domingo, 30 de setembro de 2018

Terra em Transe ( 1967, Glauber Rocha)



Indicação e apresentação do filme: Joaquim Ferreira


" Todos somos simpáticos, desde que ninguém nos ameace"( Jornalista Paulo Martins, em Terra em Transe) 

Terra em Transe (1967), parecia um delírio há 50 anos. Agora pode ser visto como uma profecia do Brasil atual e revelou-se premonitório.
Como no drama do diretor baiano, as instituições se convulsionam: políticos de todos os partidos, juízes, promotores e empresários se acusam entre si. Gritam meias-verdades – rebatizadas de “pós-verdades” – em nome de um “povo” que ignoram. Como se não bastasse, as esquerdas não chegam a um acordo sobre como derrubar um governo que consideram “golpista”. Tanto no velho filme como no Brasil de agora, os cidadãos acordam para um pesadelo cotidiano onde não veem saída nos políticos, envolvidos em retórica lunática. Nos 51  anos de “Terra em Transe”, a ficção prefigura a realidade. Situação que faz jus ao excêntrico Glauber, que sonhava em fazer do Brasil uma potência econômica e cultural, nem que para isso fosse preciso atrair políticos para viabilizar projetos. É dele a frase: “A História é feita pelo povo e escrita pelo poder” — com a ajuda dos intelectuais, pode-se acrescentar
A trama de Terra em Transe é uma alegoria política. Um texto que faz uso de elementos históricos muito próprios do Brasil e da América Latina como um todo, especialmente porque não se nega a mostrar as diferenças sócio-políticas, a larga oferta de posturas ideológicas, o embate quase infantil entre povo e poder, o uso da força militar ou do assassinato político para calar vozes dissonantes, seja nas ruas, seja nas alas do pequeno e grande Congresso.
Através de todos esses fatos observados no Terceiro Mundo, Glauber Rocha nos apresenta a crônica de uma ascensão ao poder e de uma subsequente derrocada.
O herói de “Terra em Transe” é o poeta e jornalista Paulo Martins, vivido por Jardel Filho, especializado em trabalhar para políticos. Na fictícia república de Eldorado, campanhas políticas são polarizadas e confusas como as que deram justificativa ao golpe de 1964 e ao impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016. Dois líderes populistas disputam a Presidência: o religioso Porfírio Diaz (Paulo Autran) e o ex-sindicalista Felipe Vieira (José Lewgoy). Paulo é assessor de Diaz, mas se enoja com falsas promessas e passa a apoiar o opositor. Erra de novo. Como o rival, Vieira jura combater a fome e governar “para todos”. Mas faz um pacto com políticos e empresários desonestos. Entre eles, Júlio Fontes (Paulo Gracindo), o magnata da TV.
Paulo Martins, o jornalista que assume a narração e o tom de quase letargia impresso no roteiro, é o personagem de maior destaque do longa. É através dele que vemos os lados opostos da moeda, o conservadorismo de Diaz, o populismo ineficiente de Vieira. Com o sonho de ser poeta e falar sobre temas políticos, Martins é, na verdade, um observador desgraçado dos fatos que ele julgava ter algum controle sobre. Seu ego e talvez fé extrema nas mudanças sociais o fizeram-no apoiar e trair, difamar e promover campanhas políticas e representantes que um dia desprezara. Favores, dissimulações e ignorância nas vozes que supostamente deveriam lutar contra o erro, contra a corrupção. A velha e constante hipocrisia de políticos messiânicos e partidários cegos.
E aqui, o povo não recebe a visão social e manipulada por promessas divinas, como vimos em Deus e o Diabo na Terra do Sol. O contexto todo é ampliado para situações que beiram ao constrangimento, mostrando a facilidade de qualquer um obter apoio popular, independente do discurso que faça (por mais infame que seja) e das situações que forjam nos Palácios do Governo.
O povo em Terra em Transe não é apenas o faminto romeiro de Deus e o Diabo. Ele deixa-se levar facilmente por qualquer promessa milagrosa e tendenciosamente
Fazendo uso de uma estética experimental muito particular, Glauber Rocha intensifica a sensação de transe no próprio público, que observa ente tiros de metralhadoras, música e Villa Lobos, valsas famosas, óperas e jazz a entrega de simpatizantes governistas à farra e aos comícios, tudo filmado através de uma perspectiva que faz os atos parecerem grandes novidades, quando, na verdade, são a repetição de algo bem antigo ou a revelação de uma situação que ocorria às escondidas há bastante tempo. Algo que todos simplesmente ignoravam, fingiam não ver, diziam não se importar. Toda a esfera pública é posta no jogo. De quem é… a quem fabrica a notícia. Do empresário ao grevista. Dos sindicalistas aos arquétipos femininos vistos nessa dança pseudo-democrática, cabendo tudo, da santa revolucionária à puta alienada.
O longa exige uma atenção enorme do espectador. Como a narrativa é quase toda contada em flashback e esta, em ordem não-linear e não é difícil nos perdermos um pouco no início, confundirmos nomes ou a localização dos personagens, seja em Alecrim, seja em Eldorado. Aos poucos, porém, entendemos a intenção do diretor e o filme é compreendido sem mais nenhum problema.
Contando com um grande elenco (que infelizmente é prejudicado pela dublagem), Terra em Transe consegue passar uma mensagem política forte e uma visão social que pode incomodar bastante gente.
Lançado em meio à ditadura militar, a obra chegou a ser proibida e sofreu cortes e diversas solicitações de mudança pela censura, além de ter sido chamada de “fascista” por Fernando Gabeira e outros intelectuais da época.
Um ciclo que mal chega ao fim e já se funde a outro, ainda mais cruel que o anterior, vestido com as roupas da moda e com palavras ou sistemas de salvação político-econômicos, algumas faces supostamente inovadoras e muita demagogia, fazendo da política a arte de botar uma terra inteira em estonteante transe.

