terça-feira, 28 de janeiro de 2020

O Pagador de Promessas (Anselmo Duarte;1962)





   Indicação, apresentação do filme e  texto: Joaquim Ferreira

 O PAGADOR DE PROMESSAS [1]
 O Pagador de Promessas, filme dirigido por Anselmo Duarte (1920-2009) é uma adaptação do texto teatral homônimo de Dias Gomes (1922-1999), filmado na Bahia entre agosto e setembro de 1961. A peça de Dias Gomes foi encenada pela primeira vez em 1960, em São Paulo.  O filme está na lista dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos, segundo a Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine)[2]
A história consiste na tentativa de Zé do Burro cumprir a promessa de entrar na Igreja de Santa Bárbara com a cruz que carrega do interior do sertão baiano até Salvador, depois que seu burro é curado de uma infecção causada por uma ferida. A promessa fora feita em um terreiro de candomblé, diante de uma imagem de Iansã-Santa Bárbara. Além da peregrinação com a cruz, Zé havia prometido que, caso o burro sarasse, repartiria sua pequena propriedade
Para o papel principal, Duarte escala o ator Leonardo Vilar (1923), que protagoniza a encenação da peça teatral em São Paulo. No elenco principal, temos Glória Menezes (1934), Dionísio Azevedo (1922-1994) e os baianos Geraldo Del Rey (1930-1933), Antônio Pitanga (1939), Roberto Ferreira (Zé Coió) e Othon Bastos (1933). Norma Bengell (1935-2013) faz a prostituta Marli.[3] O diretor de fotografia é o inglês Chick Fowle, que, a exemplo do resto da equipe técnica, vem de experiência anterior na companhia Vera Cruz.
O Pagador de Promessas é selecionado para representar o Brasil em Cannes em 1962, (o outro filme cotado era Os Cafajestes, de Ruy Guerra, 1962) .É o único filme brasileiro a ganhar a Palma de Ouro em Cannes, concorrendo com filmes como "O Anjo Exterminador", de Luis Buñuel, "O Eclipse ", de Michelangelo Antonioni e "Cléo de 5 à 7", de Agnés Varda. O longa-metragem de Anselmo Duarte também foi indicado ao Oscar no ano seguinte.
Apesar de não ser considerado um filme do Cinema Novo ,esse filme, lançado durante o governo de Jango, momento de grande agitação política e social no Brasil, inaugurou um importante momento do cinema brasileiro, o cinema engajado, preocupado com as questões sociais.Com Anselmo Duarte, assim, impulsiona-se o novo cinema brasileiro:
O segundo filme dirigido por Anselmo Duarte,[ o primeiro foi "Absolutamente Certo", de 1957] galã da Vera Cruz e da Atlântida, é um caso único nas artes brasileiras. Constitui um dos filmes-ponte entre a tentativa de se fazer um cinema industrial, vigente ao longo dos anos 1950, e a proposta revolucionária do então nascente Cinema Novo. O Pagador de Promessas foi talvez o ápice do “velho” cinema brasileiro, neorrealista, convencional, baseado em regras de verossimilhança e continuidade. A luz do fotógrafo Chick Fowle ainda evocava a estética rebuscada da Vera Cruz, assim como a trilha sonora de Gabriel Migliori. No entanto, o filme já continha elementos que iam explodir no Cinema Novo: atores como Othon Bastos e Geraldo Del Rey (presentes logo depois em Deus e o Diabo na Terra do Sol) e principalmente o desejo de refletir sobre a realidade brasileira do momento.( O velho e o novo 30/05/2012 ,Carlos Alberto Mattos)
Contudo, o destaque dado ao filme pela premiação da Palma de Ouro gerou uma das histórias mais lamentáveis dos bastidores do cinema brasileiro. Grande parte dos realizadores do Cinema Novo renegou o filme. Glauber Rocha,por exemplo, que antes o havia elogiado, acusou Duarte de filmar uma realidade de esquerda com ideologia de direita.
O  Pagador de Promessas excita o tempo todo: não provoca a menor reflexão. O homem humilde e simples é contaminado pelo misticismo de Zé do Burro e, como ele, quer destruir aquele padre para entrar na Igreja. E, mesmo que a entrada na Igreja fosse simbólica, o símbolo da Igreja é maior em si mesmo: a exaltação é puramente sensual. Eis porque classifico O Pagador de Promessas como filme baiano. É o resultado típico de um espírito retórico, que encontra no poeta condoreiro dos escravos seu príncipe legítimo. Como espetáculo, O Pagador de Promessas é mais importante que O Cangaceiro e Orfeu Negro: Anselmo Duarte é um diretor que conhece seu ofício com segurança, e desde Absolutamente certo que denota senso de observação humana e social. Em O Pagador de Promessas esteve preso às limitações exigidas por Dias Gomes e teve pouca liberdade criadora. Glauber Rocha Revisão crítica do cinema brasileiro(1963).
O elogio da simplicidade do homem comum foi visto como uma celebração do atraso, do conformismo e da derrota, em lugar do espírito revolucionário. Como resultado dessa rejeição, o filme caiu em relativo esquecimento:
Não merecia. É um clássico incontestável e desperta admiração até hoje. A sequência em que Zé do Burro "namora” com a imagem de Santa Bárbara poderia ter sido assinada por Buñuel. O uso dramático da escadaria da igreja como símbolo de ascese espiritual e o esforço do personagem para entrar no templo usando a cruz como aríete são, com certeza, momentos culminantes do nosso cinema.( O velho e o novo,Carlos Alberto Mattos;30/05/2012)
Tecnicamente, o filme é extremamente correto. A decupagem trabalha dentro do essencial e demarca as relações entre os personagens de forma enfática, seja através de trocas de olhares (como as do primeiro encontro visual entre Rosa e Bonitão), seja por meio de campo-contracampo que, ao alternar o foco em câmera baixa e câmera alta, traz o peso de uma hierarquia e de uma opressão. No primeiro confronto entre Zé e padre Olavo, nos momentos em que o diálogo atinge pontos de conflito (por exemplo: quando Zé revela que fez sua promessa num terreiro de candomblé), o padre sobe alguns degraus, para ficar num nível mais elevado que o de Zé, e é enquadrado em contra-plongé, o que reforça sua figura de autoridade.
A mise en scène [4] de Duarte é bem elaborada em termos de fluência dramática; há equilíbrio de composição, uniformidade técnica, desenvolvimento realista da ação, aproveitamento da profundidade de campo (cf. cenas em que, de dentro do bar, vê-se nitidamente a escadaria da igreja, confrontando os dois espaços na mesma imagem, demarcando a ruptura entre o que eles representam para a sociedade e, ao mesmo tempo, a continuidade entre as ações que neles se desenvolvem).
O roteiro de Duarte, que o adiciona novos cenários (o hotel onde; o jornal; a sala onde os profissionais da Igreja se reúnem amenizam o impacto da representação da escadaria em síntese, o local da ação dos personagens.
O filme mantém a unidade espacial do drama, desenvolvendo a maior parte da ação em uma única locação, na escadaria da Igreja de Santa Bárbara que, por sua própria disposição arquitetônica parece um anfiteatro, com as escadarias assemelhando-se a arquibancadas. Os arredores da igreja, situada no centro histórico de Salvador, também são utilizados, a exemplo do bar em frente, ao pé da escadaria, onde são encenados alguns dos mais importantes momentos da trama.
André Bazin, acerca do teatro e do cinema, vai dizer que "ou o filme é a pura e simples fotografia da peça (logo, com seu texto), e é precisamente o famoso 'teatro filmado', ou a peça é adaptada às 'exigências da arte cinematográfica'". Portanto, Anselmo Duarte ao adaptar a obra teatral de Dias Gomes não subverte a história e os diálogos e promove a passagem do texto para o cinema através da linguagem cinematográfica.
O filme hoje reveste-se uma atualidade importante no sentido das relações fundamentalistas das religiões com a sociedade.
A religião é uma das atividades sociais mais remotas e significativas da história humana e inseparável da cultura de cada indivíduo. Há milhares de anos, a religião exerce forte influência sobre a vida dos indivíduos na ação de construção de mundo. O vocábulo latino relig, do latim religio1denota o sentido de uma ação perante a algo desconhecido que se faz sentir cotidianamente: a (re) ligação do ser humano com o transcendental. A religião, no entanto, não é só crença no sobre-humano. Ela é também a existência de idéias e práticas sociais que regulam ética e moralmente a vida dos indivíduos. O filme " O Pagador de Promessas" mostra o catolicismo oficial, hierarquizado e fundador chocando -se com autênticas manifestações religiosas mais populares , inferindo um questionamento da ordem .A formação cultural do Brasil em termos religiosos é sincrética e se um por lado o sincretismo contem um esvaziamento teológico de significados,por outro o transito de elementos sincréticos aproxima a religião da dinâmica social. A parte final do file que opõe capoeiristas e as mães-de-santo à policia e ao padre, em torno do corpo de Zé do Burro e seu corpo carregado na cruz derruba, mostra uma concepção classista que supera a transcendência das religiões salvacionistas marcando o embate religioso nas relações sociais opondo fundamentalismo e tradição à cultura e religião populares .
NOTAS:

