quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Joaquim (2018,Marcelo Gomes)


Indicação, apresentação do filme e texto: Joaquim Ferreira


Algo deve mudar para que tudo continue como está *

No processo histórico do  Brasil , a historiografia construiu manipulações de caráter  dominante tais como  a controversa  descoberta acidental ou intencional, assim como a imagem do  imaginário popular sobre  independência, como se tivesse ocorrida segundo o quadro de Pedro Américo ou ainda a vitória das tropas brasileiras na Guerra do Paraguai.Essa  construções,partem de um tipo de história que tem narrativa dos vencedores como ponto de partida para a dominação ideológica e relaciona-se a questão do mito e do herói .Talvez o exemplo mais enfático localize-se  na  transição da Monarquia para a República em fins do século XIX.  Pelas falhas na implantação de um projeto republicano na acepção correta do sentido, o poder político constituído pelo golpe militar  do Marechal Deodoro em 1889 precisou criar "valores republicanos" na consciência popular com a intenção de ressignificar a identidade brasileira. Dentre os vários símbolos criados pela República, o caso de Tiradentes , considerado herói nacional e mártir, cabe o destaque neo presente texto.  Tiradentes não foi criado pela República, mas sua imagem foi apropriada pelos vencedores, uma vez que o novo regime necessitava de uma figura forte que apagasse o então herói D. Pedro I, a imagem forte da monarquia(...) A República tratou de conferir um rosto ao herói. . Assim, criou bustos, quadros, data comemorativa e histórias: Tiradentes pode aparecer como Jesus Cristo (de barba e cabelos compridos) ou elegante em sua roupa de alferes. A imagem não importava, mas, sim, o ideal que Tiradentes representava e que a República queria alcançar. Hoje, Tiradentes vive no imaginário popular como uma entidade sacrificada a favor do futuro da nação. 1 
 Personagem símbolo da  Inconfidência Mineira, Joaquim José  da Silva Xavier, o Tiradentes (1746 -1792),foi um dentista, tropeiro, minerador, comerciante, militar e ativista político que viveu no Brasil, nas capitanias de Minas Gerais  e Rio de Janeiro .A Inconfidência, movimento de caráter separatista contra o domínio colonial português foi severamente reprimido  pela Coroa portuguesa em 1789. Interpretado e reinterpretado o constantemente pela nossa historiografia , a  figura de Tiradentes não poderia ficar de fora também da analise do personagem pela perspectiva do cinema. O filme "Joaquim"(2018), do diretor pernambucano Marcelo Gomes é mais uma representação  de Tiradentes e que já apareceu em outros dois filmes com abordagens diversas :   "Os Inconfidentes "(1972), de Joaquim Pedro de Andrade, e "Tiradentes " (1999), de Oswaldo Caldeira.
Joaquim Pedro, em sua obra-prima, apostou no anti-naturalismo e na alegoria para falar com amargura do papel dos intelectuais em contextos autoritários – seu filme foi realizado durante a ditadura militar que governou o país entre 1964 e 1985 – e Caldeira, na efervescência da Retomada, seguiu caminho semelhante ao de Carlota Joaquina: Princesa do Brazil (1995), lançando ao século XVIII olhar irônico e anacrônico com o objetivo de tratar de um presente de corrupção e descrença na política.  2
Contudo, Marcelo Gomes se filia a outro tipo de cinema e tem como objetivo a desconstrução de uma narrativa baseada no discurso oficial que reside nos livros de histórias e no senso comum. O filme propõe é uma jornada humanizante da figura de Tiradentes(representado pelo ator Júlio Machado) , uma trajetória que visa derrubar o monumento, reinterpretar o discurso oficial e humanizar o herói para dialogar com o presente.
Nesse sentido, Joaquim é um filme completamente poético, essa alteração da visão do protagonista não se dá de maneira didática ou algo do tipo, são situações que surgem na tela para modificar a visão do público e personagem perante àquela realidade. Na viagem de Joaquim há momento muito significativos, por exemplo, o ponto em que um índio, que serve como guia para os homens, e João, escravo particular de Joaquim, começam a cantar, o ritmo proposto pelo índio combina com a letra declamada pelo negro. Um momento de poucos minutos em que não se importa o que está sendo cantado, mas sim a representação de um povo que vai muito além de uma hegemonia branca e européia, representada em quase todo plano, onde  estes dois personagens encontram-se sempre no fundo do quadro. 3
Há dois momentos no filme importantes para entender essa situação, O primeiro logo na cena de abertura, em que uma narração comenta, sob a imagem da cabeça decapitada 4  de Tiradentes, a própria figura criada em torno de seu mito, questionando -se por que ele foi o único a ser morto entre tantos conspiradores, ou por que considerá-lo herói diante de uma revolta tão falha de libertação, "(...) e ainda por que o herói de raízes populares foi o único a cair e, depois, de forma quase hipócrita, ter sua estátua levantada, enquanto seus restos mortais ficaram apodrecendo nas Minas Gerais diante dos olhos de seus companheiros de luta, mais rico e até mesmo beneficiados pela Inconfidência".
Em outro momento, Joaquim está com piolho e por este motivo ele deve cortar seus cabelos longos para a peste não se proliferar.O personagem tira por um motivo asqueroso e comum o visual que geralmente é retratado nos livros de história. Ambas as ocorrências são políticas pois questionam o discurso oficial.Vale destacar também  a coerência entre tal leitura e a concepção visual do filme.  A câmera na mão, o travelling sempre instável, dialoga visualmente com a tensão e as incertezas que o protagonista carrega assim como a polifonia destacando sons e vozes  tão distintas, o português castiço , as línguas indígenas, os dialetos africanos. .Os " brasileiros" de então, não reconheciam a si mesmos como partes integrantes de uma nação pois ainda não existiam as consciências e teorias sobre confrontos com Portugal. que permeassem os mais desfavorecidos. 
A  História mostra  que os inconfidentes não tinham o interesse em transformar efetivamente  o Brasil em país independente e fora da orbita colonial portuguesa, mesmo que os modelos das Revoluções Americana e Francesa do século XVIII , de certa forma, terem sidos apropriados pelas grupos mais intelectualizados da Inconfidência Mineira. O ideário inconfidente, por exemplo, não questionou a abolição da escravidão. Nesse sentido, o filme mostra pessoas de diferentes etnias e nacionalidades ao longo de alguns séculos – processos e relações amortecidos por idéias como a da “democracia racial”, que cria uma história harmônica, ,mesmo com uma tensão latente. A cena final do filme é de uma atualidade impressionante na medida em que Tiradentes, talvez  demonstrando um autoengano, preconiza a necessidade de uma revolta ao  sentar-se a mesa com a elite local que ri da radicalidade verbalizada por ele  ,  não por achá-lo importante como projeto político de mudanças  efetivas,  mas riem de alivio por terem encontrado a figura idealista perfeita e por isso limitada nas mudanças da ordem colonial.  Assim, Tiradentes é bode-expiatório de uma classe que articulava mudanças porém  limitadas. Afinal,  "algo deve mudar para que tudo continue como está ". O filme  mostra cicatrizes de um processo histórico que ainda estão presentes na atualidade.



