segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Um Corpo Que Cai( 1958;Alfred Hitchcock)


Indicação do filme, apresentação e texto: Reinaldo Silva

Alfred Hithcock nasceu em 1899 em Londres (Inglaterra). Sua contribuição para a arte cinematográfica é inestimável. Em 54 anos de atividade, entre 1922 e 1976, ele dirigiu 53 longas-metragens.
Começou no cinema mudo e teve de se adaptar ao falado; foi do preto e branco (a seu ver o mais adequado à linguagem visual do suspense) ao colorido, e ainda realizou experiências pioneiras com o tecnicolor e a terceira dimensão. Dos estúdios londrinos a Hollywood, Hithcock fez de tudo; escreveu e desenhou letreiros de filmes mudos, foi assistente de direção, diretor de arte, roteirista, cenógrafo, figurante e diretor. Lançou ao estrelato jovens desconhecidos como Shirley MacLaine e Anthony Perkins, e trabalhou com grandes estrelas como Grace Kelly, Ingrid Bergman, Cary Grant e James Stewart.
Tinha enorme prazer em falar e escrever sobre como trabalhava (isso não apenas servia a propósitos publicitários), chamando atenção para o seu domínio da arte cinematográfica e satisfazendo a ânsia do público por uma perspectiva dos bastidores a respeito de como os filmes são feitos, mas também tinha importantes funções críticas e teóricas. Mantinha um diálogo contínuo com os críticos e o público espectador.
Publicações de livros, artigos em revistas especializadas, congressos e festivais de cinema não param de elogiar seus filmes. É conhecido como o mestre de filmes suspenses. Influencia até hoje incontáveis diretores, suas técnicas cinematográficas foram utilizadas e aprimoradas, e em alguns filmes literalmente copiadas. Alunos e professores de cursos de cinema e comunicação de faculdades espalhadas pelo mundo apresentam monografias e teses acadêmicas sobre a sua obra. Morreu em 29 de abril de 1980.
Charles Chaplin e Alfred Hithcock são os meus diretores favoritos. Marcaram definitivamente meu prazer pelo cinema. Depois vieram outros excelentes. Mas eles me conquistaram. Encantamento infantil “chapliniano” curiosidade adolescente “hithcockiana”.
Vou destacar e dar ênfase a um dos ângulos do filme com o qual mais me identifiquei. Esclareço que este ângulo foi para mim uma surpresa. Já assisti inúmeras vezes esse filme, mas não tinha sido influenciado pela perspectiva que destaco abaixo. É a comprovação de que mudamos a cada instante. Portanto, minha perspectiva é especulativa e recai sobre as observações que fiz sobre os comportamentos das personagens representadas por Kim Novak e James Stewart. Esses comportamentos estão inseridos em um contexto de suspense, que persistem durante a maior parte do filme, envolvidos pela música e fotografia excepcionais. Esses dois elementos (música e fotografia) enfatizam o desempenho dos atores na vivência das suas personagens. É a partir do desempenho dos atores que faço as especulações sobre os processos mentais dos personagens veiculados na tela. Acredito que esses processos interagem com o público de forma indireta ou diretamente. É o filme mais sensual de Hithcock.
Começo chamando atenção para a abertura do filme. Por favor, fixe o olhar e prestem bem atenção no formato do objeto que circula, entra e sai pelo olho de uma figura feminina, cresce e some, muda de cor e de lado da tela, cresce e some, misturado as cores vibrantes em painel de néon. O objeto muda de tamanho, mas o formato não muda.
Pergunto: Não é um rodamoinho ou remoinho(segundo o Dicionário Aurélio, movimento circular e forte, de pequeno diâmetro, que se processa em espiral, da superfície para o fundo, nas águas de um rio ou mar) que vemos? Mas que também pode ser a figuração de uma fobia, de uma compulsão, de uma possessão?
