Indicação e apresentação do filme: Silvana Massiotti
Textos: Reinaldo Silva e Joaquim Ferreira
O
Eterno Retorno do Mesmo: Primavera,
Verão, Outono, Inverno, Primavera ...
No meu entender a idéia central do filme está
baseada na hipótese de um Eterno Retorno do Mesmo. O próprio título sugere-me
esta hipótese, uma vez que a Primavera retorna após o Inverno, dando a entender
que tudo que assistimos anteriormente irá se repetir. Talvez quem assistiu ao
filme não tenha atentado para isso. Não se trata apenas das quatro estações.
Não é um tempo que acaba ao termino das estações do ano. É um tempo infinito
que se repete. Se o diretor quisesse expressar os acontecimentos de cada estação
terminaria o filme na estação Inverno e não repetiria os mesmos fatos que
ocorreram na Primavera.
Outro fato que chamou minha atenção é a constância
da presença da cobra em inúmeras cenas e em locais diferentes. A cobra, devido
a flexibilidade do seu corpo pode alcançar com extrema facilidade a extremidade
oposta de seu corpo (a ponta do rabo), formando um círculo fechado. Desconheço
a simbologia deste animal nas religiões asiáticas.
O local do Eterno Retorno do Mesmo
Incrustado no centro de uma enseada isolada com
abertura para o mar existe um pequeno templo budista. O cenário é deslumbrante.
O templo flutua. Cada plano fotográfico é fixo, quadros exuberantes da
natureza. A câmara se movimenta apenas para registrar quadro a quadro. Talvez
cada cena tenha sido pensada e testada antes de vir a se tornar o que vemos,
porque os ângulos escolhidos são lindíssimos.
Neste cenário convivem dois personagens. O mestre e
uma criança, que transparece ser o seu discípulo.
Uma hipótese cosmológica do Eterno Retorno do Mesmo
Existem interpretações discordantes sobre o Eterno
Retorno, e até quem considere essa hipótese totalmente absurda. Alguns
consideram que só existe o Eterno Retorno do Diferente. Outros interpretam como
uma crença popular ou religiosa. Aqui não interessa esse debate. Desejo apenas
fazer uma interpretação particular do filme.
As religiões antigas da Ásia dão a entender que o
Eterno Retorno é uma “doutrina que consiste em crer que a história do mundo é
um desenrolar eterno de fases cíclicas” (1) que se repetem com uma
exatidão absoluta. Neste sentido “o cosmo será um sistema bem ordenado” (2),
em que cada elemento do universo interfere uns sobre os outros. Todos afetam e
são afetados pelas ocorrências do mundo.
E neste cosmo, compondo com todos os demais
fenômenos existe o ser humano. Mas uma diferença radical diferencia a espécie
humana. As espécies animais vivem em função de seus instintos, enquanto os
humanos, além dos instintos, existem também os desejos. Os instintos são
necessidades que cessam após sua satisfação: sente-se fome vai a caça de
alimento e obtém-se satisfação. Sente-se sede, sacia-se a sede e obtém-se
satisfação.
O que ocorre com o ser humano não se limita aos
instintos básicos de sobrevivência física de si mesmo e da sua espécie.
O ser humano possui desejos. As manifestações dos
desejos são múltiplas e insaciáveis. Inevitável. Mas o que faz com que o desejo
seja assim?
Uma vontade de apropriação, de dominação e de
expansão de suas forças em relação aos seus interesses ou movidos pelos interesses
de outros humanos.
Primavera. A Moral e a Ética para
formação de um indivíduo
É o período em que a crueldade se faz presente. Do
prazer do desejo obtido em submeter outros seres aos interesses perversos. É
este sentimento que o mestre, surpreso, aprenderá com a criança. Antes do final
do filme iremos descobrir como essa criança chegou ao templo.
O mestre não interfere nas ações da criança. Ele
fará com que ela aprenda que suas ações interferem na existência dos os outros
seres. Utilizará o mesmo método que a criança usou para satisfazer sua
crueldade com o peixe, o sapo e a cobra. O mestre tem em vista dois objetivos:
A Moral: ensinar a criança um comportamento de
convivência com os outros seres;
A Ética: formação do caráter da criança a partir de
um comportamento moral.
Verão. Um poderoso afeto
É quando o desejo sexual aflora. Assistimos várias
cenas em que a criança já adolescente luta contra esse desejo: reza, move o
barco de um lado para o outro. Para ser mais claro: o discípulo sobe pelas paredes.
Mais uma vez o mestre não interfere. Parece que o
diretor introduz uma jovem no templo para que possamos obter um impacto direto
em relação ao desejo sexual, com jogos de sedução, cobiça e perda do objeto
amado.
O mestre diz ao discípulo diante a sua perda: “os
desejos despertam a posse, a posse desperta o ódio, que desperta o crime”.
O que o mestre tenta ensinar ao discípulo, é o
controle de seu desejo sexual. A superação deste desejo funda-se em uma
disciplina milenar, que ficou conhecida como estoicismo. Popularmente, estóica
significa a pessoa disciplinada, que evita certas condições que são
consideradas prazerosas por muitas pessoas.
