domingo, 12 de março de 2017

A Cidade das Mulheres (1980, Federico Fellini)


Indicação  e apresentação do filme: Reinaldo Silva e Joaquim Ferreira
Texto:  Filippi Fernandes

A câmera se posiciona em direção ao túnel, de formato oval. Vê-se a grama na lateral e as paredes de tijolos encardidos pela fumaça. O túnel parece um dos mais ordinários. Tanto que se não fosse pelo movimento rítmico do comboio, não entraria. Se trata de um trem, ao que tudo indica. A fumaça, o apito, a tração. Por incrível que pareça há a presença do verde nas laterais, típica das paisagens esquecidas (vide "Stalker", por exemplo).
 O trem entra com tudo.  Por algum tempo, o que se vê é o que se ouve: o ruído dos metais, o ritmo mecanizado, ininterrupto e sem pausa para reticências, como num adormecer das imagens.  Mas o shot que se segue, acorda. E ele é o mais traiçoeiro de todos, pois dali todo um argumento se construirá. O trem sai do túnel - é o que a imagem falsamente revela. No interior de um vagão vê-se um homem adormecido. Diante dele, uma garrafa de vidro com água e uma mulher vestida elegantemente. O homem dorme sentado, encostando o queixo no peito. Mas ele não dorme como aqueles que vemos no metrô. Ele dorme mediante uma situação irrisória num trem que se agita, num trem que bamboleia e o faz saltar de segundo a segundo. A mulher sentada à sua frente o olha, o observa com um quê de sorriso nos lábios, tal qual uma criança indefesa. Quando a garrafa de vidro está prestes a cair, age como em reflexo, segurando-a a tempo. Parece não estar de todo desconectado, como aparenta. Abre os olhos lentamente como quem se espreguiça e se depara com ninguém menos que...ela. Ela, por onde toda aquela aventura de afetos começará, ela a mulher fetiche, ela, tão somente ela. O sorriso morno se abre. A mulher relança um sedutor olhar e um quê tanto interessado. Talvez ainda mordesse a ponta dos lábios. E antes de qualquer palavra, sai.
 Ele é motivado a ir atrás daquele mistério. No corredor estreito das longas horas, há uma miríade de pessoas de todos os tipos, de todas as classes, pessoas que ocupam o corredor tão somente para afastá-lo do mistério. Ele não desiste fácil. Consegue se desvencilhar deles até chegar no que seria um banheiro feminino. Põe-se a observar pela porta entre-aberta, a mulher em frente ao espelho. E com muito cuidado e discrição, entra. Assim que entra, fecha a porta, como bem entendedor de olhares e de mistérios. A partir daí, há todo um jogo de mãos e enquadramentos angulares que, se não fosse felliniano, certamente passaria por brassiano: mãos masculinas nas nádegas femininas, aquela que tudo tem, aquele que nada tem etc etc. E a prova disso são as luzes vermelhas e azuis ao fundo, bem atrás da privada, tal qual estivessem numa boate que sacoleja e chacoalha os aventurados para emoções desfigurantes. No entanto, o trem repentinamente para e um cai sobre o outro, quebrando a magia do instante proibido, tal qual um pai que bate na porta do filho ou filha. É anunciada a chegada numa tal estação. A mulher precisa descer. O homem fica a segurar o desejo nos braços, como se fosse o grande beneficiário. Tenta convencê-la a ter pena dele. Mas ela já conhece aquele jargão e sai.
 Ele a segue com mais vontade e, na tentativa de fazê-la ouvir, se delicia ao saber que ela é uma aventura, uma "maluca", como diz, ao constatar que ela desce no mato, no sentido contrário à estação. Ele a segue. Precisa morrer em gozo consagrado, nas experiências televisionadas em altas horas da madrugada. O trem precisa partir, o seu desejo também. Os olhos ficam centrados e o chama a cada momento, a cada segundo, naquele caramanchão palpitante. Quando se dá conta, a razão se foi e com ela, o trem e os compromissos de carreira. É preciso seguir em frente, naquele matagal alto, naquele desejo de amém. Acelera os passos e consegue alcançá-la, junto a uma árvore. Como adolescentes, atuam. Ela o engana ao dizer que há surpresas e pede para fechar os olhos. Mas não há nada, pois o maior interessado é ele, conhecedor de peias, ao segurar seu falo erguido e irrequieto. Ele que precisa de uma ajudinha. Ela o entende, como se o conhecesse e desaparece aos seus olhos. Retoma a busca, sedento, até encontrá-la novamente. Nesse ínterim, acaba encontrando um tal arco ou faixa gigante com alguns letreiros sinuosos. E antes mesmo que pudesse ler, escuta várias vozes femininas alvoroçadas. Ali, bem ali. Sua curiosidade alucina. Ali passa a ser o seu panteão: mulheres de todos os tipos, de todos os gostos e atravessamentos. Mulher-gorila, mulher-futeboleira, mulher-diretora, mulher-intelectual,mulher-sirigaita, mulher-diva, mulher-policial, mulher-cavaleira, mulher-diagramadora, mulher-psicanalista, mulher-frida, mulher-salomé, mulher-amazona, mulher-garçonete e todo uma plêiade de ofícios, nomes, tipos e atitudes conscientizantes e conscientizadoras. Tratava-se de um congresso de feministas, tão e simplesmente. Algo do qual a modernidade precisa, enquanto houver a sevícia e a falta de comunicação, enquanto houver a imobilidade objetificadora em um dos lados.
