domingo, 2 de outubro de 2016

Bagdad Café ( Percy Adlon,1987)

























Indicação do filme e apresentação: Maria Garcia
Textos: Maria Garcia , Reinaldo Silva e Filippi Fernandes

É a partir do olhar lançado pelo cineasta que vamos construindo comentários, colocando cores particulares, estabelecendo ressonâncias, revitalizando sentimentos, redescobrindo histórias fixadas na memória. Tecendo criativamente essa sutil teia. Teia da vida, manifestação da mágica de tecer sonhos, nos remete a lembrança de que somos nós que criamos a realidade. 
Por que Bagdad Café?  Porque é poético, sutil, delicado...Com uma composição fotográfica muito elaborada. De uma linguagem pictórica marcante, onde as cores falam...Com tomadas de cena e cortes que alteram a realidade. Muito bem costurado com o roteiro. De uma narrativa crescente e envolvente. 
Um filme que constrói muito bem a dialética entre os opostos :Simples e profundo, drama e comédia, aridez e sutileza...Duas realidades opostas que vão se unindo aos poucos, contrastes que surgirem identificações. 
Passando por cima de uma possível crítica que uma mulher branca tenha o poder de organizar a vida de uma mulher negra. Jasmin e Brenda se completam. E isso vai se desenhando em uma história de abandono e recomeço. "São dois pontos de luz   no crepúsculo "
Um filme feminino. Um feminino que se revela aos poucos, que floresce. Nutre, acolhe, recria...De uma sexualidade natural e delicada como flor. 
A canção tema I'm Calling You de Bod Telson, cantada por Javetta Stell emociona com sua voz arrastada abrindo caminho no deserto. Nos nossos desertos. No que arde. Nosso interno fervendo nos impulsionando para ir. Seguir adiante em busca de um Oasis,  de uma noite calma, de um descanso no orvalho da noite.
Um filme que fala da transformação através do encontro. Do encontro evolutivo capaz de potencializar nossos dons , nossa força, nossa alegria. Alegria é um bom indicativo! Lida com o arquétipo da transformação presente nas metáforas. Como nos nomes Jasmin o que jas em mim e Brenda metamorfose, corvo fêmea. Quando o poder de um arquétipo é ativado pode ocorrer interferência na forma, a realidade se altera. A mágica acontece. E para terminar gostaria de reforçar alguns versos da canção principal. 
Eu estou te chamando 
Você não está me ouvindo?
Eu estou te chamando...
Cheguei mais perto
Doce liberdade

(Maria Garcia)

