Indicação ,apresentação do filme e texto : Joaquim Ferreira
TRINTA ANOS DE "FAÇA A COISA CERTA": O QUE MUDOU
Na história do cinema percebemos a existência dos chamados filmes e diretores clássicos, importantes nas inovações técnicas,nas abordagens ,na perfeita utilização da música, na constituição dos roteiros, no ritmo interpretativo e na contemporaneidade das obras. É assim com a obra com Chaplin, Hitchcock, Bergman ,Glauber Rocha, Truffaut,Orson Welles, Kubrick, dentre outros,que criaram uma "marca" no estilo de dirigir filmes. Diretores mais atuais que ainda atuam. e não tiveram seu ciclo profissional encerrado talvez necessitem da interação com o tempo histórico e social para que as repercussões de sua obra adquiram contemporaneidade e consolidem seu trabalho na direção da categoria de diretores clássicos. A escolha pela exibição de "Faça a Coisa a Certa" foi definida sobretudo pela necessidade de se discutir a questão dos clássicos do cinema" . Nesse caso , destaco o diretor norte-americano Spike Lee.
Nascido Shelton Jackson Lee em 1957 em Atlanta, sul dos EUA, numa época e local marcados pelo preconceito racial, Spike mudou-se com sua família, ainda menino , para o Brooklin, Nova Iorque onde desenvolveu sua consciência social. Quando jovem Spike Lee militou no movimento de Direitos Civis e concluiu a faculdade de Cinema na década de 1980. Aluno da Universidade de Nova York, Lee assumiu posições em defesa das vítimas negras do racismo, ao lançar curtas sobre o tema , também como requisito para a sua graduação .Essa produção inicial indicava o viés de um cinema mais político e militante pelo qual Spike Lee marcou sua carreira.
Transitando por esquemas independentes de produção , realiza em 1989 o que é considerado seu filme mais importante, " Faça a Coisa Certa" (Do The Right Thing) 1 , mesmo com a realização posterior de "Malcom X" , "Febre da Selva" e o mais recente, " Infiltrado na Klan" 2 . Com "Faça a Coisa Certa", Spike Lee propõe superar "discussões brancas" sobre a população negra, incluindo a repercussão do filme "Mississippi em Chamas" de Alan Parker lançado no fim de 1988, criticado por muitos pela sua "ficcionalização" da história real. O título de " Faça a Coisa Certa" vem de uma citação de Malcolm X: "You've got to do the right thing", importante personagem para a formação de Spike Lee e rendeu ao diretor uma indicação ao Oscar por melhor roteiro original .
Fazendo a coisa certa?
O filme conta a história da tensão racial em Bedford-Stuyvesant (também conhecido como Bed-Stuy) , bairro central do distrito Brooklyn, Nova Iorque. Num dia quente de verão ,num bairro onde a maioria da população é negra, Buggin Out, um ativista, exige que Sal, dono de uma pizzaria local , troque as fotos de seus ídolos brancos do local por fotos de ídolos negros. Sal tem uma parede, o Wall of Fame cheia de pôsteres de artistas ítalo-americanos: Frank Sinatra, Robert De Niro (aliás convidado para desempenhar o papel de Sal, no filme ) , John Travolta, Liza Minnelli,Sophia Loren , Al Pacino, Joe Di Maggio 3 ,dentre outros . Quando tem seu pedido negado, o ativista passa a organizar um boicote contra a pizzaria de Sal.
O diretor quer discutir a tensão racial e simbolismos apresentados no desenrolar do filme tornam cada vez mais tênue o fio entre tolerância X intolerância confrontados diariamente no entra e sai da pizzaria, que aumenta a tensão tanto quanto o calor do Verão de 88 4 . Nesse sentido, é simbólico também o tenso dialogo(47 min, de filme) com amplo palavrório pejorativo entre personagens representantes de diferentes grupos étnicos . E a calma exigida pelo apresentador da Radio Amor ( papel de Samuel L. Jackson que na época apresentava-se como Sam Jackson) suaviza as cena mais tensas com seu programa de rádio. Importante destacar que o apresentador observa tudo, mediando conflitos de dentro da cabine mas protegido pelo vidro da estação de rádio. Contudo, como resposta aos quadros dos ítalo-americanos da pizzaria, o apresentador enuncia uma extensa lista de músicos negros agradecendo aos músicos " por tornarem a vida... ainda melhor."
A escolha certa vai se apresentando!