 Elas não estão conversando ali sobre paixão ou amor,mas sobre auto-gestão, auto-defesa, em como aprender a conviver com a solidão. Mas ele quer e por querer, adentra aquele país em busca do desejo perdido. Os homens que antes administravam o hotel ficam atordoados pelo reino destituído. Naquele hall de entrada, há uma confluência de feminilidades e extravagâncias, sobes e desces, esquerdas e direitas, só faltando a quem possa se dependurar no lustre de cristal, naquele palácio de inverno agora conquistado pelas invaginações.  
 O invasor adentra. Assiste a toda aquela militância com uma certa satisfação e curiosidade. Ninguém o vê ali. Em cada sala uma atividade, cada qual mais lúdica que a anterior. Cinema e teatro à serviço da informação e do humor. Mas ele contempla, sobretudo, atrás das pilastras de mármore, aquela masculinidade esquadrinhada pela sensibilidade feminina. Para ele está claro: são universos distintos. O leitor arguto, contudo, perceberá que o que há aí de paralelo foi construído, que acima de qualquer brincadeira e fundo de verdade há Thânatos e Eros, e que os adultos sofrem de infantilismo mental. O intruso ali, de repente, é capturado pelo olhar da mulher que o atraíra até ali e que, no meio de tantas outras feministas, o entrega com várias verdades sobre seu machismo descarado. Ele recua, recua, até que a indiferença verta em inferno sem sombra, nem água. Ele cresce de tamanho de uma hora para outra e passa a ser o modelo do ódio delas, a configuração das certezas delas.
 Numa das salas daquele palácio, um silêncio o surpreende. Ali, uma mulher-ideal o seduz, chamando-o para patinar. Babão, segue. Lá descobre a desgraça: que está entregue à elas e que tudo ali conspira contra seus pulmões. Um mundo de mulheres patinadoras o cerca, girando, girando, e ele que cai e não consegue sequer ficar em  pé, como um velho indefeso. É então empurrado maldosamente pelas escadas. Malévolas, todas. Ao levar o tombo, sente-se num porão e pela sombra uma bruxa o convida para levá-lo à estação. Ela troca de roupa no biombo e logo se presta a colocá-lo na moto.  No caminho, percebe que se meteu numa furada mais uma vez, quando ao chegar numa plantação de couves, é conduzido a entrar numa das estufas e ser forçado a ter relações com ela ali, com aquele feminil consumido pelo tempo. Não, aquela ele não quer. E ela o deita num local, ao lado de um ursinho de pelúcia. Ele tenta se desvencilhar até que alguém o surpreende. Uma senhora fica invocada com a situação e se intitula mãe da bruxa. Depois dessa cena televisiva, a bruxa ordena que uma jovem ali próximo, o leve até a estação. A jovem, de pouco papo, o conduz até um carro, repleto de moças jovens. Sente-se melhor assim. No entanto, ele há de convir que as aparências às vezes enganam. Embriagadas, putas, e com um jeito meio punk, elas o infernizam com cigarros, música eletrônica em alto volume e outras extravagâncias dos rebeldes sem causa. Mais à frente encontra um outro carro e repentinamente parece animá-la para algo mais atentador: a corrida. Quando ficaram prestes a se esborrachar, ele desiste o solta do carro. Os carros o perseguem, acendendo as luzes, num terror circense.
 A saída é dada pelo palacete de um tal conquistador de mulheres, que torna a atirar contra os carros. Ele é uma espécie de leão, Zeus a remexer seus bigodes finos de relâmpago - olhos largos, cristalizados. Ele ali parece encontrar um amigo, um ideal de amizade. Ele mostra toda uma coleção de presentes exóticos ofertado por suas pretendentes, ao lado dos seus três cães de caça. Seu nome deveria ser caçador. Ele, de robe, o alimenta com fantásticas históricas de conquistas. 1000 mulheres, segundo ele.
