sábado, 20 de agosto de 2022

Clara Sola ( Nathalie Álvarez Mesén;2021)






 IMPRESSÕES SOBRE O FILME CLARA SOLA:

No texto a seguir deixo algumas impressões sobre o filme.
No interior da Costa Rica, Clara, uma mulher retraída de 40 anos, acredita ter uma ligação especial com Deus. Como “curandeira”, sustenta uma família e uma aldeia, enquanto encontra consolo na sua relação com o mundo natural. Gradativamente, Clara experimenta um despertar sexual e místico para se libertar das repressivas convenções religiosas e sociais que dominaram sua vida.
Filme de 2021, “Clara Sola” trata em primeira analise, do impacto da religião sobre a sexualidade. Mas como o cinema muitas vezes trabalha com camadas de significados, algumas implícitas, outras obscuras, esse texto é uma contribuição da minha percepção sobre a narrativa conduzida pela direção segura da sueco-costarriquenha Nathalie Álvarez Mesén. Questões cheias de subjetividades que no mundo atual precisam de consistência para que se tornem realidades concretas e um pouco mais definidas, sobretudo quando religião e gênero se misturam e a primeira acaba sobrepujando a segunda.
Dirigindo seu primeiro longa-metragem, a diretora explora a estética do realismo mágico, muito presente no cinema latino-americano, junto a uma realidade patriarcal e misógina tão atual.
Clara é tratada pela família, especialmente por sua mãe, como desprovida de importância social. A família limita sua circulação, seus atos e por extensão, sua vida. Esse descompasso de uma mulher agindo infantilmente é mostrado no filme em nome da religião Discordam da sua aparência, implicam com suas escolhas, regulam seus passos, infantilizam-na. O problema físico de Clara é o primeiro e mais significativo exemplo do conflito religião X ciência. A divindade atribuída a Clara conforma e dificulta sua existência: ela nasceu com a coluna torta por vontade divina e não precisa operar , segundo Fresia, a mãe de Clara . Desprezando a operação corretiva, Fresia mostra sua ascendência na vida da filha ao  controlar e distribuir    as bênçãos, os dons e as curas  da consagrada  Clara para a comunidade.
 Importante destacar também que a realidade patriarcal que o filme mostra é explorada sem a presença física ou cênica da figura masculina que reitere essa prática autoritária. O universo simbólico da realidade de Clara corresponde a uma atmosfera carregada desses traços patriarcais e misóginos. Ponto para a diretora, pois expos, a meu ver, a internalização do machismo na própria mulher. O papel masculino de destaque no filme é o de Santiago interpretado por Daniel Castañeda que não conduz seu personagem com uma prática misógina por excelência na sua relação com Clara.
Na conversa após o filme, foi inferido que o comportamento de Clara seria um comportamento autista. É um analise válida. Externamente Clara tem um comportamento autista, mas este não seria uma analogia com a alienação que a religião produz? O espectro autista de Clara não poderia ser a demonstração da “graça”, da “divindade”, da quase possessão, do comportamento quase hagiográfico da protagonista? São as possibilidades de um filme com tantas camadas de significados.
E nesse caso, a personagem de Clara traz para a tela uma das categorias mais básicas da sociologia: a relação natureza e sociedade. Desde a organização das primeiras sociedades e o aparecimento das primeiras civilizações, observa-se a existência de uma intensa e nem sempre equilibrada relação entre sociedade e natureza.
E Clara tenta, a seu modo, reequilibrar essa relação, desequilibrando a sociedade a favor da natureza. Se a sociedade oprime, se relações estão desgastadas, à volta a natureza é necessária perceptível nas atitudes de Clara. Ela, sozinha (daí o complemento do titulo “Sola”) parte para uma jornada de conexão com o meio natural, explorada muito bem pela direção de fotografia e como base na bela paisagem da Costa Rica. Nesse caso, importante destacar a presença constante de sua companheira a égua Yuka. A figura do cavalo para algumas  análises psicanalíticas representa a conexão entre os mundos consciente e inconsciente, físico e mental. A rigor a figura do cavalo, é o motor natural para justificar a própria opção de Clara, que é o desenvolvimento pessoal e emocional. É uma forma de ordenar o processo de individuação e  transformação. A égua Yuka representa o próprio ser livre, indócil, com instintos autônomos de vida e prazer que é o que Clara almeja. Por isso a tensão comportamental de Clara quando a égua é colocada a venda por sua mãe.
Neste contexto, a recorrência constante aos quatro elementos naturais, agua, terra, fogo e ar  destacam as mudanças de Clara.
A analogia com os terremotos e o prazer sexual de Clara, o seu , digamos assim, “rebatismo” com Santiago no rio e especialmente a cena que Clara, derrubando uma castiçal e provocando a queima da imagem da Virgem Maria e da sua própria casa, marco do seu abandono da religião junto a cena do “ rebatismo”. Nesta cena, uma das mais simbólicas do filme o movimento de   Clara é o  “ para fora e para outra religião” ,  ao contrário do ritual de iniciação  do batismo presente nas religiões estruturadas.
E assim na sua inflexão, a protagonista busca uma religião da natureza, uma religião primitiva, que é a crença de que a natureza e o mundo natural são uma personificação de divindades, sacralidades ou poder espiritual. Não percebi um esvaziamento do sentimento religioso no filme e sim uma alternativa a práticas religiosas hierarquizadas, monoteístas, salvacionistas e, sobretudo, fundamentalistas. Assim, Clara abandonaria uma religião que no caso do filme é a religião católica.
É uma narrativa sem sentimentalismo, pieguice ou “final  feliz” . Contribui muito para a força dramática do filme a técnica utilizada pela diretora fechando nos quadros as expressões de Clara, vivida pela atriz Wendy Chinchilla Araya, A propósito, Wendy, no  seu primeiro papel de interpretação no cinema, ganhou o prêmio de  melhor atriz na  Mostra Internacional de Cinema em São Paulo em 2021, evento que também premiou Clara Sola   como melhor filme .
A religião, integrada  a outras dimensões do conhecimento ,  ainda é uma importante forma de compreensão da sociedade para o conhecimento  integral do homem . A  religião tem por sua natureza o  duplo da religião, alienação e libertação que  é tênue. Assim seu problema mais recorrente na atualidade  é quando o fundamentalismo manifesta-se   e tenta regular e ordenar  a sociedade. Clara pende para a primeira optando pela sua libertação individual.