[1] The Given Word/ La Parole Doné ( A Palavra Dada): A copia exibida é de um DVD europeu, contendo legendas em inglês e francês embutidas, assim como, tem explicação em francês na abertura contextualizando a promessa do Zé do Burro.
[2] 
Lista_dos_100_melhores_filmes_brasileiros_segundo_a_Abraccine
: https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_dos_100_melhores_filmes_brasileiros_segundo_a_Abraccine
[3] Inicialmente, Glória Menezes interpretaria Marli, e Maria Helena Dias seria a protagonista, Rosa. Porém Maria Helena pegou pneumonia e foi substituída por Glória, que deixou o papel de Marli para Norma Bengell.
[4] Mise en scène é uma expressão francesa que está relacionada com encenação ou o posicionamento de uma cena. É tudo aquilo que aparece no enquadramento, como por exemplo: atores, iluminação, decoração, adereços, figurino, etc. O termo ficou conhecido por ser empregado nos primeiros "filmes de autor" no começo do século XX. Cada "diretor-autor" tinha o seu modo particular de construir uma cena, ficando conhecido por seu mise en scène (modo de posicionar a cena, ou seja, os efeitos de luz, enquadramento da câmera, entonação de voz, gestos e movimentos no cenário, etc). Não ficando limitado apenas à parte técnica da produção, o mise en scène possui uma característica marcante em cada "cineasta-autor" pelo teor dramático que transmite, ao mesmo tempo que utiliza de modos não convencionais de construir a cena. Mesmo o mise en scène ser uma expressão utilizada maioritariamente na indústria cinematográfica, o termo pode ser usado para definir qualquer tipo de situação onde se "constrói" uma cena, definindo o cenário ou outros elementos.

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