Indicação do filme, apresentação e texto: Reinaldo Silva
Alfred
Hithcock nasceu em 1899 em Londres (Inglaterra). Sua contribuição para a arte
cinematográfica é inestimável. Em 54 anos de atividade, entre 1922 e 1976, ele
dirigiu 53 longas-metragens.
Começou no
cinema mudo e teve de se adaptar ao falado; foi do preto e branco (a seu ver o
mais adequado à linguagem visual do suspense) ao colorido, e ainda realizou
experiências pioneiras com o tecnicolor e a terceira dimensão. Dos estúdios
londrinos a Hollywood, Hithcock fez de tudo; escreveu e desenhou letreiros de
filmes mudos, foi assistente de direção, diretor de arte, roteirista,
cenógrafo, figurante e diretor. Lançou ao estrelato jovens desconhecidos como
Shirley MacLaine e Anthony Perkins, e trabalhou com grandes estrelas como Grace
Kelly, Ingrid Bergman, Cary Grant e James Stewart.
Tinha enorme
prazer em falar e escrever sobre como trabalhava (isso não apenas servia a
propósitos publicitários), chamando atenção para o seu domínio da arte cinematográfica
e satisfazendo a ânsia do público por uma perspectiva dos bastidores a respeito
de como os filmes são feitos, mas também tinha importantes funções críticas e
teóricas. Mantinha um diálogo contínuo com os críticos e o público espectador.
Publicações
de livros, artigos em revistas especializadas, congressos e festivais de cinema
não param de elogiar seus filmes. É conhecido como o mestre de filmes
suspenses. Influencia até hoje incontáveis diretores, suas técnicas cinematográficas
foram utilizadas e aprimoradas, e em alguns filmes literalmente copiadas. Alunos
e professores de cursos de cinema e comunicação de faculdades espalhadas pelo
mundo apresentam monografias e teses acadêmicas sobre a sua obra. Morreu em 29
de abril de 1980.
Charles
Chaplin e Alfred Hithcock são os meus diretores favoritos. Marcaram
definitivamente meu prazer pelo cinema. Depois vieram outros excelentes. Mas eles
me conquistaram. Encantamento infantil “chapliniano” curiosidade adolescente
“hithcockiana”.
Vou destacar e
dar ênfase a um dos ângulos do filme com o qual mais me identifiquei. Esclareço
que este ângulo foi para mim uma surpresa. Já assisti inúmeras vezes esse filme,
mas não tinha sido influenciado pela perspectiva que destaco abaixo. É a
comprovação de que mudamos a cada instante. Portanto, minha perspectiva é especulativa
e recai sobre as observações que fiz sobre os comportamentos das personagens
representadas por Kim Novak e James Stewart. Esses comportamentos estão
inseridos em um contexto de suspense, que persistem durante a maior parte do
filme, envolvidos pela música e fotografia excepcionais. Esses dois elementos
(música e fotografia) enfatizam o desempenho dos atores na vivência das suas
personagens. É a partir do desempenho dos atores que faço as especulações sobre
os processos mentais dos personagens veiculados na tela. Acredito que esses
processos interagem com o público de forma indireta ou diretamente. É o filme
mais sensual de Hithcock.
Começo
chamando atenção para a abertura do filme. Por favor, fixe o olhar e prestem bem
atenção no formato do objeto que circula, entra e sai pelo olho de uma figura
feminina, cresce e some, muda de cor e de lado da tela, cresce e some, misturado
as cores vibrantes em painel de néon. O objeto muda de tamanho, mas o formato
não muda.
Pergunto:
Não é um rodamoinho ou remoinho(segundo o Dicionário Aurélio, movimento
circular e forte, de pequeno diâmetro, que se processa em espiral, da
superfície para o fundo, nas águas de um rio ou mar) que vemos? Mas que também
pode ser a figuração de uma fobia, de uma compulsão, de uma possessão?