A Vida que vale a pena ser vivida(*)
Por Reinaldo Silva
                  Entendo que o filme Bagdá Café transmite um aprendizado que raramente percebemos: somos matérias em estado de transformação. Os Encontros fazem parte de nossa matéria. Encontros alegres e tristes com o mundo. Amizades, Amores, Sofrimentos, Perdas, Cumplicidades etc. Acontecimentos inéditos e transformadores, uns fortalecem, outros apequenam as nossas potências. Não passamos pela vida sem esses encontros.
Brenda e Jasmim, personagens centrais do filme vão ter um Encontro. Dois corpos tristes irão se transformar em dois corpos alegres. 
Caro(a) leitor(a) é um enorme desafio escrever um comentário sobre o filme, devido a riqueza e diversificação dos detalhes.
O diretor esbanja talento, a câmara passeia e congela fotos em quadros, que poderiam fazer parte de uma exposição numa galeria. Seu mérito foi beber na fonte dos grandes diretores. E o que escrever sobre os atores? Cenário? E da música tema do filme? E, ainda, sobre a homenagem, que o diretor faz quase no final a um gênero de filme que raramente é produzido pelos grandes estúdios cinematográficos? Refiro-me ao filme musical. Lembra do filme Dançando na Chuva?
Portanto, para escrever este comentário escolhi a Amizade como tema central do filme.
Faço uma conexão dessa escolha a partir da cena em que a carga emocional da furiosa personagem Brenda chega ao ápice do ressentimento e da inveja, numa calorosa bronca aos seus filhos, retirando do colo de Jasmin o seu neto. Diz Brenda a Jasmim, ao fechar a porta do apartamento:
Vá brincar com seus filhos!!!
Responde Jasmin: Eu não tenho filhos!
Momento decisivo: a porta fica fechada por alguns segundos e abre-se novamente. Brenda não é mais a mesma!!! A resposta de Jasmim mudou Brenda. Seu rosto, seus olhos, enfim toda a sua fisionomia muda segurando o seu neto no colo. O que aconteceu a Brenda?
Para entender o que ocorreu com a Brenda irei levar em conta o seguinte princípio: o instinto de maternidade. É esse instinto que aflora no momento nesta cena.
Instinto que concilia Brenda e Jasmim.
Algumas espécies de animais possuem esse instinto. Em mais de 2500 anos, a cultura judaico-cristã criou dispositivos em leis e costumes para manutenção e aprimoramento deste instinto.
A maternidade é um elo que abranda ou dissolve as diferenças entre as mulheres. É um fator valorativo e compartilhado em conversas, experiências, segredos e preocupações cotidianas.
Entendemos por “moral do sacrifício feminino” todos os empreendimentos feitos pela mulher para garantir a vida de sua cria.
Em minha experiência pessoal constatei por inúmeras vezes, que para muitas mulheres mães, o fato da mulher não ser mãe ou não querer ser mãe, é um fator determinante de “infelicidade”(v. nota 1 abaixo).
Volto à cena do filme.
O que mudou em Brenda?
Dei a entender acima que o ato de Brenda fechar e abrir a porta após ouvir a resposta de Jasmim é um divisor de águas entre “duas Brendas”.
A “primeira Brenda” vivia num mundo inóspito, com uma carga de ódio sustentado por gritos e agressões.
Porém, Brenda teve um Encontro com a Amizade. Um Encontro inédito!!
Na vida de Brenda o que não falta eram Encontros tristes, que a colocava “para baixo”.
A “segunda Brenda” que surge ao abrir a porta, acolhe a carência de Jasmim e passa a entender todas as suas atitudes anteriores, torna-se vulnerável. Em lugar das atitudes ácidas, Brenda desculpa-se, confidencia suas preocupações, seus olhos abandonam a tensão agressiva e no seu rosto emerge um acolhimento, um entendimento surpreendente para nós que assistimos a uma trajetória marcada pela hostilidade e aversão a todo tipo de envolvimento emocional.
Acredito caro(a) leitor(a) que os Encontros que fazemos no mundo  podem dar ensejo a escolha de uma vida que vale a pena ser vivida. Na vida o definitivo é mera ilusão. Não existem fórmulas prontas e nem percursos sem obstáculos.
“Tudo bem meu caro Reinaldo, mas imagine se eu vou pensar desta forma quando estiver em pleno gozo???!!!”
Mas caro(a) leitor(a) não quero cortar o seu barato! Não quero interromper o seu gozo. Lembro apenas que não regemos os acontecimentos com a nossa treinada batuta (consciência).
E é justamente isso que Jasmim e Brenda vão aprender com a vida no momento em que tudo parecia conspirar para prolongar a alegria deste Encontro. Um Encontro triste (com a lei identificada no xerife) ofusca e rompe o prolongamento da fórmula “pra toda vida”. Penso que a Angústia é inerente a nossa condição de humano. Somos acossados por um pensamento: aquele que organiza um futuro ilustrado por nossa racionalidade. É por isso que são insustentáveis as teorias sobre a liberdade de escolha (livre arbítrio). Jasmim sabe que Brenda irá concordar com o pedido de casamento que lhe foi proposto pelo pintor que descobre o seu inibido talento de modelo. Pintor cúmplice da continuidade da Amizade entre elas.

Reinaldo Silva

(*) Esse é o título de um dos livros de Clóvis Barros Filho, filósofo e professor da ECA – USP.
Nota 1: Essa moral sobre a maternidade vem sofrendo grandes transformações ao longo da história das sociedades ocidentais em decorrência de fatores econômicos, políticos e científicos na área da biologia. 

