segunda-feira, 20 de março de 2017

Memória Para Uso Diário(2007;Beth Formaggini)


Apresentação do filme : Cecilia Coimbra
Indicação do filme : Joaquim Ferreira
Texto: Reinaldo Silva

A apresentação generosa que a Cecília fez deste documentário, os seus esclarecimentos, as indagações que continuam sem respostas sobre o desaparecimento de militantes políticos que pertenciam aos grupos guerrilheiros de esquerda, numa época histórica dominada pelas ditaduras militares em toda região do continente da América Latina, vai além de uma luta política de caráter ideológico para tomada do poder do Estado.
Vai além porque não se trata apenas de pessoas que lutam explicitamente contra um regime autoritário. Isso fica esclarecido nos depoimentos das narrativas. São mulheres em busca de “corpos infames”, classificação genérica para “marginais”,”terroristas”, “favelados”, “desocupados”, “traficantes” etc. Eles desapareceram, continuam a desaparecer e são ameaçados de extermínio. São matérias primas cultivadas pelos dominantes ocasionais que regulam a violência jurídica, manipulando o sentido das leis, ampliando a força política de um Estado aparelhado para difusão do medo, esse sentimento que nos torna refém de grupos interessados na manutenção do silêncio e do cinismo socialmente devastador, que conforma nossas ações e pensamento.
É fundamental mencionar que o filme foi realizado por mulheres em busca de respostas para o desaparecimento de seus filhos e filhas, de seus parentes e amigos. Há um elo que une essas mulheres. Todas as mulheres, que isso fique claro. Uma cumplicidade oriunda de um sentimento ancestral de parir a vida humana quando da ameaça e da perda inexplicável de um corpo humano gerado. Mulheres que não foram silenciadas, que não aceitam as explicações dos representantes dos dominantes. Não aceitam o chavão dos torturadores nazistas: “estava apenas cumprindo ordens”. Também não aceitam dogmas freqüentemente utilizados pelas mídias, que serviram e servem como indutores da prática da tortura.
Basta assistirmos os programas de apelos com dramatização de seus apresentadores nos diversos canais abertos da televisão ou as manchetes explícitas dos jornais e revistas semanais, onde se justificam assassinatos de pessoas, onde são entrevistados todos os justiceiros de uma justiça justa, entronizados como defensores da ordem pública para manter privilégios. Aquelas mulheres não aceitam a “banalidade do mal”, porque o “mal” não vem das trevas. Ele é reproduzido cotidianamente para enfraquecer pela força que manipula o medo. O “mal” não é um ser abstrato que paira sobre as nossas cabeças. Não há como esquecer. Não querem esquecer. O silêncio não é aliado da Memória que está exposta neste documentário. A “sublimação” não é uma saída ou um contorno substituto da dor dessas mulheres.

Por uma genealogia da violência na formação social brasileira.

Esse tema é fundamental para entender a nossa formação da violência em nossa sociedade. E de todos nós. E de fazermos as mesmas perguntas para nós mesmos e nos lugares onde estamos envolvidos, nos espaços em que convivemos ou desejamos conviver, nas ocasiões em que o tema “A Violência” for debatida em seus diversos aspectos:
“o que estamos fazendo de nossas vidas?”; “em condições sociais queremos viver?”; “o que nos fortalece ou entristece na sociedade em que vivemos”; “como mudar o nosso pensamento e as formas de ações que estão inseridos em nossa formação social?”.
 No meu entender, qualquer análise cujo objetivo seja a elaboração de uma genealogia da violência na formação social brasileira, terá que levar em consideração esse documentário e os filmes do diretor Sérgio Bianchi, principalmente o seu filme “quanto vale ou é por quilo?”.
Faço uma ponte interpretativa entre esses dois elementos sobre a gênese, a continuidade e sofisticação da violência em nossa formação social desde o período colonial. Os pressupostos da violência como um corpo presente nas interpretações dos principais estudiosos do tema, dos documentos, vídeos etc.
Mas o que é uma genealogia?
Ela parte de uma constatação. Não há nada em nossa cultura que não tenha uma história, um desenvolvimento, laços contínuos e descontínuos. E que permanecem em nossas ações sobre formas de resíduos conscientes ou inconscientes. Não nascemos prontos. Somos afetados e afetamos o mundo com nossas ações. Uma espécie de molécula com suas enzimas em constantes mudanças. O que pensamos e nossos sentimentos não são frutos de meros acasos. Não existe um tal de livre-arbítrio. Agimos em função dos ensinamentos transmitidos na cadeia de relacionamento que fazemos desde a nossa infância, seja no ambiente familiar e nas relações sociais que mantemos ou iremos manter ao longo de nossa vida.
Não é aqui o local propício para o desenvolvimento de uma genealogia da violência na formação social brasileira. Para isso seria necessário dispor de documentos, desde a nossa colonização a origem histórica desta violência, sua transmissão secular, os dispositivos que a tornam possível ainda hoje, como por exemplo, as mídias de todos os gêneros pela importância que exercem na contemporaneidade. A utilização de métodos arqueológicos, que servissem como uma espécie de pá para retirar os traços da violência, que dia a dia nos é apresentada de maneira naturalizada e banalizada sobre as imagens exemplares da justiça dos agentes defensores de nossa segurança.
Talvez nossos preconceitos e nossos medos fossem compreendidos de uma forma diferente do temor que sentimos ao nos aproximar de pessoas que consideramos estranhas.
Por isso acredito que as mulheres que vem a público por intermédio deste documentário exigir que os “corpos infames” sejam localizados, fazem uma arqueologia em busca de uma genealogia da violência na formação social brasileira.
 Abraços
Reinaldo





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