REFERÊNCIAS 
*Frase atribuída ao escritor italiano  Giuseppe Lampedusa (1896 / 1957)  Entre as suas obras  o romance Il gattopardo (O Leopardo) sobre a decadência da aristocracia siciliana durante. Conforme o texto do romance, a única mudança permitida é aquela sugerida pelo príncipe de Falconeri: tudo deve mudar para que tudo fique como está, frase amplamente divulgada em todo o mundo.
[1] Carlos Roberto Ballarotti  - A Construção do mito de Tiradentes: de mártir republicano a herói cívico na atualidade
[2]Disponível em https://www.reservacultural.com.br/joaquim-cinema-reserva-cultural-convida/
[3]Disponível em https://observatoriodocinema.bol.uol.com.br/criticas/2017/04/critica-joaquim
[4] A referência a Machado de Assis e suas Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) logo na primeira cena de "Joaquim" que, assim como o romance, também apresenta o ponto de vista de um narrador-defunto, talvez tenha ecos bem mais profundos do que um recurso meramente estético. Narrando uma versão fictícia para eventos prévios à Inconfidência Mineira, o cineasta Marcelo Gomes mostrará ao espectador mazelas que atormentavam os brasileiros naquela sociedade ainda submissa à Coroa Portuguesa e que perduraram na estrutura social na qual viveu o Bruxo do Cosme Velho. Machado abordou ironicamente a passagem do Império à República em uma deliciosa passagem de Esaú e Jacó(1904), na qual a personagem Custódio solicitou o serviço de pintura de uma velha placa que estava diante de sua confeitaria e cujos dizeres deveriam ser "Confeitaria do Império". Como a madeira dessa placa estava muito velha, o pintor recomenda que se faça uma nova tabuleta. Nesse meio tempo, ocorre a Proclamação da República. Custódio manda um bilhete ao pintor, pedindo que aquele “Pare no d.” O confeiteiro não sabia se deveria optar por República ou Império para nomear seu comércio. Com esse recurso irônico, o escritor carioca nos revela a percepção de que tanto a República quanto o Império seriam meros "adornos de fachada", que não provocariam mudanças estruturais na política ou no país. Disponível em https://www.andreacatropa.com/joaquim-o-filme

Um comentário:

  1. Olá Joaquim !
    Considero excelente a descrição apresentada no texto. Irei ver o filme e posteriormente farei um comentário.
    Abraço

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