Da série "A provação da luz": Bagdad Café de Percy Adlon
Por Filippi Fernandes

Desajustes em pulso. Debaixo de um mesmo teto, duas bocas tracejam por uma mesma diretriz. A relação, entretanto, não é das mais serenas. O deserto ao redor é imenso e vazio, apesar da sequência indicar uma intimidade pautada em contrastes muito jocosos em torno de objetos-parafernálias que não funcionam. Ouve-se por repetidas vezes a palavra “Disneylândia” ser pronunciada, mas o ruído é enorme para que faça qualquer efeito. Algo está faltando ali e o convívio tem a contundência dos fracassos. Desengonçada, a imagem encrespa-se de tão chacoalhada, restando, por fim, a figura de uma retirante em sua humildade silenciosa, que prossegue, apesar do peso, apesar do calor, apesar da distância.. A câmera tenta captar esse instante de partida, num slow-motion peculiar e até perverso de tão cerimonioso. O carro sexista dele, de proporções espalhafatosas, passa adiante e ainda zomba derrapando o pneu na areia, bem debaixo do ouvido dela, que nada faz senão avançar. Escorre suor pelo rosto sob um céu de azul que remonta aos versos caeirianos:
"Um céu de azul, um pouco baço, umas nuvens brancas no horizonte, 
Com um retoque de sujo embaixo como se viesse negro depois. 
Isto é o que hoje é, 
E, como hoje por enquanto é tudo, isto é tudo. 
Quem sabe se eu estarei morto depois de amanhã?" 
As pernas balançam, o coração pulsa e ela está novamente só, a empurrar sisificamente a mala pela enorme extensão da estrada asfaltada. A cabeça é baixa, mas o peito exorta coragem. À distância consegue perceber no azul cerúleo dois espaços concêntricos de nuvens, como se…dois olhos fossem. Seria Deus?
Uma caminhonete antiga de cor bege para a meio caminho. Um homem amulatado pergunta se ela não gostaria de uma carona. Ela com muita dificuldade agradece a generosidade e prefere prosseguir viagem por si só, com suas próprias pernas, para onde o destino traçar. Na caçamba, vê-se a garrafa de café também bege mais claro que o marido dela soube descartar da memória. No meio da garrafa o rótulo com o nome da cidade de onde vieram. Nome alemão. O carro parte.
A caminhonete estaciona próximo a um bar que fica localizado perto de um posto de gasolina desativado, no meio da estrada. O local é rústico, feito de madeira e se chama “Bagdad Café”, pelo que o letreiro na fachada do estabelecimento aponta. Ele caminha para o bar, segurando a garrafa de café. No interior do bar, um rapaz estuda piano. O bar está completamente vazio. O barman, naquele momento, ocupa o tempo inserindo agulha por agulha num frasco de vidro. Talvez fosse um método encontrado para passar o dia mais depressa. O homem amulatado mostra o seu novo achado. Diz que encontrou na beira da estrada e, melhor ainda, com café. Comenta acerca da máquina de café ainda à procura de conserto e a importância providencial daquela garrafa térmica, para os dias que se seguiriam. 
O dia torna a passar como as pás de um ventilador em rotação lenta. O mulato sai, caminha sem rumo. Percebe então subitamente um carro saindo da estrada e indo em sua direção. Consegue se esquivar por um triz. O louco sai do carro e segue em direção ao bar. O mulato o segue. No bar, tenta se comunicar com o barman de maneira agitada e pouco útil. Algumas palavras saem desconexas de sua boca, não sem a ajuda de uma mímica gestual. Raul, em Limite,  perguntando por um homem alto e magro. Inútil, mais uma vez inútil. Ele pede então pelo chopp, mas não há chopp ali. Pede pelo café, mas não há café ali. Lembra então da garrafa de café e o serve. O estrangeiro louco se distrai com algo e não percebe a sua garrafa ali. Bebe o café com a mesma pressa de sempre e, por fim, agradece mostrando aos demais um punhado de pó de café. É o que pode deixar como agradecimento. Mostra um modo tosco de aproveitá-lo: levando-o até o nariz e cheirando como quem cheira rapé. E sai. Eles não entendem aquele costume e, como os índios diante da chegada dos europeus, põem-se a imitar a fim de sentir mais de perto aquela estranheza.  
A seguir entra uma mulher magra e amargurada. Os cabelos despenteados, a pose de quem já se cansou da vida. Chega criticando em voz alta o homem amulatado por não ter consertado a cafeteira, por X Y Z. Anda de um canto a outro. Grita ao rapaz que acaba de arriscar alguma partitura de Bach. “Essa música parece máquina de costura!”, diz. E o silêncio se instaura, na estranheza que lhe cabe. Os rostos fechados, o tédio engravatado.
