domingo, 22 de setembro de 2019

A Metamorfose (1975,Jan Nemec)



Indicação ,apresentação do filme e texto: Reinaldo Silva

                                Os múltiplos sentidos da metamorfose
“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama  metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimalvelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos.
- O que aconteceu comigo - ?  pensou” (A Metamorfose – Franz Kakfa) 
Palavra chave: Fábula – São composições literárias de curta narrativa, não só muito presentes na literatura infantil,  escrita em prosa ou versos com personagens animais que agem como seres humanos, servindo de ilustração para preceitos morais.
A novela A Metamorfose de Franz Kafka foi escrita em no outono de 1912 e publicada em 1915. É uma das poucas obras que ele publicou em vida e se transformou numa das principais marcas registradas da ficção kafkaniana, que juntamente com o seu romance O Processo, recebeu ao longo de sua existência análises  teológicas, sociológicas, históricas e estilísticas, passando por abordagens filosóficas de caráter existencialista. É no primeiro parágrafo da novela, conforme está descrito na abertura deste comentário, que o autor apresenta ao leitor a fábula, sem esclarecer o seu sentido preciso no decorrer da narrativa até a conclusão final da novela. 
A versão cinematográfica (1975) da novela foi feito em média metragem com duração aproximada de 50 minutos, para a televisão tcheca pelo diretor Jan Nemec (1936 a 2016), nascido na antiga Tchecoslováquia, que após a derrocada do regime soviético, passou a se chamar  República Tcheca. Talvez o filme tenha sido feito com a intenção de estimular a leitura da novela, porque sem uma explicação resumida de alguns elementos importantes contidos na novela, teremos vagos elementos para especularmos sobre a metamorfose de Gregor. 
A câmara subjetiva como recurso cinematográficos. O que isso quer dizer?
O filme é narrado por uma terceira pessoa, que podemos comparar a leitura das estórias infantis que os  adultos narram para as crianças. A câmara subjetiva são tomadas que partem do interior do inseto, registra o mundo que o circunda, suas reações e as reações do pai, da mãe, da irmã, do gerente de seu trabalho, da faxineira e dos objetos inanimados que estão a sua volta. É por intermédio da câmara subjetiva que assistimos as tentativas de comunicação frustadas de Gregor-inseto. A condição física que ele adquiriu será irreversível. Por isso que o uso da câmara subjetiva é fundamental para termos contato com o mundo interior de Gregor e como ele observa o mundo exterior. Sem a visão de Gregor nos fornece do seu mundo interior nada saberemos sobre como ele habita o novo corpo, como ele observa e sente seu convívio com a família. 
Quem era Gregor antes da metamorfose? Explicações necessárias para especular sobre os sentidos da fábula.
Ele era caixeiro-viajante. Não tinha nenhum satisfação em exercer essa função, que o obrigava constantes deslocamentos, abrigando-se em hotéis/pousadas de baixo custo, e não via a hora de largar tudo e conseguir outra função. No trabalho seus superiores o explorava, exigindo cada vez mais um maior volume de vendas. Como arrimo de família era responsável pelo sustento do pai, da mãe e da irmã. Além do sustento da família, tinha assumido uma dívida por empréstimos feito por seu pai com o proprietário da empresa em que trabalhava, em decorrência de fracassos na direção de negócios. Gregor mantinha em segredo o desejo de anunciar em breve o financiamento dos estudos de música de sua irmã, o que iria demandar mais esforço e dedicação na sua função. Devido as suas preocupações com o acúmulo de responsabilidades pelo sustento da família e constantes viagens, Gregor não mantinha nenhum relacionamento afetivo. Mesmo com todo empenho demonstrado, Gregor não recebia o devido reconhecimento de seus pais, embora declarava que sua  irmã lhe dedicava alguma atenção. Em resumo, a família vivia parasitadamente as custas do trabalho de Gregor.
A crítica aos valores morais na família.
Minha interpretação da fábula é que ela representa uma conversão do parasitado da família, de quem é explorado, para o suposto parasita. A passagem de quem se sacrifica para quem não pode ser mais sacrificado, de quem é reconhecido para quem perdeu o reconhecimento, do familiar para o não familiar, do manso e dedicado aos deveres em prol da família para o monstro, o deformado, que tem que ser admitido contra a vontade, passando a ser aceito como peso para a família, cujo interesse de seu desaparecimento passa a ser desejado. 
São três momentos que o filme apresenta. O primeiro é o espanto, o pavor: a metamorfose de Gregor na condição abjeta de inseto. Portanto, um acidente doloroso que impossibilita Gregor de ser como antes. Ele é despossuído de seu prestígio financeiro junto a família e do valor econômico e funcional da sua força de trabalho junto ao capital, que esperava dele ainda um maior esforço para pagamento da dívida que herdou de seu pai. O segundo é a constatação de que o acidente transforma Gregor de provedor em dependente, obrigando a família a sair do conforto de ser sustentada. Ele passará então a ser um estorvo. O terceiro momento é admissão pela família que Gregor não irá retornar a sua condição anterior, e por isso a eliminação é o melhor solução. 
Mas a hipocrisia que rege os valores morais da família de Gregor vai além de concluir pela solução final. É que essa solução não é tão simples. Ela tem que ser bem arquitetada sem parecer intencional, não pode ser praticada por nenhum membro da família. Pouco a pouco uma nova personagem vai assumindo a função acalentada, mas jamais declarada pela família de Gregor. Essa personagem não possui nenhuma consideração por ele. Pelo contrário, considera-o um animal nojento e asqueroso. Portanto, ela se encaixa perfeitamente na solução final. Kafka escreveu em sua novela apenas: a faxineira.
“A origem social de Gregor Samsa, a sua família, revelou-se como a força que o aniquilou” (Theodor Adorno – Prismen, Munique – 1977)
Abraço

Reinaldo

3 comentários:

  1. Além das duas adaptações para o cinema destacadas da obra de Franz Kafka, de Orson Welles e de Jan Nemec, sugestão de um outro diretor que levou para as telas o texto do autor tcheco.Trata-se do filme " Relações de Classe" ( Klassenverhältnisse;1984) de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet . Sobre o filme, vale a leitura do texto "Duas adaptações de Kafka para o cinema",de Marcelo Ikeda, disponível em http://www.sesc.com.br/wps/wcm/connect/sesc/site/palavra/recomendo/listadeeurecomendo/duas+adaptacoes+de+kafka+para+o+cinema

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  2. Isso Reinaldo, concordo. Ele quer fundamentalmente não ter mais importancia, não ser peça chave para ninguem. Agora, porque barata??!!!
    Não dava pra ser um gatinho mimoso não? rsss ganharia até afeto, imagine...

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  3. Olá Mageca ! Essa foi a forma que Kafka encontrou para demonstrar literariamente o sentido da metamorfose. Quando eu explicar você vai entender porque não dava para ser um gatinho mimoso ... rsrsrsrrs !!! valeu!

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