Indicação e apresentação do filme: Reinaldo Silva e Joaquim Ferreira
Texto: Filippi Fernandes
A câmera se posiciona em direção ao túnel, de formato oval. Vê-se a grama na
lateral e as paredes de tijolos encardidos pela fumaça. O túnel parece um dos
mais ordinários. Tanto que se não fosse pelo movimento rítmico do comboio, não
entraria. Se trata de um trem, ao que tudo indica. A fumaça, o apito, a tração.
Por incrível que pareça há a presença do verde nas laterais, típica das
paisagens esquecidas (vide "Stalker", por exemplo).
O trem entra com tudo. Por algum tempo, o que se vê é o que se ouve: o
ruído dos metais, o ritmo mecanizado, ininterrupto e sem pausa para
reticências, como num adormecer das imagens. Mas o shot que se segue,
acorda. E ele é o mais traiçoeiro de todos, pois dali todo um argumento se
construirá. O trem sai do túnel - é o que a imagem falsamente revela. No
interior de um vagão vê-se um homem adormecido. Diante dele, uma garrafa de
vidro com água e uma mulher vestida elegantemente. O homem dorme sentado,
encostando o queixo no peito. Mas ele não dorme como aqueles que vemos no metrô.
Ele dorme mediante uma situação irrisória num trem que se agita, num trem que
bamboleia e o faz saltar de segundo a segundo. A mulher sentada à sua frente o
olha, o observa com um quê de sorriso nos lábios, tal qual uma criança
indefesa. Quando a garrafa de vidro está prestes a cair, age como em reflexo,
segurando-a a tempo. Parece não estar de todo desconectado, como aparenta. Abre
os olhos lentamente como quem se espreguiça e se depara com ninguém menos
que...ela. Ela, por onde toda aquela aventura de afetos começará, ela a mulher
fetiche, ela, tão somente ela. O sorriso morno se abre. A mulher relança um
sedutor olhar e um quê tanto interessado. Talvez ainda mordesse a ponta dos
lábios. E antes de qualquer palavra, sai.
Ele é motivado a ir atrás daquele mistério. No corredor estreito das longas
horas, há uma miríade de pessoas de todos os tipos, de todas as classes,
pessoas que ocupam o corredor tão somente para afastá-lo do mistério. Ele não
desiste fácil. Consegue se desvencilhar deles até chegar no que seria um
banheiro feminino. Põe-se a observar pela porta entre-aberta, a mulher em
frente ao espelho. E com muito cuidado e discrição, entra. Assim que entra,
fecha a porta, como bem entendedor de olhares e de mistérios. A partir daí, há
todo um jogo de mãos e enquadramentos angulares que, se não fosse felliniano,
certamente passaria por brassiano: mãos masculinas nas nádegas femininas,
aquela que tudo tem, aquele que nada tem etc etc. E a prova disso são as luzes
vermelhas e azuis ao fundo, bem atrás da privada, tal qual estivessem numa
boate que sacoleja e chacoalha os aventurados para emoções desfigurantes. No
entanto, o trem repentinamente para e um cai sobre o outro, quebrando a magia
do instante proibido, tal qual um pai que bate na porta do filho ou filha. É
anunciada a chegada numa tal estação. A mulher precisa descer. O homem fica a
segurar o desejo nos braços, como se fosse o grande beneficiário. Tenta
convencê-la a ter pena dele. Mas ela já conhece aquele jargão e sai.
Ele a segue com mais vontade e, na tentativa de fazê-la ouvir, se delicia ao
saber que ela é uma aventura, uma "maluca", como diz, ao constatar
que ela desce no mato, no sentido contrário à estação. Ele a segue. Precisa
morrer em gozo consagrado, nas experiências televisionadas em altas horas da
madrugada. O trem precisa partir, o seu desejo também. Os olhos ficam centrados
e o chama a cada momento, a cada segundo, naquele caramanchão palpitante.
Quando se dá conta, a razão se foi e com ela, o trem e os compromissos de
carreira. É preciso seguir em frente, naquele matagal alto, naquele desejo de
amém. Acelera os passos e consegue alcançá-la, junto a uma árvore. Como
adolescentes, atuam. Ela o engana ao dizer que há surpresas e pede para fechar
os olhos. Mas não há nada, pois o maior interessado é ele, conhecedor de peias,
ao segurar seu falo erguido e irrequieto. Ele que precisa de uma ajudinha. Ela
o entende, como se o conhecesse e desaparece aos seus olhos. Retoma a busca,
sedento, até encontrá-la novamente. Nesse ínterim, acaba encontrando um tal
arco ou faixa gigante com alguns letreiros sinuosos. E antes mesmo que pudesse
ler, escuta várias vozes femininas alvoroçadas. Ali, bem ali. Sua curiosidade
alucina. Ali passa a ser o seu panteão: mulheres de todos os tipos, de todos os
gostos e atravessamentos. Mulher-gorila, mulher-futeboleira, mulher-diretora,
mulher-intelectual,mulher-sirigaita, mulher-diva, mulher-policial,
mulher-cavaleira, mulher-diagramadora, mulher-psicanalista, mulher-frida,
mulher-salomé, mulher-amazona, mulher-garçonete e todo uma plêiade de ofícios,
nomes, tipos e atitudes conscientizantes e conscientizadoras. Tratava-se de um
congresso de feministas, tão e simplesmente. Algo do qual a modernidade
precisa, enquanto houver a sevícia e a falta de comunicação, enquanto houver a
imobilidade objetificadora em um dos lados.