Entra no bar um senhor que tem um lenço vermelho na cabeça, cabelos brancos, sorriso definido. Oferecem a ele o café. Ele arrisca e um gole basta para cuspir o café, querer beber água da bica, passar mal, com todo o exagero expressivo que lhe é facultado pela idade.
Descobre-se que a mulher azeda é a dona do estabelecimento. Mas ela não está mais no bar. Ela foi discutir no lado de fora com o homem amulatado, que agora se revela como sendo seu marido, a quem recebe ordens para que sejam cumpridas. Vê-se que está alterada pela forma como se movimenta, irritadiça, com a desarmonia de cada coisa. Chega a jogar algumas latas amassadas que o vento trouxe até seus pés. Mas a violência que vai, também volta. E tanto que quando a caminhonete parte, desata a chorar lágrimas exaustas, num canto remoto de si. Tudo parece inutilmente condenado a se repetir. “A lágrima clara sobre a pele escura”, como naquela bela canção de Caetano Veloso. 
Raia mais um dia. No limbo da amargura, a mulher desgrenhada termina por surpreender-se com uma mulher que pergunta, com alguma dificuldade, onde fica a recepção.
 -  Por ali, diz de maneira arrastada, com a mão. 
Empurrando a bagagem com a perna, adentra o recinto bagunçado. A mulher que acabara de recebê-la na porta, troca a guarda consigo mesma e, se dirigindo à mesa, adota um ar mais austero:
- em que posso ajudá-la?
A cliente seleciona a dedo as palavras, como se estivesse preenchendo um caça-palavra. Emperra aqui e ali,mas a mensagem é clara: quer alugar um quarto.
- para quantas pessoas?
- uma…
As reticências dela a surpreende mais uma vez. “Uma gringa num motel de beira de estrada?”
-por quanto tempo? — pergunta com os olhos mais abertos.
E já nem precisa responder: seu cansaço tem a força da indeterminação necessária. “Não está vendo que ela está por inteira ali, tirando umas feriazinhas?”, é a pergunta velada daquele instante.
Claro que a mulher despenteada vira aquela cena num filme policial hollywoodiano. E é claro que aquele olhar de pura desconfiança de cima a baixo é intimidador para a mulher que acaba de chegar. A sensação dela é a mesma dos colonizadores quando chegaram à América.
- Assine aqui, por gentileza.
E se debruça inteiramente sobre o papel, deixando uma assinatura enorme de muitas consoantes repetidas ao mesmo tempo e em grande pompa.
- Adiante o pagamento, por favor — e estica a mão, a fim de novas surpresas. Quem sabe abra a mala repleta de dinheiro sujo, e possa tirar dali o pouco que precisa para a hospedagem? Mas não: ela prefere pagar em cheque europeu.
- O centro da cidade…qual direção?
- Aqui é o centro da cidade.
A estrangeira silencia. Os olhos sem saber o que dizer. Recebe então a chave do quarto.
- Queria falar…com a gerente por aqui…
-Eu sou a gerente disso aqui — e quase dá um murro na mesa. O olhar mais fixo do que prego na parede. E continua:
- E não há pessoas para carregar suas bagagens.
A estrangeira recebe cada frase como uma bagagem a mais. Se despede então em direção ao quarto. A mulher despenteada chega a abrir a janela lateral para melhor examiná-la à distância. “Não é possível que isso esteja acontecendo por aqui”, diz com os pensamentos, pensamentos estes que a estrangeira repete ao chegar no quarto e se deparar com uma pintura de dois círculos concêntricos, similares aqueles que acabara de ver ao caminhar pelo deserto. Talvez esteja no caminho certo.
Voltando ao bar, esbarra com a filha que está de saída com o novo namorado: um rapaz barbudo que dirige uma Harley Davidson. Sim, um qualquer. Era só o que faltava: sua filha sendo mais uma no mundo. Esbraveja então contra a filha namoradeira, contra o filho vagabundo tocador compulsivo de Bach e, sobretudo, contra isso que eles chamam de vida e que não serve para mudar a situação em que se encontra. Por isso não há sinal de golas ou de botão ou qualquer coisa de postura erguida. É como se sua cabeça estivesse constantemente em posição de aríete.
O vidro semi-amarelado pelo tempo, o céu azuláceo e o revestimento da parede marrom não significando nada, além de uma mesma miséria. A estrangeira se aproxima, em silêncio. Abre a porta e senta. Todos a olham. O silêncio é mortal. Pede um café. O barman toma a liberdade de servir o mesmo café horroroso. Ela bebe e nada reclama. A sua preocupação é de outra ordem.
