quinta-feira, 4 de julho de 2019

Oito e Meio (1963,Federico Fellini)


Indicação e apresentação do filme: Renata Camargo

Texto:Reinaldo Silva
                  
 8 ½ Fellini, o diretor sem sucessor

O título aparentemente enigmático do filme nada mais é do que uma fase felliniana de Fellini. Enigma que ele conseguiu transferir para tela não só os sintomas do que vivia. Quero dizer com isso que Fellini reune vida e obra artística, sinalizando diversos fragmentos presentes em  seu percurso como maestro/regente - nome italiano que coloca a figura simbólica exercida pelo diretor de filmes num patamar mais elevado.
O Filme 8 ½ e o sonho no início do filme
A primeira cena do filme é um vulto de homem se debatendo dentro de um carro parado no engarrafamento do trânsito, e sendo observado por inúmeros passageiros dos outros carros que não esboçam nenhuma atitude solidária para ajudá-lo; ao contrário, seus olhares demonstram recriminação. Quem são esses personagens inquisidores?
Para nós que vemos o filme é um alívio vermos o vulto sair do carro após um enorme esforço e voar como um passáro que escapa do terror de uma gaiola. Mais adiante vamos descobrir que esse vulto é Marcello Mastroianni, utilizado por  Fellini com seu “alter-ego”. Os sonhos estão em todos os filmes de Fellini. 
Fellini utiliza com extrema habilidade a metalinguagem, grosso modo, significa o uso de recursos visuais que não pertencem ao meio no qual está sendo. O conceito ou a noção de metalinguagem é um dos recursos, utilizados por Diretores de filmes, quando desejam fornecer conteúdo mais elaborados dos filmes. 
8 ½ Sintomas Fragmentados de futuros filmes
O que tento traduzir pela noção de sintomas está em todas as cenas, o que requer a paciência de quem assisti, porque aqueles olhares que observavam Mastroianni se debater até escapar do carro, vão se corporificar em produtor, agente de atores, atores lutando pela participação no filme, a imprensa especializada, os críticos, os técnicos que fazem parte do set de filmagem. Resumo, todos cobram um projeto de filme, indagam ostensivamente sobre como será o filme, se o filme será uma estória inédita de amor que ele até então não havia realizado (e jamais realizará) à maneira de Hollywood. A impaciência do Produtor em saber quando poderá calcular o valor do retorno de seu investimento é visível e irritante até o final do filme. Até o padre é convocado na tentativa de dissolver o mal que habita o diretor. Mas, tudo infrutífero, ele não tem um projeto de filme, ou melhor, possue fragmentos e chega a dizer que gostaria de “colocar tudo no filme”. Sua relação afetiva com a esposa vai de mal a pior, suas ambiguidades se expressam em uma ausência de potência para levar adiante um projeto de filme. Pressões e mais pressões, e num exagero tipicamente felliniano, a única saida é o suicídio. Fica então estabelecido que o Diretor está vivendo “uma crise de criação na sua manifestação artistica”.
E justamente quando tudo parecia naufragar, Fellini de maneira encantadora faz do filme uma catárse. Será que Fellini estava realmente vivendo “uma crise” ou tudo não passou de uma simulação para ter um projeto de filme? Já rolou muita tinta, análises, artigos e teses para responder essa pergunta.
Catarse
O que é uma catarse? De forma simples e compreensiva (embora não seja só isso) a catarse é a manifestação pública do que estava incomodando, das pressões dos afetos subjetivos impossíveis de ser controlados, do grito que não dá mais para  ser sufocado. Fazer da catarse uma arte requer talento, habilidade rara, capacidade acima da compreensão comum. Tudo bem felliniano.
Como disse acima esse é o encanto de 8 ½, número incompleto, isto é, um filme que fica no meio. O que é importante também assinalar é que alguns elementos dessa possível catarse estão em todos os filmes de Fellini. Encontramos os personagens do circo, uma mulher de aparência exótica, a igreja católica, os adolescentes sempre inquietos, sonhos recorrentes à infância, a presença de “tipos-ideais” da família italiana, a presença marcante de mulheres exageradamente maquiadas trajando roupas extravagante, homens dispostos a consagrar a virilidades em salões e prostíbulos, a classe social dos aristocratas com sutis ares de fascismo, gestos teatrais num clima delirante que beira a loucura ... personagens que habitavam os filmes ou a mente de Fellini.   
Finalmente, quero fazer menção ao que a Renata falou quando apresentou o filme. Ela observou que o filme possui uma forte relação com as artes plásticas. Concordo, principalmente com a excelente cópia restaurada do filme. Fica bastante visível a apropriação que Fellini fez da arte plástica quando congelamos, como se fosse um quadro fixo determinadas cenas nos detendo  em detalhes e sombras da composição. Mas, para que pudéssemos avaliar se um estilo de pintura renascentista ou outros estilos estão presentes no filme, teríamos que congelar as cenas e analisar comparando pintura e filme. Talvez isso possibilite uma outra leitura do filme 8 ½. 
A diferença entre arte plástica e arte cinematográfica é de cunho processual. Todo processo de criação de um quadro é de autoria individual. Já o filme é um processo industrial, coletivo, dependente de variáveis individuais. Para que um filme seja considerado clássico, toda equipe técnica tem que estar totalmente afinada com a idéia central do Diretor. Grandes diretores, como Fellini, possuem a sensibilidade que extrapola o campo das suas funções e consegue, (como a Renata observou), transpor e unir para tela do cinema expressões artísticas que pertencem aos outros processos artísticos. A música, por exemplo, foi e é tão utilizada nos filmes, que passaram a ser uma exigência naturalizada. Um filme não se limita a seu campo específico, no qual somente deva ser considerado o que lhe é próprio. O filme é uma herança da fotografia. A característica fundamental são os processos diferenciados entre filme, arte plástica, fotografia, música, poesia, teatro ...

Como todo filme clássico 8 ½ merece ser visto e revisto. O importante quando revejo um filme e converso com outras pessoas a seu respeito, descubro, ou pelo menos imagino que descubro, uma nova forma de olhar e pesquisar sobre as minhas dúvidas. Por exemplo, a leitura de um clássico, seja um filme, um livro, um quadro, uma escultura não se esgota. Não existe uma interpretação definitiva, aliás com tudo na vida. Toda interpretação é temporal, ligada ao tempo. É dele que extraimo a vontade de saber, uma curiosidade, a única maneira de continuar vivo.
Reinaldo  Silva


Um comentário:

  1. Reinaldo, o seu comentário é riquíssimo, preciso ler várias vezes assim como rever o filme 8 1/2. Renata, grata pela indicação, você pontuou as ARTES PLÁSTICAS
    ,a citação em outro filme do pintor Morandi, na minha percepção cada frame do filme é uma pintura, esteticamente irrepararável. O figurino das mulheres independente do papel, são sofisticadíssimos, são tantos detalhes que é impossível assistir o filme apenas 1,2,3 vezes, é preciso rever sempre com intervalos de tempo.

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