Vou chamar
esse objeto de figura da Paixão. Paixão em todos os sentidos. Aquela sensação
que nos desorienta. Uma sensação de aprisionamento, de um corpo fragmentado,
desequilibrado, sujeito às fortes oscilações de humor, que nos faz refém e totalmente
entregue a um dos nossos cinco sentidos (visão, olfato, paladar, audição e
tato). Imagens que incorporamos e idealizamos sob a qual não temos nenhum
controle consciente. Exemplos: comida, bebida, corpo, política, religião, dinheiro,
poder, glória, fama etc, e por uma determinada pessoa. Toda
paixão, para ser Paixão com letra maiúscula é movida por uma compulsão.
No filme o
que está sendo mostrado é a potência da paixão entre indivíduos. Quem vivenciou
ou vivencia uma paixão por uma pessoa saberá o que está acontecendo com os
personagens. Trata-se de uma experiência intensa (existem pessoas que vivem ou
imaginam vivenciar paixões o tempo todo). O título Um Corpo que Cai é uma
metáfora deste sentimento. Um corpo que é sugado por um encantamento
embriagador numa espécie de transe místico, pelos pequenos gestos, pelo cheiro
da pele.
Peço
desculpas, mas preciso direcionar o olhar de vocês para transmitir a minha
especulação. Para abreviar, vou a partir deste momento mencionar apenas
Kim e Stewart.
Observem o
deslumbramento de Stewart na primeira cena em que aparece Kim. É claro que ele
não poderá ser descoberto, uma vez que ele foi “contratado” para segui-la. Mas
isso não explica o seu deslumbramento ao ver Kim de costas, ombros descobertos,
sair do fundo do restaurante, envolvida em um cenário com cores vibrantes
contrastando com seus cabelos louros que reluz como se fosse ouro. Stewart
disfarça, mas ao mesmo tempo seu olhar parece indicar que ele foi envolvido por
uma potência desconhecida.
Enquanto Stewart
segue Kim vai sendo envolvido pela fragilidade de Kim. Fragilidade que o deixa
embevecido quando se torna um herói ao salvá-la. Seus corpos entram em contato.
Na cena seguinte Kim esnoba em sensualidade. Dizem que um dos fetiches entre os
indivíduos é vê o outro vestindo roupas opostas ao seu sexo. É assim que Kim se
apresenta a Stewart.
Roupas
penduradas indicam que Stewart manteve um primeiro contato com o corpo de Kim.
Com os olhos petrificados, faz uma oferenda (café) indicando o trono próximo à
lareira, local que simboliza a chama que ilumina o templo dos deuses ou das
deusas. Ele está sendo sugado pela paixão.
Nos minutos
finais do filme vocês verão que a situação se inverte. É Stewart que irá
pilotar Kim. Mas isso vocês irão descobrir. Como aperitivo relato apenas que o
personagem de Kim irá ressuscitar aos olhos de Stewart numa das cenas mais
bonitas do filme. Chega! Não conto mais, nem que “a vaca tuça”.
Já faz algum
tempo que a Diva me deu a cópia de um livro intitulado Curso de Psicopatologia
que ela utilizou na faculdade. De vez em quando eu o vasculho tentando fazer
uma autoterapia. Prefiro terapia de choque. Já me diagnostiquei com uns oito ou
nove sintomas. É meu livro preferido de auto-ajuda. Não está a venda nas
livrarias. Dizem que esgotou. Quem estiver procurando fórmulas gabaritadas de
qualidade de vida, recomendo a leitura deste
livro. Depois de conhecer todos os sintomas classificados pela
psiquiatria, vocês podem decidir se cortam os pulsos ou se jogam num
precipício. Vocês irão entender porque os psiquiatras são pessoas tão amáveis e
a maioria se suicida. Como vocês já perceberam “eu amo” a psiquiatria!!!
Pensei em
descrever o que é fobia ou acrofobia, compulsão e possessão, mas mudei de
idéia. Não quero causar uma má impressão. Eu empresto o livro se quiserem saber.
Hithcock
insere a possessão, alucinações, fobias e obsessão na trama do suspense do
filme. Cria até um modelo terapêutico de cura.
Retorno ao
filme.
Quem
adivinhar em que cena o Hithcock aparece, ganha uma coxinha de galinha do
mercado do Juca, ok?
Tenho que
mencionar dois detalhes importantíssimos do filme. Relaxe os olhos e abra os
ouvidos (ou vice versa). Goze com a fotografia e com a música, e limpe as “pupilas
degustativas” e os tímpanos.