Joaquim Ferreira
 
 
 

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Cão Danado (Akira Kurosawa;1954)


 Indicação, apresentação do filme e texto :Fábio Martins.

Cão Danado (Nora Inu) — Japão, 1949;Direção: Akira Kurosawa
Roteiro: Ryûzô Kikushima e Akira Kurosawa; 
Elenco: Toshirô Mifune, Takashi Shimura, Keiko Awaji
Duração: 122 min.

Um jovem policial, Murukami (Toshirô Mifune), tem sua pistola furtada quando estava em um ônibus lotado. Humilhado e envergonhado, parte obsessivamente na tentativa de recuperar sua arma. O filme remete a um drama policial noir e guarda paralelo com Ladrões de Bicicleta de Vitorio de Sica, de 1948. Mas o roteiro volta-se para o aprofundamento psicológico das personagens. Uma sequência famosa e sem palavras, que dura mais de oito minutos, mostra o detetive disfarçado como um veterano empobrecido, vagando pelas ruas à procura do ladrão de sua arma.
Destacam-se no filme a fotografia e a direção de arte, que logram transmitir uma forte sensação de calor ao espectador, pois o drama se passa em dias insuportavelmente quentes, contando com uma interpretação claustrofóbica que amplia sua dramaticidade. Os atores principais são os mesmos de o Anjo Embriagado e Takashi Shimura ganhou o prêmio de melhor ator no Mainichi Eiga Concours de 1950, que conferiu também ao filme os prêmios de melhor montagem (Fumio Hayasaka), melhor fotografia (Asakazu Nakai) emelhor direção de arte (So Matsuyama). Adaptado de um romance não publicado de Kurosawa, com estilo de um de seus escritores favoritos, Georges Simenon, foi a primeira colaboração do diretor com o roteirista Ryuzo Kikushima, que mais tarde o ajudaria a escrever os roteiros de outros oitofilmes. Trata-se de uma história de detetive sem tiroteios, caçadas e triunfo inconteste do mocinho. O ponto focal do argumento é a obrigação moral e neurótica do protagonista em recuperar sua arma roubada, movido mais pela honra e sentimento de culpa, pois a arma passa a ser utilizada no cometimento de crimes. Mas, a passionalidade do jovem policial não o deixa agir racionalmente, até que um detetive mais experiente e perspicaz, Sato(Takashi Shimura), o ajuda a rastrear o ladrão. 
Cão Danado, embora gire em torno do furto de uma arma, revela um pano de fundo socialque torna esse fato parecer pouco relevante em vista dos problemas muito maiores que são enfrentados pela sociedade. Se o policial é um profissional de grande importância para a sociedade, é também vítima dessa mesma sociedade, mas não só ele, pois o ladrão é levado ao mundo do crime pelo desespero na luta pela sobrevivência em uma sociedade desigual. Esse olhar para a natureza humana será marcante na obra de Kurosawa.