo via uma adesão afetiva ao grupo. Nesse sentido, como argumenta Pollak, para Halbwachs, a nação seria a forma mais acabada de um grupo, e assim, conseqüentemente, a memória nacional
a forma mais completa de uma memória coletiva.
Pollak em oposição a Halbwachs, afirma que a memória coletiva incorporada ao discurso oficial da nação, também pode “acentuar o caráter destruidor, uniformizador e opressor...”(1989:04), quando estas eliminam a participação de outras formas de culturas, etnias, identidades, no processo de construção da nação.
Assim, por mais que o oficial alemão fosse um profundo admirador da música, e tenha ficado encantado com a forma como Wladek tocara o piano, isso não desfez o peso de uma memória nacional que impõe a diferenciação, via diminuição do outro. Wladek era um excelente pianista, mas nem por isso ele tinha deixado de ser judeu e inferior.
O mais interessante do Pianista é exatamente o fato dele não revelar o trauma subjacente a essa memória. O trauma não se supera, no momento em que ele parece estar acomodado é exatamente quando é mais forte. Levi (1990) reproduz a fala de um judeu (Amèry), que como ele, também foi prisioneiro de um campo de concentração, mostrando como cada indivíduo sente de maneira diferente o que viveu. Para Amèry, “quem foi torturado permanece torturado. (...) quem sofreu o tormento não poderá mais ambientar-se no mundo, a miséria, o aniquilamento jamais se extingue.” (p.10)Ainda que tenham vivido a mesma experiência, ela nunca será absorvida da mesma forma para cada um. É essa a singularidade da memória, porque ela implica, acima de tudo, a forma como os sujeitos as sofrem, as interpretam e as reinterpretam. Enquanto Levi diz que não perdoa os nazistas, mas que prefere deixar por conta da Justiça, mesmo sabendo dos seus limites, Amèry o critica, chama-o de ‘o perdoador'. E diz que depois de Auschwitz ele foi incapaz de encontrar na vida algo que o fizesse esquecer o que viveu. Amèry se suicida em 1978 . Algo ainda permanece, as palavras não são suficientes.
E por isso nós continuamos a falar desse período. Falamos, também, porque nos sentimos testemunhas, testemunhas não desse período, somos filhos dos seus reflexos, mas testemunhas da História, e por isso também não conseguimos nos silenciar. Falamos, ainda, porque que a marca fascista permanece a corroer anossa sociedade. Porque a luta do judeu, se estende na luta do pobre, do negro, do homossexual, das vítimas da violência policial e assim por diante.
Num momento político em que a Itália hoje, volta a apresentar caracterísitcas que a aproximam bastante do regime fascista, através da eleição de Sílvio Belusconi, líder de um Governo coligado com um partido de extrema-direita declaradamente xenófobo (Liga Norte) . Em que a França, também, quase voltou, através de JeanMarie Le Pen, racista, anti-semita e xenófobo, líder da Frente Nacional e representante da extrema direita, fez a sua campanha na luta contra os negros, os judeus e os estrangeiros, principalmente os árabes.
Por tudo isso, u ma pergunta nos incomoda: o que ficou faltando, ou melhor dito, o que ainda não aprendemos? Não queremos opor o Totalitarismo ao ideal de Democracia que nos foi imposto, conjugando com o discurso dominante de que existe um modelo a ser seguido. Nem queremos que a memória do holocausto sirva de clichê e anule as especificidades das lutas dos outros povos. Porém, não devemos negligenciar a marca fascista da nossa sociedade, como tão bem afirma Klaus Theweleit (1996), que se expressa na exclusão, na sublimação do desejo, na desvitalização diária que muitos homens passam.
Bibliografia:
THEWELEIT, Klaus. 1996. Male Fantasies. v .2. United States : University of Minnesota, third printing.
NIETZSCHE, Friedrich. 1996. “Para a Genealogia da Moral. Segunda Dissertação”. São Paulo: Editora Abril Cultural. Coleção Os Pensadores .
LEVI, Primo. 1988. É Isto Um Homem. Rio de Janeiro: Rocco.
__________. 1990. Afogados e Sobreviventes. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
HUYSSEN, Andréas. 2000. Seduzidos Pela Memória . Rio de Janeiro: Aeroplano.
POLLAK, Michael. 1989. “Memória, Esquecimento, Silêncio”. In Estudos
Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3.ROUSSO, Henry. 1998. La Hantise de Passé. Paris: Textuel.
______________. 1987. Le Syndrome de Vichy: de 1944 à nos jours. 2 éd. Paris: Ed. Du Seuil.
SANTOS, Myrian Sepúlveda. 2003. Memória Coletiva e Teoria Social . São Paulo: Editora Annablume. (prelo)

Embora os fatos sejam importantes para uma possível reconstrução do passado, sabemos que não se pode pensar um passado isento dos diferentes textos em que ele é escrito e a memória é mais um texto desse passado, é mais uma narrativa.
Por lembrança entendemos algo diferente de memória. Lembrança vincula-se a um sentimento, enquanto memória relaciona-se ao fato de lembrar e de relacionar esta lembrança ao contexto. Polanski deixa escapar na cena do pianista tocando para o oficial a idéia de que a música de Chopin desperta no oficial lembrança boas. Pois ele ouve com ar felicidade, dando a impressão de que ele nunca mais ouviria. Possivelmente pela
impossibilidade dele não ver mais a família, pela proximidade a rendição alemã. “Jamais deixou de haver sangue, martírio, sacrifício, quando o homem sentiu a necessidade de criar em si uma memória.” (Nietzsche, Friedrich. Genealogia da Moral. 1998:50)
Pollak afirma que “quarenta anos depois convergem razões políticas e familiares que concorrem para romper esse silêncio: no momento em que as testemunhas oculares sabem que vão desaparecer em breve, elas querem inscrever suas lembranças contra o esquecimento... Por conseguinte, existem nas lembranças de uns e de outros, zonas de sombra, silêncios, ‘não ditos' As fronteiras desses silêncios e ‘não ditos'com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento.” (1989:3-1)
Outros judeus sobreviventes do campo de concentração também não conseguiram com palavras descrever a dor que sofreram e só se libertaram dela com o suicídio, como vemos na obra de Tzevtan Todorov.