terça-feira, 19 de junho de 2018

Os Fuzis(1964,Ruy Guerra)


Indicação ,apresentação do filme e texto : Bernardo Timm

"Um grupo de soldados é enviado ao nordeste do Brasil para impedir que cidadãos pobres saqueiem armazéns por causa da fome."
Essa é sinopse de "Os Fuzis" (1965), Ruy Guerra, cujo, junto de "Vidas Secas" e "Deus e o Diabo na Terra do Sol" constituem o Cinema Novo.
O filme é como a seca, entre os tons de branco e preto percebemos muito do branco, afirmando a terra do sol em uma vida seca. Digo que é como a seca pelo seu ritmo, começa bem devagar, passa a se agravar, e, de uma hora pr'outra chega em seu auge. Vale destacar a produção, com os cantos à voz pura (uma das melhores coisas no filme), e a famosa "uma câmera, uma ideia".
Diria eu que, o filme é sobre como vemos a esperança quando não precisamos dela. A narrativa do filme a circula, mas não narra por ela, não acompanhamos os males da seca, apenas relatos, vendo toda essa fé sendo inútil... Também sobre causas sem soluções, afinal, segundo esse filme, a esperança está morta, digo, a vaca está morta, na verdade são sinônimos, até quem tenta ajudar é morto. Inclusive os próprios soldados não estão lá para acabar com a seca.
Por que "Os Fuzis"?
-Pela idealização do fuzil por um dos soldados ser desbancada pelo Gaúcho, por cena.
-O fuzil simboliza autoridade e segurança, mas também a morte, por semântica.

Bernardo Timm

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Os Fuzis (1963)