No quarto ao lado ao seu, uma mulher magra e repleta de adornos chinfrins, parece entediada com seu cigarro.
Nada acontece. Nada. Nadinha.
O tempo torna a passar como nos filmes de western americano. Quem sabe no mesmo dia ou vários dias após o ocorrido, a dona presta-se a limpar o quarto da suspeita. Ao entrar, percebe uma coisa diferente; o bastante para que unisse os palitinhos e arregaçasse as mangas da imaginação: viu roupas masculinas penduradas. Sua imaginação correu mais rápido que pôde tal qual houvesse visto um corpo crucificado. Imediatamente larga o aspirador e corre para o telefone preto. Chama o xerife local que em alguns minutos (ou, quem sabe, algumas horas) chega no local. 
Naquele ínterim, a estranha está no quarto, utilizando o aspirador para limpar aquilo que não fora limpo pela dona. Para suportar o calor, estava à vontade. Assim que bateu na porta, pede licença para se aprontar e vai logo de bandeja naquele ritual de tira gostos. Tintim por tintim e nada de errado foi encontrado. O xerife que, com os longos cabelos, mais parece um índio apache, pediu desculpas e se mandou. A dona sentiu-se indefesa perante uma coisa que já estava mais do que evidente. Teve de pedir desculpas ainda que não estivesse completamente convicta se se tratava de algo ridículo ou não. O fato é que o xerife se interessara sim na suspeita, mas não pelo perigo que ela representava ou poderia representar e tampouco pela sua pessoa. Ele estava de olho nas variadas roupas que trazia na bagagem. Roupas femininas como nunca havia experimentado…
Certa vez a estrangeira quis ser generosa para com aquela que a hospedava e assim aproveitou a posse do aspirador de pó e a ausência momentânea da proprietária para pôr em ordem o local: limpou e arrumou o que julgava necessário e até no telhado conseguiu varrer pó. Quando esta chega, assiste a um movimento de renovação que a desagrada profundamente. Vivia um paradoxo que a estrangeira em generosidade espontânea não conseguia entender: repudiava a situação em que vivia, apesar de sentir-se na obrigação de manter a ordem no mesmo lugar, no mesmo desmazelo. A impressão foi como se estivesse lhe roubando o lugar, apagando a uma existência de muitos anos. E por mais que tentasse negar aquilo com penas de pavão, era o que saltava aos olhos. Solta desaforos até ficar sem fôlego.
A etapa final deste processo veio quando soube que havia tido a chance de se aproximar de seus filhos a ponto de levá-los para o quarto e deixá-los à vontade para tocar Bach com um teclado imaginário e vestir suas roupas inusitadas, com tamanha naturalidade. Todos brincavam no quarto daquela estrangeira, criminosa, como se… a amassem maternalmente. Quis fechar então a porta com força, para que pudesse pensar logo no despejo daquelas aporrinhações. Mas justo naquele momento ela pôde se ver por inteira. É o momento em que a porta deixa de se fechar, momento em que os outros cadeados se estalam e caem no chão. E neste vão deixado, germina o primeiro botão. O primeiro após uma década ou mais.
Carrosséis, chaminés, tertúlias, girassóis, de uma só vez. Pela magia, a mortandade vira espaço de aprendizagem e diversão. O pó vira pé. O local lota, a lotação loca em rota de todos os dias. Fartura de palavras e dizeres. Um show de atrações e descobertas desnudas. Tem pra todos aquele bar tão balde a transbordar. Amor por amor, amor por amor, amor por amor. A cegonha, o fruto e o ar de balão a inflar para cima e adiante, para o norte sem nó e por inteiro. Esplendor. Até o marido da proprietária retorna ao perceber aqueles fogos de artifício. Conciliação. A estrangeira e o homem com faixa na cabeça, a namorar alguns atrevimentos em arte. Desnudar.
Por fim, ela precisa partir. Todos pedem que fiquem,mas ela precisa bater o ponto de seu passado fichado e documentado. Aquilo que acabou de demonstrar é imemorial, não tem nome ou dimensão.
Ela parte e deixa lágrima em quem permanece. Apesar da aprendizagem ter sido boa, sem ela a coisa não continua, justamente porque através dela há uma espécie de magia que atrai a atenção e a estima, como o terceiro movimento de Vladimir Martynov:


Os negócios desandam e desaceleram. A mesma poeira, a mesma… E ela retorna, na mesma linha de horizonte que antes, com a mesma inteireza debaixo dos braços. Tempos de disponibilidade,de intimidade. Um ponto aqui e outro acolá que unidos se tornam reta, plenitude e expansão.

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