Vou chamar esse objeto de figura da Paixão. Paixão em todos os sentidos. Aquela sensação que nos desorienta. Uma sensação de aprisionamento, de um corpo fragmentado, desequilibrado, sujeito às fortes oscilações de humor, que nos faz refém e totalmente entregue a um dos nossos cinco sentidos (visão, olfato, paladar, audição e tato). Imagens que incorporamos e idealizamos sob a qual não temos nenhum controle consciente. Exemplos: comida, bebida, corpo, política, religião, dinheiro, poder, glória, fama etc, e por uma determinada pessoa. Toda paixão, para ser Paixão com letra maiúscula é movida por uma compulsão.
No filme o que está sendo mostrado é a potência da paixão entre indivíduos. Quem vivenciou ou vivencia uma paixão por uma pessoa saberá o que está acontecendo com os personagens. Trata-se de uma experiência intensa (existem pessoas que vivem ou imaginam vivenciar paixões o tempo todo). O título Um Corpo que Cai é uma metáfora deste sentimento. Um corpo que é sugado por um encantamento embriagador numa espécie de transe místico, pelos pequenos gestos, pelo cheiro da pele.
Peço desculpas, mas preciso direcionar o olhar de vocês para transmitir a minha especulação. Para abreviar, vou a partir deste momento mencionar apenas Kim e Stewart.
Observem o deslumbramento de Stewart na primeira cena em que aparece Kim. É claro que ele não poderá ser descoberto, uma vez que ele foi “contratado” para segui-la. Mas isso não explica o seu deslumbramento ao ver Kim de costas, ombros descobertos, sair do fundo do restaurante, envolvida em um cenário com cores vibrantes contrastando com seus cabelos louros que reluz como se fosse ouro. Stewart disfarça, mas ao mesmo tempo seu olhar parece indicar que ele foi envolvido por uma potência desconhecida.
Enquanto Stewart segue Kim vai sendo envolvido pela fragilidade de Kim. Fragilidade que o deixa embevecido quando se torna um herói ao salvá-la. Seus corpos entram em contato. Na cena seguinte Kim esnoba em sensualidade. Dizem que um dos fetiches entre os indivíduos é vê o outro vestindo roupas opostas ao seu sexo. É assim que Kim se apresenta a Stewart.
Roupas penduradas indicam que Stewart manteve um primeiro contato com o corpo de Kim. Com os olhos petrificados, faz uma oferenda (café) indicando o trono próximo à lareira, local que simboliza a chama que ilumina o templo dos deuses ou das deusas. Ele está sendo sugado pela paixão.
Nos minutos finais do filme vocês verão que a situação se inverte. É Stewart que irá pilotar Kim. Mas isso vocês irão descobrir. Como aperitivo relato apenas que o personagem de Kim irá ressuscitar aos olhos de Stewart numa das cenas mais bonitas do filme. Chega! Não conto mais, nem que “a vaca tuça”.  
Já faz algum tempo que a Diva me deu a cópia de um livro intitulado Curso de Psicopatologia que ela utilizou na faculdade. De vez em quando eu o vasculho tentando fazer uma autoterapia. Prefiro terapia de choque. Já me diagnostiquei com uns oito ou nove sintomas. É meu livro preferido de auto-ajuda. Não está a venda nas livrarias. Dizem que esgotou. Quem estiver procurando fórmulas gabaritadas de qualidade de vida, recomendo a leitura deste  livro. Depois de conhecer todos os sintomas classificados pela psiquiatria, vocês podem decidir se cortam os pulsos ou se jogam num precipício. Vocês irão entender porque os psiquiatras são pessoas tão amáveis e a maioria se suicida. Como vocês já perceberam “eu amo” a psiquiatria!!!
Pensei em descrever o que é fobia ou acrofobia, compulsão e possessão, mas mudei de idéia. Não quero causar uma má impressão. Eu empresto o livro se quiserem saber.
Hithcock insere a possessão, alucinações, fobias e obsessão na trama do suspense do filme. Cria até um modelo terapêutico de cura.
Retorno ao filme.
Quem adivinhar em que cena o Hithcock aparece, ganha uma coxinha de galinha do mercado do Juca, ok?
Tenho que mencionar dois detalhes importantíssimos do filme. Relaxe os olhos e abra os ouvidos (ou vice versa). Goze com a fotografia e com a música, e limpe as “pupilas degustativas” e os tímpanos.