Ruy Guerra chega ao Brasil em 1958. Moçambicano, vem após uma passagem pela Europa, onde estuda cinema no IDHEC. Um bicho político acima de tudo, chega com idéias de dirigir filmes e encontra a gênese do Cinema Novo em ebulição. Após a estréia bem sucedida, parte para a filmagem de um roteiro que havia escrito na Grécia, para ser filmado lá, sobre uma pequena vila, a qual está sendo ameaçada por uma matilha de lobos famintos que vai descendo das florestas que a cercam. Os habitantes não possuem armas de fogo, pois o momento histórico segue-se a uma revolução popular, e o povo está proibido de possuir armas. É chamado um destacamento do Exército para protegê-los. Uma vez lá, porém, os soldados entram em conflito com os moradores, e numa escalada, acabam por matar um deles. Escorraçados, mas também assustados, se retiram da vila, e quando a história chega ao fim, os lobos vão descendo das florestas em direção ao povo sem armas para se defender. Ruy decide adaptar o filme para o Nordeste brasileiro, e para isso conta com a ajuda inestimável do roteirista Miguel Torres, um grande amigo, que acaba falecendo num acidente de carro durante as pesquisas de locação para o filme.
A partir da história descrita acima, Ruy e Torres desenvolvem a idéia dos retirantes famintos que chegam a uma cidade. Paralelamente, chega um destacamento do exército chamado pelo grande produtor de alimentos local para proteger seu estoque e o transporte deste para a capital, receoso de um possível ataque dos migrantes. Os retirantes são liderados por um beato místico que prega a adoração a um boi santo que fará chover. A escolha do sertão como paisagem é emblemática do momento do cinema. A partir do pressuposto de buscar uma especificidade nacional, os cineastas procuram-na, num primeiro momento, no interior, e não nas cidades grandes, cosmopolitas por natureza. A paisagem imensa e árida do sertão fascina os diretores e artistas em geral. A descoberta e colocação do povo pobre e sofrido em primeiro plano surge como principal diferencial inicial, e isto está mais do que em qualquer lugar no sertão nordestino.
Ruy escolhe por mesclar uma linguagem entre o documental e o ficcional, embora como ele mesmo deixe claro, a fronteira entre os dois seja difícil de distinguir. O filme se dá em três diferentes registros: primeiro, os retirantes, mostrados de forma quase distante e não personalizada; depois, uma série de depoimentos com um registro muito próximo do documental, com personagens do local falando de acontecimentos passados e de seu ambiente; e, por último, os soldados, que são tratados como personagens individuais e destacadas. Ruy se alterna entre estes três elementos, que vão, na sua soma, adquirindo significado por um movimento de oposição e aproximação entre eles.
Neste estrutura de narrativa paralela, em blocos, o tratamento formal diferenciado adquire múltiplos significados. As cenas documentais (que como o diretor revela, só o são na aparência e na autenticidade da presença daquelas pessoas da região, mas que de fato são depoimentos passados a elas por ele mesmo) possuem uma duração longa, sempre em plano parado. Com isso, Ruy consegue duas camadas de significação diretas: primeiro, fala do estado de imobilidade natural daquelas pessoas, para quem aquela situação, e suas lendas e mitos já duram séculos. Segundo, consegue passar uma idéia de uma cultura principalmente oral, que passa adiante seus conhecimentos desta forma, na qual, portanto, o importante é ouvir.
Mais interessante ainda é o tratamento dado aos soldados. Como elementos estranhos ao local, tudo neles é diferenciado. Ao contrário de uma cultura oral, eles são retratados de forma muito mais visual, dinâmica, pois representam uma certa modernidade. Por isso, a câmera se aproxima em closes e se move o tempo todo. No entanto, não são cortes rápidos, e sim movimentos em plano-seqüência, que parecem indicar que eles precisam se adequar e sentir a passagem de tempo longo, típica do sertão.
É vital no cinema de Ruy Guerra compreender o plano-seqüência como elemento de distensão temporal e espacial. Temporal pois ele mostra os efeitos da passagem de tempo sobre os personagens, e o espectador. E espacial, pois ao se movimentar sem cortes por um local, ou ficar parado longamente, permitindo a visualização de grande profundidade, acaba por aumentar a percepção deste local. Vale dizer ainda que, segundo Ruy, é impossível não se pensar tempo em função de espaço e vice-versa. Ao usar o plano-seqüência, ele os unifica, como Picasso fazia ao pintar uma figura de frente e perfil ao mesmo tempo. Se houvesse o corte, mesmo que seguindo cuidadosamente o "raccord", haveria uma fragmentação de ponto de vista que, necessariamente, leva a uma fragmentação de tempo e espaço. Por isso, Os Fuzis, mesmo em seus momentos mais dinâmicos é pensado na estrutura dos planos-seqüência, muitas vezes com longos e elaborados movimentos que vão de um personagem ao outro, permitindo que a ação do primeiro seja digerida e leve à reação do segundo. Esta estrutura formal, além desta distensão rítmica-temporal, deixa entrever um grande rigor de composição, resultado do magnífico trabalho do outro estrangeiro radicado no Brasil, o diretor de fotografia argentino Ricardo Aronovich. A sofisticada formação teórica de Ruy Guerra e Aronovich tornam o trabalho visual de Os Fuzis algo bastante distinto da secura de um Vidas Secas, e houve os que criticassem o filme por seu excesso de beleza visual.
Mas esta crítica parece menor perto do trabalho de composição da história, na qual surge a figura de Gaúcho, um forasteiro que fará a intermediação entre os retirantes e os soldados. Enquanto os retirantes são retratados de forma coletiva, com seu sofrimento cercado por um imobilismo relacionado ao misticismo, e os soldados surgem como figuras ligadas ao mundo moderno e dinâmico, mas a serviço das ideologias mais anti-revolucionárias e opressoras do povo pelo povo, Gaúcho encontra-se num meio termo. Ele rejeita a "ordem e progresso" às custas do povo que os soldados representam, mas também não possui uma linha de ação contrária, nem uma ideologia formada. Nós vemos que ele mesmo utiliza o povo e suas necessidades em proveito próprio. Ao longo do filme, sua oposição aos soldados parece muito mais fruto de uma "picuinha" pessoal do que uma capacidade de enfrentamento de classes, até porque ambos pertencem à mesma classe. Quando finalmente sua revolta explode, não é mais que uma explosão pessoal, e por isso mesmo ineficaz contra os sistemas já estabelecidos.
Jean-Claude Bernardet, em seu Brasil em tempo de cinema, o enquadra numa série de personagens de filmes do período como exemplo de que, apesar do cinema brasileiro da época buscar tratar do povo, a solução dos problemas vinha sempre de elementos de fora das camadas populares. Isso, segundo Bernardet, advinha do fato de que os cineastas, membros da classe média, realizavam filmes para esta mesma classe, apenas utilizando o povo como personagem. Assim é que eles não conseguiam localizar neste povo os agentes de mudança. A solução de Ruy no filme, porém, indica uma compreensão deste mecanismo, já que pela morte de Gaúcho e pela inutilidade de suas ações num âmbito social, fica mostrada a inadequação deste caminho individualista na mudança das estruturas sociais. Talvez por vir de fora do Brasil, Ruy parece encontrar um distanciamento crítico nesta questão.
Quando lançado, o filme vence o Urso de Prata em Berlim, mas é cortado por seu produtor antes de estrear no Brasil. Ruy não assina então a versão lançada, e acaba se indispondo com outros realizadores do Cinema Novo por achar que alguns deles apoiaram o produtor nesta decisão. A crítica se divide em ferrenhos opositores e defensores entusiasmados. Sentindo-se mal-vindo, ele acaba por sair do Brasil novamente. Em 1977, acaba realizando A Queda, um raro caso de continuação no cinema brasileiro, um filme que encontra os personagens de Os Fuzis quase 15 anos depois, morando no Rio de Janeiro e envolvidos com as questões urbanas e operárias. Este filme teve 2 votos na contagem desta votação. Independente da recepção na época, com o tempo Os Fuzis tornou-se um marco do cinema nacional, prova disso é que esteja nesta lista, quase 40 anos após sua realização.

http://www.contracampo.com.br/27/fuzismatraga.htm

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