Os planos pelas ruas de Bed-Stuy junto ao uso de cores fortes na tela, excelente recurso técnico, acompanhando a trajetória de Mookie ,focalizam vários personagens do filme ao mesmo tempo como se quisesse unir aquela comunidade e não destacar protagonistas .
A música do Public Enemy que saí da boombox de Radio Heem e seu par de socos ingleses com as palavras “LOVE” e “HATE”, parece um mantra com todo volume pentecostal - Fight the power, Fight the power., Lute Contra o Poder - , versos que são uma espécie de rastilho de pólvora que termina no incêndio da pizzaria de Sal depois que o rádio é quebrado por Sal. Afirma a letra : "Elvis era um herói para a maioria mas ele nunca significou nada para mim, veja, Da direita, racista, que otário ele era simples e puro .Fodam-se ele e John Wayne" .
Que protagonista poderia escolher a "coisa certa"?
Destaque para outros personagens como o Da Mayor e Mother Sister , o gago Smiley e o comerciante sul-coreano .
Da Mayor ,representado por Ossie Davis, foi um dos principais ativistas pelos direitos civis na década de 1960. Participou dos funerais de Luther King e de Malcolm X no qual fez veemente discurso antirracismo . Da Mayor e também Mother Sister ( representados respectivamente por Ossie Davis e Ruby Dee ,que foram casados na vida real) ) são personagens que representam consciências pelo acumulo de conhecimentos, vivencias políticas e históricas que faltam para responder a questão e escolher a coisa certa. Eles sugerem personagens que sofreram a discriminação em épocas passadas, provavelmente nos anos 1960 e que , possível, moldaram suas consciências junto as suas existências problemáticas com os exemplos de Malcom-X e Luther King, Para alguns moradores do Brooklyn são respeitados,enquanto que para outros, não passam de figuras ultrapassadas como mostra a cena em que Da Mayor é insultado por um grupo de jovens ativistas . São representados , a meu ver, para unir as tendências que tentam superar o racismo equilibrando os exemplos de Malcom-X e Luther King.Mas como é necessário um longo caminho pedagogico para essa conscientização, essas tendências oscilam simbolicamente na figura de Smiley (interpretado por Roger Guenveur Smith), o gago que tenta vender fotos em preto-e-branco de Martin Luther King e Malcolm X coloridas à mão como se fosse uma panfletagem permanente.Aqui, a meu ver uma tendência de Sipke Lee para fazer a coisa certa: Malcom-X.
Importante destacar também a figura do comerciante sul-coreano.Além de certa incomunicabilidade idiomática (a cena da compra das pilhas por Radio Heem), ele reage diante da aproximação dos negros no momento do incêndio da pizzaria de Sal, de forma ambígua: (mais ou menos com 1h40min de filme). Percebendo talvez uma invasão a sua loja , o sul-coreano afirma que é negro( black) diante da perplexidade de outros negros com seu estabelecimento em close em frente a pizzaria em chamas de Sal
-Eu não branco!-Eu não branco! Eu preto!- O quê?
- Eu preto!-Eu preto! Preto, onde? Eu preto.
-Mim preto. Você, eu, iguais.- Nós iguais.- Iguais? Eu preto.
-Abra os olhos, *chinês!(na fala original *"mother fucker")
-Deixe os coreanos em paz.Ele é legal.
Ou na realidade o uso autorreferencial da palavra black pela percepção de também ser excluído. Afinal trata-se de grupo étnico também discriminado . Nessa perspectiva, destaque para um indicativo processo de gentrificação quando o vendedor latino de gelo colorido perde seu espaço em uma cena quando o caminhão de sorvete entra pelas ruas do bairro.
O dia esquenta cada vez mais e o calor do incêndio explode de vez a questão racial. Resta a noite para aplacar o incêndio e apresentar o saldo trágico: a morte de Rádio Heen pela policia, como se Spike Lee profetizasse Rodney King 5 .
Spike Lee questiona como integrar , mas ele próprio, na figura de Mookie, até então o entregador de pizzas com transito tranqüilo entre os vários grupos e indivíduos, inicia o ataque a pizzaria de Sal. Mas como não há rígido destaque de protagonistas, quem fez a coisa certa? A comunidade que precisa do exemplo de Mookie?
Nos créditos finas, importante notar as citações de Martin Luther King e Malcom X que sugerem a escolha da coisa certa. Acredito que a escolha de Lee foi dirigida para Malcom X e a violência com autodefesa e não como ataque .Afinal a violência simbólica da pizzaria de Sal e sua reação permeia a idéia do filme.