A música é utilizada para criar uma “atmosfera”. Gerar excitação. Aumentar a intensidade da interpretação visual dos atores na cena, cadenciar ou dar mais vigor aos gestos. A música também pode ser um pano de fundo para a cena e um comentário sem a formalização do diálogo. Exerce a função do diálogo em uma cena muda e age como um trampolim psicológico das emoções sem que o público perceba. Ela torna possível expressar o que não é dito. A base do apelo cinematográfico é emocional. Dúvidas, interrogações, fascínio, discordâncias, desejos, aflições, medo e tudo que possa humanizar os atores, aproximando-os dos sentimentos do público.
Antes de comentar sobre a fotografia do filme, menciono dois comentários de Hitchcock sobre como escolhia as atrizes principais do elenco:
1)O principal critério que sigo ao selecionar minha heroína é que ela deve ser do tipo que agrade às mulheres, mais que aos homens, porque três quarto da platéia média de cinema é constituída por mulheres. Portanto, nenhuma atriz pode ser uma boa sugestão comercial como heroína de um filme, se não agradar a seu próprio sexo.
2) Uma heroína de cinema não deve ter altura acima da média; de fato, ser pequena é definitivamente uma virtude. Uma atriz pequena não apenas fotografa melhor que a que “se ergue a alturas imponentes” – especialmente em cena de close – como também agrada mais a platéia, que gosta de ver a cabeça cacheada da heroína aninhada no peito másculo do herói. Por isso é que praticamente todas as atrizes que alcançaram sucesso no cinema em papéis românticos e sentimentais são baixinhas.
Fotografia. Kim e Stewart são vasculhados de ponta a cabeça. Ela, de perfil, de corpo inteiro, da cintura para cima. Esbanja sedução. Ele, no rosto e nos olhos azuis petrificados.  Ambos em primeiro plano.
Hitchcock disse numa entrevista anos depois a François Truffaut que Kim Novak não usava sutiã e se gabava disso.
Na cópia restaurada vocês irão perceber que isso é verdade. Pelo que eu sei, não sou catedrático no assunto, nenhuma atriz daquele período do cinema foi tão ousada.
Outro detalhe que compõe a fotografia são as roupas que Kim veste, os automóveis, o vermelho das paredes e do tapete do restaurante onde Stewart a vê pela primeira vez quando Kim acompanhada o marido.
Reparem que a câmara se aproxima e fixa um ponto quando precisa acentuar os momentos mais emocionalmente intensos em ambientes fechados (por exemplo: beijos, abraços, luta etc ou para acentuar um detalhe importante como no caso do colar), e se distancia em locais públicos para que o(a) observador(a) possa identificar o local da cena (por exemplo: quando Stewart observa Kim na galeria de arte ou no cemitério, quando Stewart vê Kim entrando no hotel etc). Mas, a câmara pode fotografar ambientes internos simulados no estúdio como se fossem externos (exemplo: quando Stewart está pendurado na calha do telhado; nas cenas em Stewart dirigi o carro etc).
Música e fotografia são irmãs siamesas das imagens onde desliza os olhos do público nas finas películas dos fotogramas da celulose. Por isso Hithcock dizia que o cinema mudo era a essência da arte cinematográfica. (Reinaldo Silva)

Um comentário:

  1. Para quem já viu o filme varias vezes, proponho um exercício mental interessante.Veja o filme a partir das duas camadas, no minimo , que o filme apresenta.A primeira, o filme policial classico, o filme de suspense. Optando por essa perspectiva, verá um James Stewart, reunindo peças, fatos, para desvendar o crime.Se desligue dessa perspectiva , é veja o filme a parir da espiral psicológica que ele propõe: a loucura , a obsessão de " Scottie" e de Kim Novak. Na cena seguinte, tente descobrir, com olhares de investigação, o crime. Volte mentalmente a cena e tente perceber a cena anterior com a perspectiva psicológica, vá, volte e perceba a espiral que é a vertigem que o gênio de Alfred Hitchcock propõe.

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