A música é
utilizada para criar uma “atmosfera”. Gerar excitação. Aumentar a intensidade
da interpretação visual dos atores na cena, cadenciar ou dar mais vigor aos
gestos. A música também pode ser um pano de fundo para a cena e um comentário
sem a formalização do diálogo. Exerce a função do diálogo em uma cena muda e age
como um trampolim psicológico das emoções sem que o público perceba. Ela torna
possível expressar o que não é dito. A base do apelo cinematográfico é
emocional. Dúvidas, interrogações, fascínio, discordâncias, desejos, aflições,
medo e tudo que possa humanizar os atores, aproximando-os dos sentimentos do
público.
Antes de
comentar sobre a fotografia do filme, menciono dois comentários de Hitchcock
sobre como escolhia as atrizes principais do elenco:
1)O principal
critério que sigo ao selecionar minha heroína é que ela deve ser do tipo que
agrade às mulheres, mais que aos homens, porque três quarto da platéia média de
cinema é constituída por mulheres. Portanto, nenhuma atriz pode ser uma boa
sugestão comercial como heroína de um filme, se não agradar a seu próprio sexo.
2) Uma
heroína de cinema não deve ter altura acima da média; de fato, ser pequena é
definitivamente uma virtude. Uma atriz pequena não apenas fotografa melhor que
a que “se ergue a alturas imponentes” – especialmente em cena de
close – como também agrada mais a platéia, que gosta de ver a cabeça
cacheada da heroína aninhada no peito másculo do herói. Por isso é que
praticamente todas as atrizes que alcançaram sucesso no cinema em papéis
românticos e sentimentais são baixinhas.
Fotografia.
Kim e Stewart são vasculhados de ponta a cabeça. Ela, de perfil, de corpo
inteiro, da cintura para cima. Esbanja sedução. Ele, no rosto e nos olhos azuis
petrificados. Ambos em primeiro plano.
Hitchcock
disse numa entrevista anos depois a François Truffaut que Kim Novak não usava
sutiã e se gabava disso.
Na cópia
restaurada vocês irão perceber que isso é verdade. Pelo que eu sei, não sou
catedrático no assunto, nenhuma atriz daquele período do cinema foi tão ousada.
Outro detalhe
que compõe a fotografia são as roupas que Kim veste, os automóveis, o vermelho
das paredes e do tapete do restaurante onde Stewart a vê pela primeira vez quando
Kim acompanhada o marido.
Reparem que a
câmara se aproxima e fixa um ponto quando precisa acentuar os momentos mais emocionalmente
intensos em ambientes fechados (por exemplo: beijos, abraços, luta etc ou para
acentuar um detalhe importante como no caso do colar), e se distancia em locais
públicos para que o(a) observador(a) possa identificar o local da cena (por
exemplo: quando Stewart observa Kim na galeria de arte ou no cemitério, quando
Stewart vê Kim entrando no hotel etc). Mas, a câmara pode fotografar ambientes internos
simulados no estúdio como se fossem externos (exemplo: quando Stewart está
pendurado na calha do telhado; nas cenas em Stewart dirigi o carro etc).
Música e
fotografia são irmãs siamesas das imagens onde desliza os olhos do público nas
finas películas dos fotogramas da celulose. Por isso Hithcock dizia que o
cinema mudo era a essência da arte cinematográfica. (Reinaldo Silva)
Para quem já viu o filme varias vezes, proponho um exercício mental interessante.Veja o filme a partir das duas camadas, no minimo , que o filme apresenta.A primeira, o filme policial classico, o filme de suspense. Optando por essa perspectiva, verá um James Stewart, reunindo peças, fatos, para desvendar o crime.Se desligue dessa perspectiva , é veja o filme a parir da espiral psicológica que ele propõe: a loucura , a obsessão de " Scottie" e de Kim Novak. Na cena seguinte, tente descobrir, com olhares de investigação, o crime. Volte mentalmente a cena e tente perceber a cena anterior com a perspectiva psicológica, vá, volte e perceba a espiral que é a vertigem que o gênio de Alfred Hitchcock propõe.
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