Elas não estão conversando ali sobre paixão ou amor,mas sobre auto-gestão,
auto-defesa, em como aprender a conviver com a solidão. Mas ele quer e por
querer, adentra aquele país em busca do desejo perdido. Os homens que antes
administravam o hotel ficam atordoados pelo reino destituído. Naquele hall de
entrada, há uma confluência de feminilidades e extravagâncias, sobes e desces,
esquerdas e direitas, só faltando a quem possa se dependurar no lustre de
cristal, naquele palácio de inverno agora conquistado pelas invaginações.
O invasor adentra. Assiste a toda aquela militância com uma certa satisfação
e curiosidade. Ninguém o vê ali. Em cada sala uma atividade, cada qual mais
lúdica que a anterior. Cinema e teatro à serviço da informação e do humor. Mas
ele contempla, sobretudo, atrás das pilastras de mármore, aquela masculinidade
esquadrinhada pela sensibilidade feminina. Para ele está claro: são universos
distintos. O leitor arguto, contudo, perceberá que o que há aí de paralelo foi
construído, que acima de qualquer brincadeira e fundo de verdade há Thânatos e
Eros, e que os adultos sofrem de infantilismo mental. O intruso ali, de
repente, é capturado pelo olhar da mulher que o atraíra até ali e que, no meio
de tantas outras feministas, o entrega com várias verdades sobre seu machismo
descarado. Ele recua, recua, até que a indiferença verta em inferno sem sombra,
nem água. Ele cresce de tamanho de uma hora para outra e passa a ser o modelo
do ódio delas, a configuração das certezas delas.
Numa das salas daquele palácio, um silêncio o surpreende. Ali, uma
mulher-ideal o seduz, chamando-o para patinar. Babão, segue. Lá descobre a
desgraça: que está entregue à elas e que tudo ali conspira contra seus pulmões.
Um mundo de mulheres patinadoras o cerca, girando, girando, e ele que cai e não
consegue sequer ficar em pé, como um velho indefeso. É então empurrado
maldosamente pelas escadas. Malévolas, todas. Ao levar o tombo, sente-se num
porão e pela sombra uma bruxa o convida para levá-lo à estação. Ela troca de
roupa no biombo e logo se presta a colocá-lo na moto. No caminho, percebe
que se meteu numa furada mais uma vez, quando ao chegar numa plantação de
couves, é conduzido a entrar numa das estufas e ser forçado a ter relações com
ela ali, com aquele feminil consumido pelo tempo. Não, aquela ele não quer. E
ela o deita num local, ao lado de um ursinho de pelúcia. Ele tenta se
desvencilhar até que alguém o surpreende. Uma senhora fica invocada com a situação
e se intitula mãe da bruxa. Depois dessa cena televisiva, a bruxa ordena que
uma jovem ali próximo, o leve até a estação. A jovem, de pouco papo, o conduz
até um carro, repleto de moças jovens. Sente-se melhor assim. No entanto, ele
há de convir que as aparências às vezes enganam. Embriagadas, putas, e com um
jeito meio punk, elas o infernizam com cigarros, música eletrônica em alto
volume e outras extravagâncias dos rebeldes sem causa. Mais à frente encontra
um outro carro e repentinamente parece animá-la para algo mais atentador: a
corrida. Quando ficaram prestes a se esborrachar, ele desiste o solta do carro.
Os carros o perseguem, acendendo as luzes, num terror circense.
A saída é dada pelo palacete de um tal conquistador de mulheres, que torna a
atirar contra os carros. Ele é uma espécie de leão, Zeus a remexer seus bigodes
finos de relâmpago - olhos largos, cristalizados. Ele ali parece encontrar um
amigo, um ideal de amizade. Ele mostra toda uma coleção de presentes exóticos
ofertado por suas pretendentes, ao lado dos seus três cães de caça. Seu nome
deveria ser caçador. Ele, de robe, o alimenta com fantásticas históricas de
conquistas. 1000 mulheres, segundo ele.
