Indicação e apresentação do filme: Joaquim Ferreira
" Todos somos simpáticos, desde que ninguém nos ameace"( Jornalista Paulo Martins, em Terra em Transe)
Terra em Transe (1967), parecia um delírio há 50
anos. Agora pode ser visto como uma profecia do Brasil atual e revelou-se
premonitório.
Como no drama do
diretor baiano, as instituições se convulsionam: políticos de todos os
partidos, juízes, promotores e empresários se acusam entre si. Gritam
meias-verdades – rebatizadas de “pós-verdades” – em nome de um “povo” que
ignoram. Como se não bastasse, as esquerdas não chegam a um acordo sobre como
derrubar um governo que consideram “golpista”. Tanto no velho filme como no
Brasil de agora, os cidadãos acordam para um pesadelo cotidiano onde não veem
saída nos políticos, envolvidos em retórica lunática. Nos 51 anos de “Terra em Transe”, a ficção prefigura
a realidade. Situação que faz jus ao excêntrico Glauber, que sonhava em fazer
do Brasil uma potência econômica e cultural, nem que para isso fosse preciso atrair
políticos para viabilizar projetos. É dele a frase: “A História é feita pelo
povo e escrita pelo poder” — com a ajuda dos intelectuais, pode-se acrescentar
A trama de Terra
em Transe é uma alegoria política. Um texto que faz uso de elementos
históricos muito próprios do Brasil e da América Latina como um todo,
especialmente porque não se nega a mostrar as diferenças sócio-políticas, a
larga oferta de posturas ideológicas, o embate quase infantil entre povo e
poder, o uso da força militar ou do assassinato político para calar vozes
dissonantes, seja nas ruas, seja nas alas do pequeno e grande Congresso.
Através de todos
esses fatos observados no Terceiro Mundo, Glauber Rocha nos apresenta
a crônica de uma ascensão ao poder e de uma subsequente derrocada.
O herói de “Terra
em Transe” é o poeta e jornalista Paulo Martins, vivido por Jardel Filho,
especializado em trabalhar para políticos. Na fictícia república de Eldorado,
campanhas políticas são polarizadas e confusas como as que deram justificativa
ao golpe de 1964 e ao impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016. Dois
líderes populistas disputam a Presidência: o religioso Porfírio Diaz (Paulo
Autran) e o ex-sindicalista Felipe Vieira (José Lewgoy). Paulo é assessor de
Diaz, mas se enoja com falsas promessas e passa a apoiar o opositor. Erra de
novo. Como o rival, Vieira jura combater a fome e governar “para todos”. Mas
faz um pacto com políticos e empresários desonestos. Entre eles, Júlio Fontes
(Paulo Gracindo), o magnata da TV.
Paulo Martins, o
jornalista que assume a narração e o tom de quase letargia impresso no roteiro,
é o personagem de maior destaque do longa. É através dele que vemos os lados
opostos da moeda, o conservadorismo de Diaz, o populismo ineficiente de Vieira.
Com o sonho de ser poeta e falar sobre temas políticos, Martins é, na verdade,
um observador desgraçado dos fatos que ele julgava ter algum controle sobre.
Seu ego e talvez fé extrema nas mudanças sociais o fizeram-no apoiar e trair,
difamar e promover campanhas políticas e representantes que um dia desprezara.
Favores, dissimulações e ignorância nas vozes que supostamente deveriam lutar
contra o erro, contra a corrupção. A velha e constante hipocrisia de políticos
messiânicos e partidários cegos.
E aqui, o povo
não recebe a visão social e manipulada por promessas divinas, como vimos
em Deus e o Diabo na Terra do Sol. O contexto todo é ampliado para
situações que beiram ao constrangimento, mostrando a facilidade de qualquer um
obter apoio popular, independente do discurso que faça (por mais infame que
seja) e das situações que forjam nos Palácios do Governo.
O povo em Terra
em Transe não é apenas o faminto romeiro de Deus e o Diabo. Ele
deixa-se levar facilmente por qualquer promessa milagrosa e tendenciosamente
Fazendo uso de
uma estética experimental muito particular, Glauber Rocha intensifica a
sensação de transe no próprio público, que observa ente tiros de metralhadoras,
música e Villa Lobos, valsas famosas, óperas e jazz a entrega de simpatizantes
governistas à farra e aos comícios, tudo filmado através de uma perspectiva que
faz os atos parecerem grandes novidades, quando, na verdade, são a repetição de
algo bem antigo ou a revelação de uma situação que ocorria às escondidas há
bastante tempo. Algo que todos simplesmente ignoravam, fingiam não ver, diziam
não se importar. Toda a esfera pública é posta no jogo. De quem é… a quem
fabrica a notícia. Do empresário ao grevista. Dos sindicalistas aos arquétipos
femininos vistos nessa dança pseudo-democrática, cabendo tudo, da santa
revolucionária à puta alienada.
O longa exige uma
atenção enorme do espectador. Como a narrativa é quase toda contada em flashback e
esta, em ordem não-linear e não é difícil nos perdermos um pouco no início,
confundirmos nomes ou a localização dos personagens, seja em Alecrim, seja em
Eldorado. Aos poucos, porém, entendemos a intenção do diretor e o filme é
compreendido sem mais nenhum problema.
Contando com um grande
elenco (que infelizmente é prejudicado pela dublagem), Terra em Transe consegue
passar uma mensagem política forte e uma visão social que pode incomodar
bastante gente.
Lançado em meio à
ditadura militar, a obra chegou a ser proibida e sofreu cortes e diversas
solicitações de mudança pela censura, além de ter sido chamada de “fascista”
por Fernando Gabeira e outros intelectuais da época.
Um ciclo que mal
chega ao fim e já se funde a outro, ainda mais cruel que o anterior, vestido
com as roupas da moda e com palavras ou sistemas de salvação
político-econômicos, algumas faces supostamente inovadoras e muita demagogia,
fazendo da política a arte de botar uma terra inteira em estonteante transe.
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