segunda-feira, 2 de setembro de 2019

CICLO DE FILMES "GRANDES DIRETORES " - Cidadão Kane (1941 ; Orson Welles)



Indicação ,apresentação do filme e texto : Mário Massena

CIDADÃO KANE: UM FILME ESSENCIAL


Muito já se falou e foi escrito sobre Cidadão Kane nestes últimos setenta anos.  Desde seu lançamento em 1941, essa obra cinematográfica em que Orson Welles, com apenas 25 anos de idade, estreou no mundo do cinema, já recebeu tantas análises que qualquer tentativa de resenhá-la de forma críticacertamente incorrerá em alguma redundância, independente do ponto de vista assumido. Entretanto ninguém discute que o filme é sem dúvida um marco na cinematografia mundial, sendo seu valor reconhecido com o passar dos anos, seja por importantes instituições, seja por consagrados diretores, muitos dos quais o considera o filme mais importante de todos os tempos.
Os méritos inovadores que Orson Welles apresenta seja como roteirista, em que divide a tarefa com o experiente Hermann Mankiewicz, seja como diretor, produtor e ator protagonista, colocam a obra num patamar muito acima das produções que Hollywood estava habituada. A metalinguagem assumida pelo realizador funciona como uma sinalização que permeia todo o longa metragem. Logo no inicio o personagem principal enuncia: “não acredite em tudo que você ouve no radio”, uma referência imediata ao episódio de 1938, quando Welles narrou à clássica Guerra dos Mundos de H.G.Wells, em uma transmissão radiofônica com tamanha verossimilhança que acabou por gerar pânico em milhões de ouvintes em metade dos Estados Unidos; além das semelhanças com a vida do famoso magnata da mídia americana, Randolph Hearst, encarnado pelo personagem Charles Foster Kane, interpretado por Orson Welles, com todos os seus excessos e contradições. Neste caso a proximidade do argumento ficcional com a vida real do empresário era tamanha que por muito pouco o filme não seria lançado, uma vez que exibidores ameaçaram boicotar a exibição. O desfecho dessa profunda rejeição ao filme por parte da própria indústria do cinema culminou na noite do Oscar, quando das nove indicações recebidas - inclusive Melhor Filme, Direção, Ator, todas para Welles- ganhou apenas a de Roteiro, dividida com Mankievicz.
Esse mal estar gerado pelo filme pode ser entendido nas duras críticas que a narrativa inovadora e consistente propõe sobre a mídia, a política e ao próprio modelo capitalista americano, colocando em cheque o American way of life, estilo de vida tão decantado pela indústria do cinema e vendido como projetode vida para o mundo todo.O incrível é que Welles diz tudo isso com indubitável beleza visual. Ao contar a historia da vida do poderoso Kane, sob diferentes pontos de vista com a utilização de flashbacks, Welles sustenta a narrativa de forma clara e original para o expectador. Mas a obra vai além do discurso não linear e do uso do tempo cronológico para contar a historia. Com o recurso conhecido como profundidade de campo ou deep-focus, através do qual todos os objetos em cena ficam em foco, o diretor destacou não só o primeiro plano,mas também o que acontecia no segundo plano, enriquecendo brilhantemente as imagens. Usou também com extrema habilidade os contra-plongées – câmeras angulando por baixo, ampliando assim a dramaticidade das cenas, valorizando as sombras e as possibilidades de iluminação nos sets de filmagem. A ambientação e a força do personagem principal são reforçadas pelo competente trabalho do compositor Bernard Hermann e pela bela fotografia de Gregg Toland, contribuindo para a eficiente abordagem de Kane sob diferentes óticas. Outro destaque sem dúvida diz respeito à maquiagem realizada por Maurice Seiderman no envelhecimento gradual dos personagens. Além desses aspectos técnicos somam-se as excelentes atuações dos coadjuvantes, vindos do grupo Mercury Theater que, sem os vícios habituais dos atores de cinema, emprestam ao drama uma renovada performance.
O desprezo inicial do público e crítica dispensado ao filme foi compensado pelo reconhecimento internacional no pós-guerra.O longa metragem Cidadão Kane foi considerado marco-zero do Modernismo e eleito o filme mais importante do cinema seguidas vezes pelo British Film Institute. Em votação realizada em 2000 foi escolhido o melhor filme de todos os tempos pelo American Film Institute. Influenciando diretores e realizadores ao longo dos tempos, recebeu do famoso cineasta francês François Truffaut a seguinte definição: “Citizen Kane é um hino à juventude e uma meditação sobre a velhice, um ensaio sobre a vaidade e um poema sobre a decrepitude”.


Mario Massena

2 comentários:

  1. Para quem gosta de críticas psicoanalíticas, esse filme do Orson Wells é um prato cheio. Toda aquela bateção de cabeça do pobre protagonista rico resume-se ao fim e ao cabo numa tentativa de repor o amor de mamãe... Rosebud, este botão de rosa que nunca se abriu é afinal um estado potencial de amor que ficou na infância. Trauma básico que se propaga pela vida.
    Filme bom e tristíssimo, que consegue ir além do drama da mãe, ou melhor, consegue mostrar que os traumas iniciais se propagam meeeesmo..."como espumas ao vento", diz a canção popular. Tornam-se monstros ou tornam-nos monstros caso não sejam observados e tratados. E aqui tais traumas individuais são tomados como patologias de uma sociedade pragmática onde o dinheiro, um banco na verdade, se torna o tutor de uma criança de pais vivos. É o paradoxo total. A mãe pragmática, a tal da Rosebud, para salvar o filho do pai violento, entrega-o à custódia do dinheiro. No mínimo curioso: o dinheiro como salvação. Sintoma de uma época.
    Renata

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  2. Quero parabenizar o Mario pelo excelente comentário. Claro e preciso contém inúmeras informações importantes e imprescindíveis para compreender a genealogia do filme, somando-se a forma como ele apresentou na ocasião da exibição.

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