Ele é obrigado a ficar em sua mansão. Aproveita para explorar a casa e se
depara com um cômodo gigante com uma série de painéis instalados e um botão
vermelho. Aperta o primeiro. A imagem da vítima aparece e, abaixo do botão, um
som capturado por ele, no momento do enlace. Isso o diverte e estimula. Se Zeus
aparecesse ali novamente, seria capaz de lhe dar um abraço por ter realizado um
sonho de que nunca seria capaz de realizar. Há centenas e centenas de quadros
de todos os tamanhos e mulheres para todos os gostos, muitas inclusive
glamourizadas, como atriz de cinema. A luz que projeta a imagem só é disparada
com o botão vermelho. E há quadros de vidro cobrindo toda a parede, tal qual as
galerias inglesas de Conversation Pieces. Mais adiante se depara com uma
mulher. É a sua mulher, que de súbito aperta um botão acionando todos os botões
simultaneamente. Juntas, dão a impressão de qualquer coisa de perdido, qualquer
coisa de incompleto e até inútil. Talvez nunca possa dar-se ao trabalho de
colocar as escadas para apertar aqueles botões individualmente.
Ele se desculpa por ter perdido o trem. Sua mulher tem um rosto pálido, boca
vermelha e parece representar assim a mulher-casada, tudo aquilo que as
feministas não querem para elas. Nervosa e infeliz, ele tenta encontrar
justificativa (pois sempre há uma resposta para suas perguntas). Zeus aparece
descendo as escadas, com um ar de vitorioso e o convida para uma suposta festa
oferecida para celebrar o 1000º caso. Ele fica encantado por estar ali com
aquela pessoa que muito o estima e, ainda por cima, ao lado de sua esposa, que
estranhamente o esperava ali (talvez nunca tenha se perguntado).
Ele se apruma para o tal aniversário. As empregadas fêmeas o conduzem até
uma determinada senhora, a única mais velha, que poderia ser, inclusive, a mãe
de Zeus. Eles conversam sobre coisa qualquer até que duas mulheres exuberantes,
a tal mulher-ideal e uma acompanhante o seqüestram, vestidas como se
participassem de um desfile para escola de samba ou de algum musical da
Broadway. (nunca Broadway e o carnaval estiveram tão próximos!) Ele se
sente Fred Astaire no meio delas, a segurar a cintura delas, como num grande
show. Elas o conduzem à cama gigante. O desejo dele é maior, apesar de
conseguir enxergar no exterior da casa a sua mulher lamentando aquela cena.
A mulher-ideal, de largos seios e sorriso escaldante, antes de conduzi-lo
para a cama, o orienta dizendo que nada daquilo parece ser o que é. Mas ele não
quer se preocupar com passados ou futuros. Seu desejo de mão-única é por
presente e pelo presente, por mais que haja tempestades e redemoinhos. Ele se
debate com as pernas, como uma marionete pedinte que quer aquelas duas
bundudas. Ele quer as mãos dele naqueles platôs, ele não quer saber de nomes ou
vida, por ora. Mas elas não duram muito tempo. A esposa dele chega e parece
estar interessada em algo mais e ele, naquela altura, não quer saber de nome ou
vida conjugal e tanto que, por mais que ela fique em cima dele, sua opção
torna-se um protesto: virar na cama para o outro lado. Ela também vira-se para
o lado, em choro. Ele escuta algo debaixo da cama. Rola, cai sobre o tapete
fofo e descobre duas ou três maçãs ali; duas delas mordidas. Ele torna a
mordê-las com vontade, pois é o que resta daquela frustração.
Abaixa-se e segue agachado até chegar num determinado local amplo, numa
espécie de tobogã, coberto por luzes amarelas, num quê deveras circense. Á
distância, consegue enxergar três homens efeminados a conversar sobre aquele reality
show de que participam, de Truman. Nós, espectador, não podemos negar. E
ele, de pijama, escorrega num sem fim de curvas e caminhos. De repente, fala-se
da vida dele, da infância que teve, dos erros cometidos. Ele é a atração do
momento, ele é o Marcelo dos filmes do Walter Hugo Khouri, a devassar o ego e o
id.
Mas como toda a festa, uma hora acaba. E por alguma razão, antes mesmo de
terminar de descer, as luzes daquele parque de diversão se apagam. Todos vão
embora. O céu se torna cinzento, sem aquela iluminação. E o silêncio apavora. O
que resta num fim de festa? Um balão inflável sob a forma da mulher-ideal. Ele
quer desaparecer nele, como os japoneses com as bonecas infláveis, mas a
própria mulher-ideal não o deixa e o estoura. O riso fresco e promissor
verte-se numa maquiavélica fisionomia, quando o ar sai.
Ele cai. Acorda. E lá está ele no mesmo vagão, com a garrafa de vidro na
bancada e a mulher misteriosa a sua frente. Ela o olha, firme. Antes que possa
pronunciar qualquer palavra, bem ao lado, no mesmo vagão, sentam-se as mulheres
ideais, com um riso frouxo estampado.
Surpresa o filme começar assim, num túnel tão vasto e terminar na mesma
maneira como começou: túnel oval, verde grama ao redor, como numa história de
não ter mais fim. Quando imaginação e desejo se acasalam qualquer tempo é
nenhum.
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