sexta-feira, 26 de julho de 2024

I.R.M.A. Invasão Russa na Mata Atlântica (Murundu de Livros) ( Celina Sodré e Clara Choveaux ;2021)


Recebi o filme de Celina Sodré e depois que o assisti, procurei a diretora para registrar minhas impressões. Celina perguntou:- É meio estranho, né? A inflexão da diretora gerou para mim um insight. 
Na realidade, diante de uma reação coloquial, a estranheza referida revestiu-se para mim do sentido antropológico de estranhamento.
A rigor, no exercício do estranhamento me identifico, me vejo e me afirmo como sendo, da mesma maneira, o Outro. O momento de contato com o Outro é o reconhecimento em outro indivíduo ou de um conjunto deles, suas diferenças e suas equivalências, buscando compreender sem julgamentos ou sobreposições, identificando, valorizando- e, acima de tudo, respeitando-o indivíduo. E é neste contexto que nasce a alteridade, atitude necessária para a compreensão do filme I.R.M.A. Nesse sentido, a percepção da estranheza é fundamental para a superação da alienação.
Ao fazer sua crítica o filme demarca importantes modelos culturais ligados a relação modernidade /pós-modernidade que confluem para o entendimento e construção das identidades. 
O filme I.R.M.A. faz justiça ao "estranho" dominado por séculos pela cultura europeia. ocidental. E na sua centralidade histórica sugere o domínio do mundo europeu ocidental sobre outras regiões da Europa, nesse caso a parte oriental, a Rússia/URSS, ao recorrer a autores como Dostoievski Tolstói, Tchekhov, Clarice Lispector, Tarkovsky, dentre outros. É como se fosse uma ponte, um auxílio para os dominados. 
Narrativamente o filme é complexo pela qualidade dos aportes teóricos apresentados e representados. Mas com atenção e alteridade, o enredo e os textos escolhidos, ao discorrerem sobre a relação homem x natureza contextualizam os problemas e desafios enfrentados pela sociedade pela condição e qualidade daquilo que não é afetado pelo tempo e, no mesmo ritmo, explicando nosso tempo. É uma questão didática de aprendizado e paciência diante da tela. Nesse caso o recorte teórico utilizado pelo viés da natureza supera uma mera ecologia oportunista e imediata.
E se repararmos bem a personagem central, a indígena, xamâmica, convida visualmente os autores citados através de um realismo magico, a dialogarem sobre as relações homem x natureza. Por ser um elemento catalisador das ações representadas, a indígena sugere também, a meu ver,  uma reconciliação entre Fé /Religião e Natureza/Ecologia pela perspectiva das religiões da natureza que acredita que a natureza e o mundo natural são uma personificação da divindade, sacralidade ou poder espiritual. Nelas se incluem as religiões indígenas praticadas em várias partes do mundo por culturas que consideram o ambiente imbuído com espíritos e outras entidades sagradas, equivalendo a religiões primitivas, sem hierarquias ou salvacionismo ou castigo.
Em termos dos elementos fílmicos , que a síntese das artes que o cinema promove, eles se apresentam no filme bem equilibrados em pouco mais de uma hora de exibição.: planos sequências, enquadramentos de expressões, distorções visuais e efeitos especiais econômicos, trilha sonora, música incidental e também a invasão cênica do teatro , necessária a qualquer filme  pela importância da representação e da atuação,
Enfim, “o filme é um poema”, como bem disse um espectador de I.R.M.A.  numa sessão cineclubista. Assim, a inicial e citada complexidade do filme é diluída a partir uma percepção poética e subjetiva.  
De uma maneira geral, o filme indica a cura da sociedade e da natureza pela literatura e pelo cinema. Por extensão é a própria condição do cinema como expressão artística e de transformação do homem e da sociedade.

Joaquim Ferreira