Nos créditos finais também, é importante notar a dedicatória as famílias de negros mortos pela policia em conflitos raciais na década de 1980 nos EUA: Michael Griffit, Edmund Perry, Yvonne Smallwood ,Michael Stewart e Eleanor Bumpers ,os dois últimos citados como palavras de ordens e exemplos durante o filme,.
Por tudo isso, qual seria a coisa certa a fazer nos dias de hoje face a discriminação , a exclusão social vivenciada pelos grupos étnicos não só na sociedade americana mas também em todo o mundo?
[1] Título original: Do the Right Thing - 120 min. Elenco: Danny Aiello – Sal;Ossie Davis – Da Mayor ;Ruby Dee – Mother Sister;Richard Edson – Vito Giancarlo Esposito – Buggin Out;Spike Lee – Mookie;Bill Nunn – Radio Raheem ;Samuel L. Jackson- Mister Love Daddy;John Savage- Clifton;Martin Lawrence- Cee
[2] FILMOGRAFIA DE SPIKE LEE: 2019 - A gente se vê ontem (tv) 2018 - Infiltrado na Klan 2017 - Ela quer tudo (She's Gotta Have It) (Série) 2015 - Chi-raq 2014 - Eminem — Headlights (videoclipe) 2013 - Oldboy (remake) 2012 - Michael Jackson — Bad ;2012 - Go Brazil Go! 2012 - Verão em Red Hook 2009 - Miracle at St. Anna 2006 - O Plano Perfeito 2005 - Quando os diques se rompem: Um réquiem em quatro atos (When the leeves broke: A réquiem in four acts) 2005 - Crianças Invisíveis (All the Invisible Children) 2005 - Jesus children of America 2005 - Miracle's boys (TV) 2004 - Sucker Free City (TV) 2004 - Elas me Odeiam, Mas me Querem 2002 - A Última Noite 2002 - Ten minutes older: The trumpet 2002 - Jim Brown all American 2001 - Come rain or come shine 2001 - The Concert for New York City (TV) 2001 - A Huey P. Newton Story (TV) 2000 - A Hora do Show (Bamboozled) 2000 - The Original Kings of Comedy 1999 - O Verão de Sam 1998 - Freak (TV) 1998 - Jogada Decisiva 1997 - 4 Little Girls (Documentário) 1996 - Todos a Bordo 1996 - The fine art of separating people from their money 1996 - Garota 6 1995 - Lumière et Compagnie 1995 - Irmãos de Sangue 1994 - Uma Família de Pernas pro Ar 1992 - Malcolm X 1991 - Febre da Selva 1990 - Mais e Melhores Blues 1989 - Faça a Coisa Certa 1986 - Ela quer tudo (She's Gotta Have It) 1983 - Joe's Bed-Stuy Barbershop: We Cut Heads(projeto de graduação) 1981 - Sarah 1980 - The answer 1977 - Last hustle in Brooklyn
[3] Referencia à seca de 19988 em Nova York que produziu muitos estragos econômicos e ambientais.
[4] Observa-se também , perto da caixa registradora de Sal ,um pequeno quadro com a foto do antigo Papa Paulo VI, Giovanni Montini, italiano. Paulo VI faleceu em 1978 e o filme é de 1989 !
[5]Rodney King foi um trabalhador de construção civil afro-americano. Na noite de 3 de março de 1991, sob acusação de dirigir em alta velocidade, foi detido e violentamente espancado pela polícia de Los Angeles. O julgamento e absolvição dos agentes policiais envolvidos provocou os violentos tumultos de Los Angeles de 1992. A cena, registrada em vídeo correu o mundo. A absolvição dos policiais, em 1992, por um júri formado por dez brancos, um negro e um asiático, provocou uma das maiores ondas de violência da da Califórnia. Foram três dias de confrontos, incêndios, saques, depredações e uma onda de crimes que causaram 58 mortes, deixaram mais de 2800 feridos, destruíram 3.100 estabelecimentos comerciais e causaram prejuízos estimados em mais de 1 bilhão de dólares.
A cena que parece carregar o problema central do filme, sobre qual seria a coisa certa a fazer, parece ser aquela em que o entregador de pizza arremessa a pedra contra a vitrine da pizzaria dando início ao quebra-quebra. A cena choca pois o espectador não espera que justo ele, sempre conciliador, vá explodir em algum momento. Nesse personagem reside uma espécie de ranço da época em que a revolta dos negros era sufocada pela violência brutal da escravidão. Ele é assim um remanescente daqueles tempos, raramente presente na sociedade contemporânea onde os negros se impõem com muito mais virilidade.
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