Outono. A perda insuportável
Essa é a estação escolhida para o aparecimento da
vingança, do ódio, do ressentimento, da busca do aniquilamento de si como
solução. Mas também o período de assumir as consequência dos atos praticados,
tal como o mestre o ensinou quando criança.
O mestre faz uma pergunta ao discípulo, que cometeu
um crime: “você foi feliz convivendo com os homens?”.
É importante assinalar que outros dois personagens
irão até o templo. E nós espectadores, saberemos que o mestre possui
capacidades que são resultados de uma longa disciplina da mente.
Inverno. O cuidado de si e o enigma
É a estação em que o mestre quando jovem chega ao
templo, encontrando ali sinais de um mestre anterior. Tem início o Eterno
Retorno do Mesmo. Isto é, ele sabe que é meio e não fim de um novo ciclo que
virá, sua existência é uma preparação para a morte e renovação. Seus exercícios
disciplinam o corpo e a mente, uma preparação para um grande desafio.
Nesta estação tomaremos conhecimento do enigma que
cerca a chegada da criança ao templo, e em que condições ela foi deixada aos
cuidados do mestre.
No meu entender o nascimento da criança é o
resultado de algo indesejado ou de um arrependido, que causa vergonha e culpa.
É na tentativa de se livrar desses sentimentos que a criança será deixada no
templo.
Primavera. O retorno do mesmo
Tudo que aconteceu desde o início retorna.
Desnecessário mostrar o que ocorreu repetindo todas as cenas. Na tela apenas as
cenas da manifestação da crueldade na criança.
O Eterno Retorno do Mesmo se fez presente para os
espectadores.
Abraços - Reinaldo
Citações 1 e 2: Vocabulário Técnico de
Filosofia.
Reinaldo Silva
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A importância social da imagem e da religião
A introdução do som no cinema encontrou certa
animosidade e resistência, e um dos nomes mais destacados dessa resistência foi
o de Charles Chaplin.Quando da irrupção do som no cinema, ele
reclamava da perda do encantamento da imagem
na medida em que o som foi introduzido . Na realidade , a dimensão do som
que Chaplin reclamava era o excesso de diálogos , falas e mais falas , que
ofuscavam o que é seminal na arte cinematográfica: a imagem. A
introdução da fala, deveria ter o cuidado de não
competir com a imagem. Para Chaplin ,como compositor que era, a trilha sonora
deveria ser sincrônica e suave sem esconder o significado e
encantamento da imagem e sim contribuir para reforçar seu significado.O diretor do filme " Primavera ,Verão, Outono ,
Inverno...Primavera", o sul -coreano Kim
Ki-Duk é uma interessante exemplo sobre a importância da
imagem .Conhecido como o " cineasta do silencio" , Kim é
econômico nos diálogos e suas narrativas privilegiam a
fotografia e a imagem ou seja, privilegiam o
cinema. O ranger das portas, o farfalhar de vento, de água
corrente,de folhas, os sons rápidos identificando as imagens que
pontuam o filme e , em especial, as mudanças de estação, alertam e dizem muito sobre
a necessidade do cinema de equilibrar imagem e som.Em épocas
digitais e de grande disponibilidade de recursos tecnológicos, diretores
exageram e distorcem as imagens. Trilhas sonoras que abafam falas,
falas que escondem imagens e imagens absolutilizadas como
êxitos de fotógrafos e de diretores com muita formação técnica mas
com pouca sensibilidade social e conhecimento empírico.
Curiosamente, Kim não tem formação técnica em cinema. Começou a
filmar um pouco tarde para os padrões correntes e,talvez por isso, filma como
observador com uma narrativa muito pessoal e histórica , sem estar preso
nos cânones da light magic. O aspecto imagético desenvolvido pelo
diretor Kim Ki-Duk , com seu equilíbrio de ângulos e
enquadramentos, desenvolve o equilíbrio do funcionamento e a
integração do homem com a natureza e desta com a sociedade
.
Assim , a integração do homem com a natureza é desprovida de um
ecologismo vazio e de contemplação . Kim Ki-Duk critica o homem
predador do ambiente , posições que são produtos da sociedade. A
partir de sua experiência de vida e de seu conhecimento
empírico, faz referencias no filme ao crime, a violência e ao
castigo, enfim a um moralidade construída socialmente e que coloca a a
religião , no caso o budismo, em seu devido lugar, ou seja,
interrelacionada com o funcionamento social.Segundo a religião budista , a vida se caracteriza em transições, com o sentido
infinito e grande conformismo que são reinterpretados nas
sociedades ocidentais , naturalizados a partir da crença de que tudo
se resolve naturalmente sem conexão com a realidade social. No final
do filme , as lentes de Kim Ki-Duk mostram um ciclo completo
semelhante ao início do filme mas incorporado com o
aprendizado social que rompe o conformismo religioso.
Joaquim Ferreira
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