 Ele é obrigado a ficar em sua mansão. Aproveita para explorar a casa e se depara com um cômodo gigante com uma série de painéis instalados e um botão vermelho. Aperta o primeiro. A imagem da vítima aparece e, abaixo do botão, um som capturado por ele, no momento do enlace. Isso o diverte e estimula. Se Zeus aparecesse ali novamente, seria capaz de lhe dar um abraço por ter realizado um sonho de que nunca seria capaz de realizar. Há centenas e centenas de quadros de todos os tamanhos e mulheres para todos os gostos, muitas inclusive glamourizadas, como atriz de cinema. A luz que projeta a imagem só é disparada com o botão vermelho. E há quadros de vidro cobrindo toda a parede, tal qual as galerias inglesas de Conversation Pieces. Mais adiante se depara com uma mulher. É a sua mulher, que de súbito aperta um botão acionando todos os botões simultaneamente. Juntas, dão a impressão de qualquer coisa de perdido, qualquer coisa de incompleto e até inútil. Talvez nunca possa dar-se ao trabalho de colocar as escadas para apertar aqueles botões individualmente.
 Ele se desculpa por ter perdido o trem. Sua mulher tem um rosto pálido, boca vermelha e parece representar assim a mulher-casada, tudo aquilo que as feministas não querem para elas. Nervosa e infeliz, ele tenta encontrar justificativa (pois sempre há uma resposta para suas perguntas). Zeus aparece descendo as escadas, com um ar de vitorioso e o convida para uma suposta festa oferecida para celebrar o 1000º caso. Ele fica encantado por estar ali com aquela pessoa que muito o estima e, ainda por cima, ao lado de sua esposa, que estranhamente o esperava ali (talvez nunca tenha se perguntado).
 Ele se apruma para o tal aniversário. As empregadas fêmeas o conduzem até uma determinada senhora, a única mais velha, que poderia ser, inclusive, a mãe de Zeus. Eles conversam sobre coisa qualquer até que duas mulheres exuberantes, a tal mulher-ideal e uma acompanhante o seqüestram, vestidas como se participassem de um desfile para escola de samba ou de algum musical da Broadway. (nunca Broadway e o carnaval estiveram tão próximos!)  Ele se sente Fred Astaire no meio delas, a segurar a cintura delas, como num grande show. Elas o conduzem à cama gigante. O desejo dele é maior, apesar de conseguir enxergar no exterior da casa a sua mulher lamentando aquela cena.
 A mulher-ideal, de largos seios e sorriso escaldante, antes de conduzi-lo para a cama, o orienta dizendo que nada daquilo parece ser o que é. Mas ele não quer se preocupar com passados ou futuros. Seu desejo de mão-única é por presente e pelo presente, por mais que haja tempestades e redemoinhos. Ele se debate com as pernas, como uma marionete pedinte que quer aquelas duas bundudas. Ele quer as mãos dele naqueles platôs, ele não quer saber de nomes ou vida, por ora. Mas elas não duram muito tempo. A esposa dele chega e parece estar interessada em algo mais e ele, naquela altura, não quer saber de nome ou vida conjugal e tanto que, por mais que ela fique em cima dele, sua opção torna-se um protesto: virar na cama para o outro lado. Ela também vira-se para o lado, em choro. Ele escuta algo debaixo da cama. Rola, cai sobre o tapete fofo e descobre duas ou três maçãs ali; duas delas mordidas. Ele torna a mordê-las com vontade, pois é o que resta daquela frustração.
 Abaixa-se e segue agachado até chegar num determinado local amplo, numa espécie de tobogã, coberto por luzes amarelas, num quê deveras circense. Á distância, consegue enxergar três homens efeminados a conversar sobre aquele reality show de que participam, de Truman. Nós, espectador, não podemos negar. E ele, de pijama, escorrega num sem fim de curvas e caminhos. De repente, fala-se da vida dele, da infância que teve, dos erros cometidos. Ele é a atração do momento, ele é o Marcelo dos filmes do Walter Hugo Khouri, a devassar o ego e o id.
 Mas como toda a festa, uma hora acaba. E por alguma razão, antes mesmo de terminar de descer, as luzes daquele parque de diversão se apagam. Todos vão embora. O céu se torna cinzento, sem aquela iluminação. E o silêncio apavora. O que resta num fim de festa? Um balão inflável sob a forma da mulher-ideal. Ele quer desaparecer nele, como os japoneses com as bonecas infláveis, mas a própria mulher-ideal não o deixa e o estoura. O riso fresco e promissor verte-se numa maquiavélica fisionomia, quando o ar sai.
 Ele cai. Acorda. E lá está ele no mesmo vagão, com a garrafa de vidro na bancada e a mulher misteriosa a sua frente. Ela o olha, firme. Antes que possa pronunciar qualquer palavra, bem ao lado, no mesmo vagão, sentam-se as mulheres ideais, com um riso frouxo estampado.
 Surpresa o filme começar assim, num túnel tão vasto e terminar na mesma maneira como começou: túnel oval, verde grama ao redor, como numa história de não ter mais fim. Quando imaginação e desejo se acasalam qualquer tempo é nenhum.       



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