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Esse Obscuro Objeto do Desejo(1977,Luis Buñuel)



Indicação,apresentação do filme e texto : Reinaldo Silva

                                 Buñuel: o Surrealismo visita o Cinema
É de notório conhecimento a influência que alguns diretores de filmes tiveram com o movimento Surrealismo, surgido após a Primeira Guerra Mundial, cuja influência ultrapassou os campos da literatura e das artes plásticas, expandindo-se para o teatro, a escultura e o cinema. Mas, o que foi o Surrealismo, gestado na França na década de 1920? Qual a sua importância para o cinema até os dias de hoje? O que o movimento Surrealismo fez emergir?
O Surrealismo é uma proposta crítica ao pensamento racional constituído por padrões culturais que valorizam a consciência em detrimento à imaginação dos indivíduos, entendendo que sua crítica é baseada na psicanálise freudiana, principalmente na valorização do acaso e das fantasias. É, portanto, uma crítica sobre a nossa limitação em acessar uma forma de pensamento que possa ir além do que observamos e aprendemos a chamar realidade. Vou tentar expor como Buñuel aplica a técnica do Surrealismo no filme. Vamos imaginar que em uma determinada cena em que dois personagens aparecem dialogando, ocorre um barulho e em seguida um rato preso na ratoeira, e logo em seguida o diálogo é retomado. Nossa consciência estava direcionada para cena e sofre um abalo. Na maioria das vezes isso sequer é percebido pela maioria dos espectadores. Somente revendo o filme ou por intermédio de comentários e leitura de textos complementares, somos despertados para o fato. No transcurso do filme várias cenas semelhantes irão surgir com a inserção de elementos distintos irão aparecer para questionar a nossa consciência sobre o real sentido do que iremos ver.
Existe também uma crítica política e social do Surrealismo direcionada a noção que ficou conhecida como “racionalidade instrumental”. Trata-se do uso humano da razão ocidental em tecnologia de extermínio, como ocorreu Primeira Guerra Mundial e para submissão e exploração das nações dependentes. Em síntese, o Surrealismo é um movimento cultural que critica o modo de produção capitalista (uma visão do marxismo da época) tanto no que ele apresenta como padrão de consciência para aquisição e expressão da imaginação dos indivíduos, quanto à incapacidade de promover a igualdade, liberdade e fraternidade (palavras de ordem da Revolução Francesa) entre as nações e indivíduos.
No Brasil as noções surrealistas começaram aparecer entre 1920 e 1930 por intermédio do Movimento Modernista. O escritor Oswald de Andrade, juntamente com Tarsila do Amaral, Maria Martins, Cícero Dias e Ismael Nery são conhecidos como os representantes que obtiveram maior visibilidade social neste período.
Desde a década de 1980 revi diversas vezes os filmes de Buñuel, principalmente este que iremos assistir. Mas é incansável, melhor ainda, fascinante !!!!


PROVOCAÇÕES
                 Esse Obscuro Objeto do Desejo
Como você interpreta a presença durante a narrativa do filme de um rato preso na ratoeira, uma mosca morta num copo de bebida, sacos de panos com conteúdo não identificado e atos terroristas praticados por um grupo que tem em sua legenda o nome de Jesus Cristo?
As provocações acima sugeridas estão inseridas num contexto apresentado sob a forma de um “duelo” entre um homem idoso que deseja sexualmente uma mulher jovem, cabendo a cada um dos personagens fazer uso do oportunismo, da sedução, da manipulação, do ciúme e do sadomasoquismo, como elementos estratégicos para dominação.


Reinaldo  Silva